“Certamente se poderá dizer que os predecessores do Papa Francisco foram totalmente mudos sobre o argumento. Mas Paulo VI, João Paulo II, Bento XVI ligavam os desafios ecológicos à esfera da ‘moral’, ou seja, dos interrogativos sobre a família e sobre a bioética”, escreve Henri Tincq, jornalista, em artigo publicado por Slate, 17-06-2015. A tradução é de Benno Dischinger.
http://www.ihu.unisinos.br/noticias/543684-aquecimento-global-a-enciclica-ambiental-do-papa-francisco
Eis o artigo.
A encíclica do Papa Francisco Laudato si’ defende nada menos do que uma revolução cultural. Em prosa facilmente legível, o pontífice convida as pessoas de todas as religiões a combater, com urgência, a crise climática produzida por nós mesmos. Embora o texto afirme claramente o consenso científico sobre o aquecimento global, Laudato si’ preocupa-se mais com o poder político e econômico do que com a ciência. Nesse sentido, a encíclica inspira-se e se edifica na tradição do ensino da Igreja sobre o meio ambiente, que remonta a Paulo VI e continua até o pontificado de Bento XVI.
Dificilmente o escopo da encíclica poderia ser mais amplo. Francisco enfatiza a solidariedade entre todas as criaturas de Deus, entre os seres humanos e o resto da criação. No entanto, o papa não se afasta de uma análise política mais detalhada. Por exemplo, ele exorta os países a reduzir o dióxido de carbono e outros poluentes.
Mas a primeira fonte da encíclica, muito visível na introdução, é Francisco de Assis (o título da encíclica foi retirado do “Cântico das Criaturas”, de Francisco de Assis).
Francisco se inspira na Pacem in Terris (1963), de João XXIII, encíclica escrita durante uma outra crise mundial: a Guerra Fria. Como Pacem in Terris, a nova encíclica dirige-se às pessoas de boa vontade no intuito de “entrar em diálogo com todos acerca da nossa casa comum”. Naturalmente, o papa cita o Vaticano II (Gaudium et Spes), juntamente com os ensinamentos de Paulo VI, João Paulo II e Bento XVI (especialmente Caritas in Veritate, escrita por este último).
Outras citações importantes vêm de Teilhard de Chardin e Romano Guardini. Ele também menciona as cartas de algumas Conferências Episcopais (especialmente a dos bispos da América Latina e Caribe). Igualmente, ele cita o trabalho do Patriarca Bartolomeu de Constantinopla, que tem falado de forma comovente sobre as questões ambientais.
Em alguns aspectos, Laudato Si’ parte de onde Evangelii Gaudium parou. Francisco denuncia a “cultura do descarte”, o poder da tecnologia e da globalização que busca insanamente o lucro. Como esperado, ele afirma o consenso científico sobre o aquecimento global. A fim de melhor ouvirmos o que a terra está nos dizendo, escreve Francisco, a Igreja deve defender os pobres – os primeiros a sofrerem os efeitos das mudanças climáticas.
O Papa rejeita as “soluções demográficas” (como escreve Paulo VI na Humanae Vitae, porém Francisco não cita o texto aqui), tais como o controle populacional. Ele critica os países ricos que alavancam as necessidades dos mais pobres em nome do controle político. Particularmente forte é a análise do papa das relações entre a política, a economia global e a informação, que é manipulada por interesses comerciais. Francisco lamenta que, no debate sobre o meio ambiente, o papel da política está, em grande parte, ausente.
O Evangelho pede à Igreja que fale contra tudo o que ameace a dignidade de cada ser humano, incluindo a desigualdade. Nesse sentido, a ecologia de Francisco é totalmente pró-vida: o respeito pelas pessoas e o respeito por outras criaturas estão intimamente ligados.
A seção mais forte de Laudato Si’ é a sua crítica da tecnocracia (um ceticismo compartilhado por Bento XVI). O “paradigma tecnocrático” se reflete em nossa incapacidade de compreender o fato de que muitos dos recursos do planeta são finitos.
Para Francisco, a tecnologia nunca é neutra – ela pode ser usada para produzir efeitos maléficos. O mercado em si não irá corrigir isto por conta própria. Portanto, a própria Igreja deve oferecer uma voz unificada, a fim de ajudar a nos libertar do paradigma tecnocrático. Para isso, Francisco exorta-nos a repensar os nossos excessos consumistas: uma boa relação com a criação pressupõe um bom relacionamento com o Criador.
