“Temos que nos unir e agir agora, tomando decisões éticas e compassivas sobre o que comemos, compramos e vestimos”.

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Jane Goodwall

Jane Goodall sendo acolhida e acolhendo um chimpanzé.

https://www.ihu.unisinos.br/619076-temos-que-nos-unir-e-agir-agora-entrevista-com-jane-goodall

Marianne Schnal

30-05-2022

Entrevista com Jane Goodall

Já se passaram mais de seis décadas desde que Jane Goodall pisou pela primeira vez nas frondosas de Gombe, na Tanzânia, onde começou sua pesquisa pioneira sobre o comportamento dos chimpanzés. Suas descobertas sobre esses primatas, tão parecidos com os humanos, significaram um marco científico que, ainda hoje, lembra o quanto estamos interligados com a natureza e os animais.

Essa veterana ativista fundou sua própria organização para a conservação da vida selvagem – o Instituto Jane Goodall – e patrocinou a criação do programa global Roots and Shoots (Nota do website: ‘Raízes e Brotos'), que busca motivar as gerações mais jovens a se envolverem em projetos que ajudem suas comunidades e contribuam para interromper a perda de biodiversidade que ameaça o planeta.

A entrevista é de Marianne Schnall, publicada por Ethic, 30-05-2022. A tradução é do Cepat.

Segundo ela, “Mahatma Gandhi disse que ‘uma civilização pode ser julgada pelo modo como trata seus animais‘. E se aplicássemos esse critério, muitos países não se sairiam bem”.

E ela alerta: “Pensemos no que fazemos todos os dias e tomemos decisões éticas e compassivas sobre o que comemoscompramos e vestimos. E que devemos perceber que a forma como realmente fazemos a diferença não é individual, mas com todos juntos, de forma coletiva. Ainda temos algum tempo, mas temos que nos unir e agir agora.”

Eis a entrevista.


Uma pandemia global, incêndios florestais, furacões, inundações… Parece que já estamos sofrendo os efeitos da mudança climática. O que passa pela sua cabeça quando observa que essas situações alarmantes estão sendo experimentadas em todo o mundo?

A coisa realmente trágica é que nós mesmos a provocamos por não termos respeitado, em absoluto, os animais e o planeta. Basta ver a conexão que a pandemia de coronavírus tem com a destruição dos habitats naturais. Há anos, caçamos, matamos, comemos e traficamos animais, permitimos que sejam transformados em medicamentos ou os vendemos como animais de estimação em mercados de animais na Ásia ou nos mercados de carne na África.

Também aprisionamos milhares de animais para o nosso próprio consumo em fazendas agrícolas intensivas, mais bem conhecidas como campos de concentração de animais. E em todos esses casos criamos as condições perfeitas para que um novo patógeno salte de um animal para uma pessoa e leve a uma nova doença.

Está claro que a crise da saúde trouxe sofrimentomortedesemprego e caos econômico em todo o mundo. No entanto, há tempo existe uma crise mais grave: a da mudança climática. Há anos, os cientistas preveem a mudança do clima mundial e a mudança nos ciclos meteorológicos. Na luta pelo desenvolvimento econômico mundial, o meio ambiente sempre saiu perdendo.

Considera que estamos abusando dos animais e, inclusive, há quem fale de “especismo”, de que, de alguma forma, nós humanos acreditamos ser superiores e mais importantes que os animais.

No início dos anos 1960, quando me enviaram a Cambridge para fazer o doutorado, nunca havia estado na universidade, mas havia passado dois anos convivendo com chimpanzés. Fiquei realmente impactada quando os professores me disseram que eu não deveria ter dado nomes aos chimpanzés, que os números eram mais científicos. Diziam-me que não eu podia falar da personalidade, mente ou emoções dos animais porque eram características exclusivas dos humanos.

Felizmente, quando eu era pequena tive um professor magnífico: meu cachorro Rusty, que me ensinou que estavam errados. Os chimpanzés – que são nosso parente vivo mais próximo – são tão parecidos biologicamente conosco que com minhas descrições e o filme feito por meu marido, Hugo van Lawick, a ciência teve que admitir que não somos os únicos seres do planeta com personalidade, mente e emoções. Nosso trabalho abriu as portas para uma nova maneira de entender e considerar os animais. Graças a isso, a cada dia aprendemos mais e mais. Não paramos de nos surpreender.

