O rentismo “verde” avança e os povos resistem

Foto: Audiovisual/PR

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Rôney Rodrigues

15/08/2023

Às margens da Cúpula da Amazônia, eles denunciam o assédio dos cowboys do carbono para que o Norte siga poluindo. É preciso regular este mercado e construir alternativas ao financismo: a sócio-bioeconomia de florestas em pé e rios fluindo.

Em uma pequena sala no subsolo do Hotel Princesa Louça, outrora o Hilton belenense, os homens brancos do capital reúnem-se a portas fechadas para debater riscos e oportunidades de investimentos na Amazônia. O calor de Belém, no Pará, que sediará a COP30 em 2025, é escaldante – e ali, o dress code parece ser o de festa no jardim: todos estão tropicalmente bem-vestidos.

São convidados seletos. Não há espaço para três mulheres borari, de Alter do Chão, prontamente barradas pela organização: “sinto muito, nem temos cadeiras para vocês”. Mas reservaram uma para Alessandra Korap, a liderança munduruku premiada neste ano com o Goldman Enviromental Prize, considerado o “Nobel” do ambientalismo – que logo exige passe livre para suas parentes borari, sob olhares hesitantes.

Sentada à mesa, visivelmente entediada, Alessandra ouve os keynote speakers que versam sobre policy briefsnative finance, fundos de pensão, assets, campo dos privatesdonations, capital concessional, subsídios… E, transversalmente, do tipping point.

Chega o momento da intervenção de cinco minutos da mulher munduruku, jurada de morte e que, nos últimos anos, enfrentou implacavelmente as mineradoras, como a Anglo American e a Vale, forçando-as a desistir da exploração em seu território indígena, que ainda espera demarcação.

— Nenhum banco quer financiar ou falar qualquer coisa contra o marco temporal, mas dizem: “ah, a gente não tem culpa do que está acontecendo na Amazônia” —, denuncia a liderança indígena. — Mas por que eles estão financiando o agronegócio e as empresas grandes que estão nos matando? É muito fácil quando o Banco Mundial vem lá de fora para dizer que protege a Amazônia, que é tudo sustentável, mas não respeita protocolos de consulta nem direitos humanos enquanto o povo está morrendo. Agora, para piorar, chegou o crédito de carbono.

Realizado no dia 6 de agosto, esse encontro realizou-se paralelamente a dois eventos que movimentaram a capital paraense: o Diálogos Amazônicos que, de 4 a 6, reuniu entidades, movimentos sociais, academia e centros de pesquisa do Brasil e demais países amazônicos para formular sugestões para a reconstrução de políticas públicas sustentáveis para a região. E a Cúpula da Amazônia, entre os dias 8 e 9, onde chefes de Estados dos oito países da panamazônia, em evento fechado, assinaram a Declaração de Belém que, entre seus 113 objetivos, apregoa a necessidade cooperação entre governos para adotar uma agenda sustentável, com o “ideal” de alcançar o desmatamento zero até 2030 – e sem propor frear a exploração de petróleo na região, umas das reivindicações de várias entidades e movimentos sociais. A ausência de metas concretas foi duramente criticada.

Alessandra Korap. Foto: Goldman Environmental Prize

— Queremos autodeterminação, governança — queixou-se o equatoriano Marco Martins, do povo Shuar, durante uma marcha em direção ao local onde realizava-se a Cúpula, barrada pela PM. — Políticas públicas não podem ser extrativistas. Precisam ser amigáveis aos , dando segurança jurídica para proteger nós, defensores da vida. O petróleo e as hidrelétricas estão destruindo a Mãe Natureza. Olha, foram várias COPs, mas nós nem sabemos o que eles vão discutir lá na Cúpula. Só sabemos de uma coisa: eles estão decidindo qual espada vão usar. Precisam saber que o futuro é ancestral.

Estratégias do capital na Amazônia

No encontro dos investidores “verdes”, se for olhado de forma maliciosa, poderia se dizer que Alessandra estava ali apenas para cumprir uma “cota de representatividade”, pois os keynote speakers tinham o script bem delineado: debater a Amazônia como uma promissora frente de expansão do rentismo, apesar dos altos riscos para os investimentos – os quais deveriam ser analisados em profundidade. E a possível construção de uma espécie de Bretton Woods Amazônico, como pareciam sugerir.

O território é desafiador e há um aumento crescente da criminalidade na região, argumentam os investidores, o que exigirá atuar através de instituições multilaterais, projetos filantrópicos e redesenhar estruturas de mercado para mitigar os “riscos reputacionais” em operações conjuntas com “setores que vão em uma linha um pouco mais agressiva com as comunidades” – um eufemismo sui generis para classificar a lógica predatória do agronegócio, mineradoras e petroleiras.

Diante desse desafio, analisam, o desenvolvimento a partir de uma estratégia de indicadores sociais pode ser uma saída para maquiar a ação do rentismo na região, mas requer uma cuidadosa análise das prioridades e do tamanho do esforço para que se possa aumentar “capitalização dos principais bancos” – e se é mais rentável apostar na adaptação diante da crise climática ou na mitigação dos impactos.