De acordo com Francisco, a ecologia sempre inclui cuidar dos pobres, dos marginalizados e da natureza. Isso também significa proteger a cultura: a palavra “inculturação” não aparece no texto, mas, para a Laudato Si’, a verdadeira ecologia deve ser inculturada, e não importada com uma mentalidade colonialista. A “ecologia humana” autêntica não ignora as diferenças sexuais: aceitar a masculinidade e a feminilidade, escreve o Papa, é uma forma de respeitar criação, em vez de impor a nossa vontade sobre ela. Nesta apresentação católica de ecologia, a sociedade tem um papel na defesa do bem comum, assim como os países e governos.
Em parte, Francisco culpa uma falha na governança global para a atual crise climática. Aqui, o papa repete o apelo a uma autoridade política mundial que começou com João XXIII. Quando os cidadãos se deparam a corrupção política, eles devem resisti-la. É a corrupção, afinal de contas, que subjuga a política aos interesses financeiros. O Papa Francisco não mediu palavras. Ele considera a crise financeira de 2007-2008 como uma oportunidade perdida que poderia ser usada para mudar todo o sistema econômico (em vez disso, o Ocidente focou-se em salvar os grandes bancos).
Para Francisco, a questão-chave é “redefinir o progresso”, a fim de reforçar a política em face de um sistema econômico dominante profundamente excludente. Nesse sentido, o papel da Igreja é, em grande parte, educacional. Laudato Si’ incentiva os movimentos de base feito por consumidores socialmente responsáveis e encoraja os católicos a serem politicamente ativos de várias maneiras.
A encíclica termina com duas orações. Na oração inter-religiosa, encontramos os temas favoritos de Francisco: a ternura, os pobres e a “nossa luta pela justiça, o amor e a paz”. Na oração ecumênica, ele pede pela conversão dos ricos e poderosos no sentido de servirem ao bem comum – protegendo os pobres e a terra.
Como todo o ensino social católico, este rico documento estará sujeito a interpretações. Algumas questões me parecem importantes para compreendermos o impacto da Laudato Si’ nos Estados Unidos.
Em primeiro lugar, Francisco escreve sobre a criação e o meio ambiente a partir de uma perspectiva cultural que é diferente da de muitos americanos. Francisco é um papa um tanto urbano, e para ele o meio ambiente está profundamente ligado com os – e é configurado pelos – seres humanos (os termos “direito natural” e “direito da natureza” não aparecem no texto).
Em segundo lugar, Francisco não é um papa contrário à modernidade, mas também não é um progressista. Em vez disso, ele é um progressista crítico. A tecnologia pode nos ajudar a arrumar a bagunça que fizemos, mas a tecnologia por si só não é o suficiente. É necessária uma conversão “pessoal e comunitária”, uma mudança de coração.
Em terceiro lugar, assim como seus antecessores, Francisco acredita que o bem comum é servido tanto pelos indivíduos quanto pelos governos. Mas ele não é um católico do “governo pequeno” [Estado mínimo], ao contrário dos candidatos presidenciais republicanos católicos, que pediram ao papa que “deixe a ciência para os cientistas”. O papa rejeita a noção de prosperidade como um projeto nacional. Isso também não vai soar muito bem para os americanos. Um certo nível de prosperidade, um nível que implica a desigualdade de renda, é simplesmente incompatível com a justiça econômica.
Em quarto lugar, Francisco repete o ensino católico tradicional sobre as “questões de vida”, relacionando-as com o imperativo de cuidar de toda a criação. Mas os americanos que pensam essas questões de forma isolada, à parte da economia e do meio ambiente, vão se decepcionar.
Francisco convida-nos a termos uma visão mais global. Resta saber, todavia, se aceitará este convite aquela metade dos americanos que negam que as mudanças climáticas são um problema urgente.
Do Francisco marxista ao Francisco ecologista
http://www.ihu.unisinos.br/noticias/543682-do-francisco-marxista-ao-francisco-ecologista
Eis o artigo.