Estou certa de que os animais podem sentir medoangústia e dor. E isso deve ser levado em conta quando nos referimos a todos esses animais sobre os quais falava – que são traficados, mortos ou levados para fazendas industriais ou mercados: são indivíduos com personalidades e sentimentos, não simplesmente animais. Existe uma crença de que pelo simples fato de serem alimentos, são diferentes de nós, mas não é bem assim: os porcos são comidos, e podem ser mais inteligentes que os cachorros.

Em mais de uma ocasião, comentou que estamos tão desconectados do meio ambiente que não nos consideramos parte dele, desse ecossistema integral e delicado que se desmorona na medida em que não o apreciamos. Como perdemos essa relação?

Se atualmente estamos tão desconectados do mundo natural, é porque muitas pessoas vivem em um mundo virtual. Quando eu era pequena, não tínhamos televisão – muito menos computadores ou –, e eu passava horas contemplando pássaros, esquilos, insetos…

Não obstante, agora as crianças estão o tempo todo olhando para as telas. É algo muito negativo porque a evidência científica nos diz que a natureza – os espaços verdes, o canto dos pássaros, as folhas, as flores… – é essencial para o bom desenvolvimento psicológico dos pequenos.

Além disso, também foi demonstrado que o fomento de espaços verdes em zonas desfavorecidas onde existe uma alta taxa de criminalidade se traduz em uma diminuição da incidência do crime. É muito triste ver como nos isolamos em nossa própria bolha de fazer dinheiro e paramos de considerar nossa relação com o ambiente natural. Não podemos continuar assim, somos parte desse ambiente, dependemos dele.

Como podemos recuperar essa conexão e almejar um mundo mais positivo e harmonioso? Que mudanças no pensamento e no comportamento das pessoas são necessárias?

Em primeiro lugar, temos que mudar nossa forma de pensar o desenvolvimento. Conforme destruímos o meio ambiente, a mãe natureza grita conosco pedindo ajuda, e enquanto destruímos a natureza, também destruímos o futuro de nossos filhos e, claro, a saúde do planeta. Antes da pandemia, estive viajando pelo mundo, por trezentos dias, e pude ver com meus próprios olhos os efeitos da destruição.

Quando estive na Groenlândia, os inuítes me disseram que, antes, o gelo costumava resistir mesmo em pleno verão. No entanto, era primavera quando vi a água do degelo e os icebergs se rompendo… Também conheci pessoas da ilha que tinham que abandonar suas casas quando a maré subia.

Vi as sequelas de furacões atemorizantes, tufões, inundações, secas espantosas e incêndios florestais devastadores. E até onde sabemos, pela primeira vez na história, houve incêndios no círculo ártico. Felizmente, acredito que existem coisas que estão começando a ser compreendidas, como a necessidade de avançar para uma dieta baseada em plantas.

Considera que é possível obter algum aprendizado positivo ou alguma mensagem de esperança das crises que estamos vivendo?

O maior sinal de esperança é que temos certa margem de tempo para mitigar a mudança climática. Agora, minha grande esperança está na juventude. Eu comecei o programa Roots and Shoots, em 1991, com doze estudantes do ensino médio na Tanzânia, oferecendo a eles a mensagem de que o mundo todo gera um impacto sobre o planeta, então, que se escolha com sensatez e ética.

No programa – hoje ativo em 65 países de todo o mundo –, cada grupo escolhe três projetos: um para ajudar as pessoas, um para ajudar os animais e outro para ajudar o planeta. Esses milhares de jovens estão conscientes do problema, sentem-se fortalecidos para agir e são os que depois influenciam seus pais e avós. Enquanto conversamos, eles, com suas ideias e suas vozes, estão mudando o mundo.

O que mais chama a sua atenção nos jovens ativistas de hoje?

Por muitos anos, houve um desconhecimento generalizado sobre o que estávamos fazendo com o planeta. Quando comecei a estudar chimpanzés, em 1960, a floresta ainda se estendia pelo Gombe, na Tanzânia. Então, não causávamos tantos danos como os provocados atualmente por nossas atividades.