Há trilhões de dólares disponíveis de investidores dispostos a apostar em projetos na Amazônia, lembra o economista Joaquim Levy, ex-ministro da Fazenda e ex-presidente do BNDES, que ocupou cargos importantes no Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), Fundo Monetário Internacional (FMI) e no Banco Mundial. E, para que isso seja viabilizado, duas coisas serão cruciais.

A primeira são as orientações regulatórias na Amazônia – o que inclui ordenamento territorial “que realmente vem de textualidade” –, pois assim o investidor privado pode “botar mais do seu dinheiro e do seu tempo em atividade” se tiver guaritas na lei. A segunda é a criação de um mercado robusto e trilionário para o capital “saber qual é o produto final e como é que ele vai ser monetizado”.

— No final, vai ser o manejo de florestas, vai ser o crédito de carbono. O crédito de carbono é fundamental — aponta Levy.

Povos originários: um novo ativo financeiro

Grosso modo, o mercado de carbono funciona assim: uma empresa produz 40 mil toneladas de gás carbônico. Em um ano, terá que reduzir para 38 mil. Porém, a empresa não reconfigurou sua cadeia produtiva para reduzir o impacto ambiental, nem investiu em novas tecnologias sustentáveis ou de transição energética – pois os gastos podem moderar o lucro dos acionistas – e prevê um aumento para 50 mil toneladas de emissão. Como não atingiu a meta e pretende intensificar seus níveis de poluição, será preciso compensar suas emissões comprando 12 mil em títulos verdes oferecidos por alguns países (os títulos soberanos) ou de outras empresas.

Mas há outra opção, que pode sair mais barata: apossar-se de estoques de carbono via processos de reflorestamento e projetos de preservação ambiental, geralmente implantados em territórios indígenas, ribeirinhos, camponeses e quilombolas do Sul global, transformando-os em ativos financeiros – e até incentivando grilagem de terras públicas para comprar a estocagem. É o chamado mercado voluntário de carbono – ou “fazenda de captura de carbono”, como apontam os movimentos sociais –, um negócio avaliado em US$ 2 bilhões em 2021; e a expectativa é que este mercado cresça, pelo menos, cinco vezes até 2030.

Hoje, o Brasil participa apenas como fornecedor de créditos de carbono, um mercado ainda não regulamentado no país, um tema ainda em discussão no governo Lula. Esse vazio legal abriu, ao longo dos anos, margem para a atuação dos chamados “cowboys do carbono” que adentram comunidades tradicionais com propostas “ilusórias” de melhora de vida, assediam lideranças, negociam sem consulta livre, prévia e informada dos povos originários envolvidos, com cláusulas abusivas ou ilegais, além de também negociar créditos em terras supostamente griladas.

Essa é umas das principais denúncias dos povos originários, que relatam que esse ardil intensifica-se a cada ano, aproveitando-se da fragilidade das comunidades para negociar benesses que o Estado deveria oferecer.

— Quando você tem fome, um pedaço de pão é o suficiente para te dobrar — esbraveja uma quilombola amazônida, em uma plenária do Diálogos Amazônicos — O contrato é por 30, 40 anos. Três gerações! É a privatização do território.

— Viramos commodities. Produtos colocados na vitrine para serem vendidos — relata o jangadeiro baiano Carlos Alberto Pinto dos Santos, presidente do Conselho Nacional dos Povos e Comunidades Tradicionais (CNPCT), durante evento na Sudam. — Só na minha comunidade já recebemos quatro empresas e três ONGs com propostas para assinarmos contratos de carbono. Diziam que perderíamos uma grande oportunidade se não assinássemos. Mas quem chega primeiro no poço bebe água limpa ou morre envenenado. E, com esse mercado, a probabilidade maior é de morrermos envenenados.

A situação é tão grave que, em julho, o Ministério Público Federal elaborou uma nota técnica apontando essas investidas do capital – e um documento da Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas) recomendou que a União não autorize negociações até que esse mercado seja regulamentado no Brasil.

— Não podemos sentar na mesa de ninguém nos sentindo inferiores — continua Carlos, também lideranças dos pescadores artesanais da Bahia. — Precisamos de protocolos comunitários que servirão de parâmetro, inclusive antes da chegada das empresas, para estabelecer quais são o ritos e procedimentos a serem seguidos. Senão, lideranças sempre serão perseguidas, assediadas, criminalizadas, mortas…

— Em vez de iniciar a transição para novos paradigmas de desenvolvimento, políticas e práticas que assegurem uma vida em harmonia com a natureza e a proteção de direitos, é evidente que a ambição dos detentores do poder político e econômico continuará depredando a Amazônia — analisa a colombiana Nathalie Rengifo, que integra a Plataforma Latino-americana pela Justiça Climática. — A financeirização das florestas vem junto com formas de compensação de emissões para permitir que a destruição continue. Às portas abertas e fechadas, grandes instituições financeiras discutem como tornar a Amazônia um negócio lucrativo com a criação de mercados que continuam nos mergulhando no colapso climático.