Como explicar que um Papa, pela primeira vez, fala de ecologia num documento do “magistério” da Igreja? O Papa é o chefe espiritual (e político) de mais de um bilhão de homens e mulheres católicos em todos os continentes. Compartilha, com o outro bilhão de cristãos (evangélicos, protestantes, anglicanos, ortodoxos), a narração bíblica da criação (no Gênesis), que impõe ao homem dominar e proteger a terra e todos os frutos de uma natureza criada por Deus.
Da noite dos tempos, o Papa intervém, em tempo oportuno (e com frequência inoportuno!), nos afazeres terrestres, fala de tudo o que diz respeito à humanidade, sua grandeza e suas fraquezas, condena as guerras e a opressão, exalta os pobres, milita “pela vida”, prega a favor da justiça social, por um mundo mais justo, um gênero humano mais solidário. E precisamos esperar este dia 18 de junho de 2015 para que um Papa publicasse, finalmente, uma encíclica, quase inteiramente escrita por seu próprio punho, dedicada ao ambiente, à “salvaguarda da Criação” e daquela que com razão define “a casa comum”, com as relações entre os seres vivos num mundo vivo, as ameaças ecológicas e climáticas que pesam sobre o futuro do planeta e sobre o destino da humanidade.
Tomada de consciência
Alguns o deplorarão, como aqueles bons católicos tradicionalistas (não necessariamente integralistas) que ainda identificam a ecologia com uma batalha dos “esquerdistas”, dos filhos do ’68 e do Larzac. São a favor de uma “ecologia humana” (defesa da vida, da lei natural, da família, luta contra o aborto e o matrimônio para todos), mas desconfiam de uma “ecologia ambiental e global”. O Papa será também criticado – e a coisa já começou nos Estados Unidos – por todos os conservadores céticos sobre as causas das mudanças climáticas, para os quais o aquecimento não é, em primeiro lugar, o resultado da atividade humana e social, mas de dados puramente naturais.
Mas muitos outros ficarão bem felizes com esta (tardia) tomada de consciência na cúpula da Igreja. Todos aqueles, certamente, crentes e ateus, que, no mundo militante, estão na vanguarda das batalhas ecológicas. Também todos aqueles que, nas comunidades cristãs, têm uma experiência direta, em particular no mundo rural, no qual se protege – ou se destrói – o elo com a vitalidade dos seres da natureza. Enfim, todos aqueles que compartilham desta sensibilidade cristã ao tema bíblico da “salvaguarda da Criação”, indissociável das outras lutas evangélicas pela “paz” e a “justiça”. Sobre isto, os cristãos protestantes e ortodoxos sempre estiveram mais na frente dos católicos. Desde 1990, o Conselho mundial das Igrejas (com sede em Genebra) reunia em Seul uma assembleia geral sobre o tema “Justiça, paz e salvaguarda da Criação”. Os católicos não estavam presentes. A eclipse, sobre este tema, da doutrina católica, demasiado presa apenas pela “ecologia humana”, iludiu por muito tempo os teólogos da vanguarda. Como o patriarca ortodoxo de Constantinopla, chamado o “patriarca verde”, está na chefia de muitas associações de defesa do ambiente.
Certamente se poderá dizer que os predecessores do Papa Francisco foram totalmente mudos sobre o argumento. Mas Paulo VI, João Paulo II, Bento XVI ligavam os desafios ecológicos à esfera da “moral”, ou seja, dos interrogativos sobre a família e sobre a bioética. Para eles, a “degradação” do mundo era uma constatação entre as outras, consciente ou não, do projeto de Deus para a humanidade e para a Criação. Em sua encíclica sobre a “caridade” (Caritas in veritate [Caridade na verdade] de junho de 2009, Bento XVI punha em discussão os entusiasmos de uma globalização que perturba todos os esquemas de desenvolvimento, os modelos econômicos e as estruturas sociais até as “bases” materiais da existência do planeta. Mas defendia em primeiro lugar uma “ecologia do homem”, no qual a liberdade e a responsabilidade individual se articulavam com o desenvolvimento. “Existe uma ecologia do homem”, sublinhava ele ainda em 2011, diante do Bundestag em Berlim.