No entanto, progressivamente, muitas escolas começaram a falar da mudança climática, o que oferece às crianças a oportunidade de escolher fazer algo ou de exigir que outros façam. As crianças estão mais conscientes e, consequentemente, muitos pais pensam: “Tenho que reciclar por meus filhos” ou “tenho que retirar o do campo por meus filhos”. Seus filhos são os que estão à altura do desafio porque estão conscientes dos problemas que as crianças de antes desconheciam.

Você e eu conversamos, há mais de dez anos, por ocasião do 50º aniversário de sua chegada a Gombe, quando iniciou sua pesquisa sobre os chimpanzés. Como seu pensamento e seu trabalho evoluíram em todos esses anos?

Nunca paramos de aprender sobre os chimpanzés. Sobretudo, graças à tecnologia de ponta como, por exemplo, estudos de DNA. Estamos no início da quarta geração de chimpanzés, o que nos permite ver o efeito dos diferentes tipos de comportamento materno, saber quem é o pai – já que podemos analisar o DNA das amostras fecais – e, portanto, examinar a personalidade dos progenitores. O que não temos ideia é como os mais jovens sabem quem é o seu pai, porque existem provas de que se sentem mais atraídos pelos machos da família.

Agora, em grandes traços, penso que a maior mudança em meu trabalho – além de ser o motivo pelo qual deixei Gombe, em 1986 – está em quando percebi que os chimpanzés e as florestas da África estavam desaparecendo. Isso me levou a visitar seis lugares diferentes para compreender o que estava acontecendo.

ponto de inflexão foi em 1990, quando estava sobrevoando o diminuto Parque Nacional de Gombe, de 35 quilômetros quadrados, e que fazia parte de uma grande floresta. Olhei para baixo e vi uma pequena ilha de floresta cercada por colinas completamente vazias, onde viviam muito mais pessoas do que a terra poderia suportar. Foi quando percebi que se não ajudarmos essas pessoas a encontrar formas de ganhar a vida sem a necessidade de destruir o meio ambiente ao seu redor, também não conseguiremos salvar os chimpanzés.

Então, o que você fez?

Instituto Jane Goodall iniciou um método de conservação holístico baseado nas comunidades locais que chamamos de Take Care ou TACARE (Tanganyika Catchment Reforestation and Education). Basicamente, o que começamos em 12 povoados próximos a Gombe está agora implantado em 104 lugares, ao longo das áreas de chimpanzés na Tanzânia e em outros sete países africanos.

Isso deu força e instrumentos à população local, como, por exemplo, smartphones para que possam monitorar a condição das reservas florestais de seus povoados. Tornaram-se nossos parceiros para a conservação e as pessoas estão encontrando uma forma de viver em harmonia com a natureza.

Como pioneira, qual é a sua avaliação sobre o progresso alcançado pela mulher, ou que ainda precisa alcançar, rumo à igualdade de gênero?

Depende muito do país em que você está. Alguns avançaram mais do que outros. Quando eu tinha dez anos e sonhava em ir à África, viver com animais e escrever livros sobre eles, todos riam de mim. “Como você fará isso? Não tem dinheiro, a África está muito longe e você é apenas uma menina”, diziam-me.

Felizmente, tenho uma mãe incrível que me incentivou: “Se você realmente tem essa pretensão, terá que trabalhar muito, aproveitar todas as oportunidades que surgirem e, se não desistir, pode ser que encontre uma forma para realizá-la”. Essa é a mensagem que procuro transmitir aos jovens e, em especial, às meninas das regiões mais desfavorecidas do planeta.

Em geral, vi uma grande mudança nos países mais desenvolvidos, mas na Tanzânia, por exemplo, nós e outras organizações oferecemos muitas bolsas para que as meninas permaneçam nos colégios, continuem seus estudos até o ensino médio e algumas possam entrar na universidade. Pouco a pouco as coisas vão mudando.

Sempre lembro – porque me encantou – o chefe de uma tribo indígena da América Latina que me disse que sua tribo era como uma águia: “Uma das asas é masculina e a outra é feminina, e só quando forem iguais a tribo voará alto”, explicou. Penso que é justamente isso que deveríamos ter como objetivo: a igualdade.

Considera que a humanidade está cada vez mais consciente da necessidade de proteger os animais?