Florestas em pé e rios fluindo

Voltemos ao encontro onde Alessandra Korap denunciou a hipocrisia dos bancos. Ali outro convidado também destoa dos discursos de promissores investimentos privados na Amazônia: o cientista Carlos Nobre, copresidente do Painel Científico para a Amazônia e pesquisador sênior do Instituto de Estudos Avançados da USP — e que já foi secretário de Políticas e Programas de Pesquisa e Desenvolvimento do Ministério da Ciência e Tecnologia.

Nobre diz que é uma oportunidade muito diferente dirigir-se para representantes do capital financeiro, mas…

— Eu não sou um deles. É importante mostrar que nós estamos na beira do precipício do ponto de não retorno. Não é uma coisa que vai acontecer daqui a 100 ou 50 anos.

Ao descrever outros serviços ecossistêmicos da Amazônia – como os rios voadores que alimentam os sistemas de chuva de países andinos ao sul do Brasil, além do sudeste da Argentina, Uruguai e Paraguai – ele dá uma alfinetada:

— Isso até agora não tem valor. O mercado de carbono tem.

A proposta central do renomado cientista é incômoda ao “rentismo verde”: construir uma sócio-bioeconomia de florestas em pé e rios fluindo. Para isso, diz, é essencial o protagonismo dos povos tradicionais no planejamento e na implementação de projetos. Os processos deveriam ser inclusivos, participativos e colaborativos, baseados nos saberes ancestrais, em pesquisas científicas e nas reivindicações de instituições indígenas. Além disso, Nobre defende estabelecer salvaguardas contra o uso indevido do conceito de economia sustentável – outra cutucada em investidores privados – e moratória para transformar cerca de 80% da Amazônia em áreas de conservação ambiental, utilizando os demais 20% essa nova bioeconomia e outros projetos regenerativos e realmente sustentáveis.

Nós fizemos um primeiro cálculo, diz Nobre. Custaria menos de 22 bilhões de dólares.

— Mundo financeiro! Por favor, mundo financeiro. 22 bilhões não é muito, vocês sabem que isso é pouquíssimo. Mas enquanto isso o preço do carbono no mercado da Amazônia já está chegando a 20 dólares por tonelada…

Durante os Diálogos Amazônicos, a denúncia de violações de direitos humanos e de projetos extrativismo selvagem – em curso ou na iminência de serem implementados – foi a tônica. Propostas de alternativas ao avanço do capital e das corporações foram mais discretas. Em uma das plenárias, cientistas, pesquisadores e ativistas indígenas elaboraram um documento propondo medidas como a cooperação transfronteiriça para combater o desmatamento; a declaração de emergência climática na região; e fomentar cadeias de valor verde, assim como promover uma economia do cuidado, baseada nos conhecimentos multiculturais amazônicos e no protagonismo feminino nos territórios.

— Quando tem a voz do povo falando uma decisão coletivo do povo, eles não respeitam — diagnostica Alessandra Korap, já fora do encontro de investidores. — Não discutem com o povo o modelo que sustentabilidade, mas nossos territórios estão mostrando alternativas — e cita uma parceria com a Fiocruz para provar os impactos do mercúrio nas comunidades. — Então vamos mostrar que o científico está falando a verdade, que nós estamos falando a verdade, porque o homem branco só acredita no papel.

André Baniwa. Foto: Mongabay

Em uma das plenárias, André Baniwa, hoje diretor do departamento de demarcação territorial da Secretaria de Direitos Ambientais e Territoriais do Ministério dos Povos Indígenas, conta a experiência de seu povo com o associativismo, a partir da produção de arte, pimentas e cestarias. A princípio, a venda era por escambo – pois seu povo está a duas horas de avião e mais dois dias e meios de barco da última cidade amazônida na fronteira com a Colômbia – ou com valores baixíssimos.

— Eu me perguntava por que o Brasil não valoriza nossos conhecimentos. Por que não enxerga isso como um valor que pode ser importante para o país — diz a liderança indígena. — Hoje, as mulheres falam de reflorestar a mente da sociedade sobre a nossa cultura.

E os Baniwa, narra André, foram atrás de parcerias com instituições de pesquisa e organizações de defesa dos direitos indígenas para criar o que ele chama de tradução cultural: manter a ancestralidade, mas estabelecer critérios para a venda justa de seus produtos, valorizando as cadeias produtivas locais, o que também pode contribuir para a reunificação dos povos da floresta – e assim, fazer um contraponto à financeirização da Amazônia.

— O futuro está sendo desenhado para pegar fogo — diz André, com um apocaliptismo calmo. — Mas a gente vai continuar lutando. Como diz o Krenak, tentamos adiar o fim do mundo.