Ecologia global
O Papa atual ultrapassa um novo limiar. Passa da ecologia do homem à ecologia global. Não é por nada que ele escolheu, na tarde de sua eleição, o nome de Francisco, alusão a Francisco de Assis, santo patrono dos ecologistas, símbolo de fraternidade universal, que dedicou sua vida à reconciliação de todo o mundo criado, terra e céu Acumular bens era para ele uma loucura. Francisco de Assis percorria as estradas, mendigava o seu pão, pregava a conversão. Antes de morrer, compôs o famoso Cântico das criaturas, universalmente conhecido, no qual convidava o “irmão Sol” e “nossa mãe Terra” e todas as criaturas a louvarem Deus. O título da encíclica do Papa Francisco, “Louvado seja”, é inspirado neste Cântico das criaturas de Francisco de Assis. O Papa Francisco – Jorge Mario Bergoglio – vinha de um continente, a América Latina, no qual as urgências ecológicas estão entre as mais graves. Já tinha mostrado sua grande sensibilidade aos problemas do ambiente por ocasião da conferência dos bispos latino-americanos de Aparecida, no Brasil, em 2007. “Eu ouvia os bispos brasileiros falarem do desflorestamento da Amazônia”, contará ele mais tarde. Como arcebispo de Buenos Aires, apresentou recursos diante da Corte suprema da Argentina para bloquear empresas de desflorestamento no norte de seu país. Hoje se diz em Roma que, para a redação da encíclica, ele consultou padres empenhados em todas as lutas da terra da Amazônia.
Mas, não basta. Tornado Papa, o bispo jesuíta latino-americano fez da luta à pobreza o objetivo prioritário de seu pontificado. A crítica violenta do “neocapitalismo selvagem”, que formula regularmente, do “neocapitalismo selvagem”, do modelo econômico ultraliberal e produtivista, do acúmulo de riquezas improdutivas, não é nova no discurso da Igreja. Desde a encíclica “Rerum novarum” do Papa Leão XIII – em 1891 – a Igreja produziu um corpus de “doutrina social” sólido, que denunciava vigorosamente as desigualdades sociais, respeitado e seguido por gerações inteiras de responsáveis políticos, patronais, sindicais, associativos. Mas, pela primeira vez – e é a novidade da encíclica publicada no Vaticano aos 18 de junho – a Igreja menciona as consequências, em termos ecológicos, traduzidas em outras tantas ameaças para o inteiro planeta, de sua radical contestação dos modos de produção, distribuição e consumo. Após o texto de 2013 que denunciava a “cultura do descarte” e do esbanjamento dos países ricos, a imprensa conservadora dos Estados Unidos havia definido Francisco como “Papa marxista”. Amanhã, tornar-se-á o “Papa ecologista”, louvado por uns, detestado pelos outros.
Encíclica do papa traz ecos da América Latina, diz Leonardo Boff
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- A pobreza e a degradação ambiental são dois lados da mesma moeda. Esta é a certeza que permeia a encíclica “verde” do papa Francisco. Nela, também estiveram envolvidas, direta ou indiretamente, duas personalidades influentes na América Latina: o austríaco Erwin Kräutler, bispo da Prelazia do Xingu, e o teólogo brasileiro Leonardo Boff, em artigo publicado por Deutsche Welle, 18-06-2015.
Eis o artigo.
Por que a encíclica é especial
É a primeira vez que um papa aborda o tema da ecologia no sentido de uma ecologia integral (que vai além, portanto, da ambiental) de forma tão completa. Grande surpresa: elabora o tema dentro do novo paradigma ecológico, coisa que nenhum documento oficial da ONU até hoje fez. Fundamental é seu discurso com os dados mais seguros das ciências da vida e da Terra. Lê os dados afetivamente (com a inteligência sensível ou cordial), pois discerne que, por trás deles, se escondem dramas humanos e muito sofrimento também por parte da mãe Terra.
Influência da América Latina
O papa Francisco não escreve na qualidade de mestre e doutor da fé, mas como um pastor zeloso, que cuida da casa comum e de todos os seres, não só dos humanos, que moram nela.
Um elemento merece ser ressaltado, pois revela a “forma mentis” (a maneira de organizar o pensamento) do papa Francisco. Este é tributário da experiência pastoral e teológica das igrejas latino-americanas que, à luz dos documentos do episcopado latino-americano (CELAM) de Medellin (1968), de Puebla (1979) e de Aparecida (2007), fizeram uma opção pelos pobres, contra a pobreza e em favor da libertação.