Em todo o mundo houve grandes avanços legislativos em relação ao bem-estar dos animais. É algo que dez anos atrás seria inimaginável. Por exemplo, não faz muito tempo, na China, pela primeira vez, julgou-se um dono que abandonou seu cachorro. Hoje, na Coreia do Sul, existe uma legislação para alimentar cachorros. Também nos Estados Unidos muitas leis foram propostas para endurecer as sentenças por crueldade animal, embora ainda não tenham sido aprovadas.

Em geral, as pessoas estão mais conscientes de que os animais não estão neste planeta para que nós usemos e abusemos deles, mas, ao contrário, precisamos ser capazes de viver em harmonia com eles. Mas ainda resta muito a fazer. Mahatma Gandhi disse que “uma civilização pode ser julgada pelo modo como trata seus animais”. E se aplicássemos esse critério, muitos países não se sairiam bem.

Estamos diante de grandes e numerosos desafios que podem levar as pessoas a pensar que nada pode ser realizado para fazer a diferença. Qual seria o seu conselho ou motivação?

Não paramos de ouvir: “Pense globalmenteatue localmente”, mas, honestamente, ler ou escutar as notícias é tão deprimente e desmoralizante que entendo o fato de as pessoas não terem vontade de fazer nada. E sei que estão acontecendo coisas horríveis na política, sociedade e natureza, mas em vez de perder a esperança, devemos reivindicá-la e dizer: “Estou aqui e agora, neste lugar. Existe um córrego que está sujo. Posso me unir com meus amigos. Podemos limpá-lo”.

Desse modo, a água que vai parar no rio estará limpa, e se depois houver outros grupos que se responsabilizem em limpar outros córregos, o rio ficará cada vez mais limpo. Meu conselho é: faça os projetos que puder localmente. E é possível fazer muitas coisas que, além disso, farão você se sentir melhor, como ser voluntário em um abrigo ou em restaurantes sociais, ou arrecadar dinheiro para ajudar as crianças.

Por exemplo, só em Porto Rico há 200.000 crianças desnutridas em consequência do Furacão Maria, de alguns anos atrás, que o ex-presidente Donald Trump visitou apenas para lhes deixar papel higiênico. Quando você contribui localmente, também percebe que há muitas outras pessoas fazendo o mesmo que você, e o que está tentando fazer se multiplica, mais de uma vez, e está mudando o mundo. É aí que a esperança aparece.

Qual legado gostaria de deixar? Como gostaria que as gerações futuras lembrassem de você?

Gosto de pensar que deixo como herança duas coisas. Uma é Roots and Shoots, que espero que continue porque está mudando vidas, e a outra é que estou ajudando as pessoas – incluindo cientistas – a admitir que fazemos parte do reino animal e, portanto, temos que tratar os animais de forma mais humana, mais compassiva. Mas a mensagem mais importante que quero deixar é: lembre-se de que, todos os dias, todos e cada um de nós temos um impacto no meio ambiente.

Temos o poder de escolher o que compramos, o que vestimos e o que comemos… a menos que sejamos realmente pobres. E é por isso que temos que reduzir a pobreza, porque se você não tem recursos, irá cortar até a última árvore da floresta para plantar comida e alimentar sua família.

Pela mesma razão, você vai pescar o máximo de peixes que puder ou, se estiver em uma área urbana, irá comprar a comida lixo que for mais barata. E como você precisa sobreviver, não poderá se permitir questionar se sua produção prejudica o meio ambiente, se é cruel com os animais ou se é bem barata porque os trabalhadores recebem salários injustos.

Agora mesmo, uma população mundial de 7,2 bilhões de pessoas está esgotando os recursos naturais mais rápido do que a natureza pode repô-los. Até 2050, dizem, o número se aproximará de 10 bilhões de pessoas. E, cuidado, porque às vezes isto é entendido como uma condenação àqueles que vivem na pobreza, quando na verdade não são os responsáveis pela mudança climática que nós, os ricos, estamos provocando. É um grande desafio, porque se tirarmos as pessoas da pobreza e todas desejarem nosso estilo de vida pouco sustentável, o que vai acontecer?

O que pediria à sociedade?

Que pensemos no que fazemos todos os dias e tomemos decisões éticas e compassivas sobre o que comemoscompramos e vestimos. E que devemos perceber que a forma como realmente fazemos a diferença não é individual, mas com todos juntos, de forma coletiva. Ainda temos algum tempo, mas temos que nos unir e agir agora.

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