O texto e o tom da encíclica são típicos do papa Francisco e da cultura ecológica que acumulou. Mas me dou conta de que também muitas expressões e modos de falar remetem ao que vem sendo pensado e escrito principalmente na América Latina. Os temas da “casa comum”, da “mãe Terra”, do “grito da Terra e do grito dos pobres”, do “cuidado”, da interdependência entre todos os seres, dos “pobres e vulneráveis” da “mudança de paradigma” do “ser humano como Terra” que sente, pensa, ama e venera, da “ecologia integral” entre outros, são recorrentes entre nós
A estrutura da encíclica obedece ao ritual metodológico usado por nossas igrejas e pela reflexão teológica ligada à prática de libertação, agora assumida e consagrada pelo papa: ver, julgar, agir e celebrar.
Primeiramente, revela sua fonte de inspiração maior: São Francisco de Assis, chamado por ele de “exemplo por excelência de cuidado e de uma ecologia integral e que mostrou uma atenção especial aos pobres e abandonados”.
Meio ambiente e pobreza
O papa incorpora os dados mais consistentes com referência às mudanças climáticas, à questão da água, à erosão da biodiversidade, à deteriorização da qualidade da vida humana e à degradação da vida social, denuncia a alta taxa de iniquidade planetária, afetando todos os âmbitos da vida, sendo que as principais vítimas são os pobres.
Nesta parte, traz uma frase que nos remete à reflexão feita na América Latina: “hoje não podemos desconhecer que uma verdadeira abordagem ecológica sempre se torna uma abordagem social que deve integrar a justiça nas discussões sobre o ambiente para escutar tanto o grito da Terra quanto o grito dos pobres”. Logo a seguir acrescenta: “gemidos da irmã Terra se unem aos gemidos dos abandonados deste mundo”. Isso é absolutamente coerente, pois logo no início diz que “nós somos Terra”, bem na linha do grande cantor e poeta indígena argentino Atahualpa Yupanqui: “o ser humano é Terra que caminha, que sente, que pensa e que ama”.
Condena a proposta de internacionalização da Amazônia que “apenas serviria aos interesses das multinacionais”. Há uma afirmação de grande vigor ético: “é gravíssima iniquidade obter importantes benefícios fazendo pagar o resto da humanidade, presente e futura, os altíssimos custos da degradação ambiental”(n.36).
Com tristeza reconhece: “nunca temos ofendido nossa casa comum como nos últimos dois séculos”. Face a esta ofensiva humana contra a mãe Terra, que muitos cientistas denunciaram como a inauguração de uma nova era geológica – o antropoceno – lamenta a debilidade dos poderes deste mundo que, iludidos, “pensam que tudo pode continuar como está” como álibi para “manter seus hábitos autodestrutivos”, com “um comportamento que parece suicida”.
O papel de cientistas e estudiosos do clima
Prudente, o papa reconhece a diversidade das opiniões e que “não há uma única via de solução”. A encíclia dedica todo o terceiro capítulo à análise “da raíz humana da crise ecológica”. Aqui o papa se propõe a analisar a tecnociência, sem preconceitos, acolhendo o que ela trouxe de “coisas preciosas para melhorar a qualidade de vida do ser humano”.
A tecnociência se tornou tecnocracia, uma verdadeira ditadura com sua lógica férrea de domínio sobre tudo e sobre todos. A grande ilusão, hoje dominante, reside na crença de que com a tecnociência se podem resolver todos os problemas ecológicos. Essa é uma diligência enganosa porque “implica isolar as coisas que estão sempre conexas”. Na verdade, “tudo é relacionado”, “tudo está em relação”, uma afirmação que perpassa todo o texto da encíclica como um ritornelo, pois é um conceito-chave do novo paradigma contemporâneo. O grande limite da tecnocracia está no fato de “fragmentar os saberes e perder o sentido de totalidade”. O pior é “não reconhecer o valor intrínseco de cada ser e até negar um peculiar valor do ser humano”.
Papa Francisco propõe uma “ecologia integral” que vai além da costumeira ecologia ambiental. O espírito terno e fraterno de São Francisco de Assis perpassa todo o texto da encíclica Laudato sí. A situação atual não significa uma tragédia anunciada, mas um desafio para cuidarmos da casa comum e uns dos outros. Há no texto leveza, poesia e alegria no Espírito e inabalável esperança de que se grande é a ameaça, maior ainda é a oportunidade de solução de nossos problemas ecológicos.