O capitalismo, divino filho do cristianismo.

O cristianismo parecia, durante muito tempo, mais distante da esfera mercantil. Mas, ao contrário de Max Weber, podemos argumentar que sem o cristianismo tout court, não haveria . É este lado obscuro, ou negado, da religião cristã, que gostaríamos aqui de destacar.

 

 

http://www.ihu.unisinos.br/noticias/531366-o-capitalismo-divino-filho-do-cristianismo

 

 

O artigo é de Philippe Simonnot e publicado no jornal Le Monde, 29-04-2014. A tradução é de André Langer.

Doutor em ciências econômicas, Philippe Simonnot dedicou parte da sua obra às relações entre economia e religião. Entre elas, temos: Les papes, l’Eglise et l’argent, Histoire économique du christianisme des origines à nos jours(Bayard); Homo sportivus, Capitalisme, sport et religion (Gallimard); Le marché de Dieu, Économie du judaïsme, du christianisme et de l’islam.

Eis o artigo.

Das três grandes religiões da Bíblia, o judaísmo, o cristianismo e o islamismo, qual é a mais próxima do capitalismo? Dos séculos de anti-semitismo aprendemos, nas gerações anteriores, que era o judaísmo. Um renomado sociólogo alemão, Werner Sombart, chegou inclusive a escrever um livro inteiro sobre este assunto. (1) O profeta do Islã, entretanto, foi, em primeiro lugar, um mercador, e as caravanas que ele enviou em missão não tinham lições a receber de ninguém em matéria econômica. O cristianismo, por sua vez, parecia, durante muito tempo, mais distante da esfera mercantil com estas famosas palavras de Cristo: “É mais fácil passar um camelo pelo buraco de uma agulha, do que um rico entrar no Reino de Deus”. (2) Certamente, Max Weber, em seu famosíssimo ensaio, (3) mostrou que um ramo do cristianismo, depois da Reforma, não era inteiramente estranho aos assuntos do dinheiro, mas, por seu sucesso, A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo foi incapaz de ver as relações profundas e antigas, bem anteriores a Lutero, que se formaram entre o cristianismo e o capitalismo. De alguma maneira, Weber lavou o dinheiro de outros ramos do cristianismo e esqueceu que a Igreja, durante séculos, foi a maior potência capitalista do mundo. De modo especial, ao contrário do sociólogo alemão, podemos argumentar que sem o cristianismo tout court, não haveria capitalismo. É este lado obscuro, ou negado, da religião cristã, que gostaríamos aqui de destacar.

O Código Napoleônico redescobre o Direito Romano

Comecemos pelo óbvio: não há capitalismo sem capital e não há capital sem propriedade e, portanto, sem direito de propriedade. A Roma Antiga instituiu os três componentes deste direito fundamental: o usus (desfrutar da sua propriedade), o fructus (para ganhar a renda ou os juros), o abusus (poder dar ou vender). Mas este ensinamento se perdeu com a queda do Império Romano do Ocidente, o que mergulhou a Europa durante vários séculos em uma profunda estagnação econômica e demográfica.

De modo geral, data-se no século XVIII a redescoberta de um direito de propriedade à romana. A ideia que se difundiu entre os teóricos da Escola do Direito Natural (4), na época do Iluminismo, é que a propriedade constitui a implementação de um direito inato do homem sobre as coisas ao seu redor. O resultado mais óbvio e mais evidente desta reinvenção foi oCódigo Civil Napoleônico, que consagra, de fato, os três componentes do direito de propriedade e permitiu que a burguesia decolasse na França e em todos os países onde este código foi implantado. O Código inspirou a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, especialmente no artigo II: “O objetivo de toda associação política é a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem. Esses direitos são a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão”.

De fato, a inovação em questão poderia ser a reabilitação dos elementos emprestados da teoria da propriedade desenvolvida pelos teólogos do final da Idade Média. O direito de propriedade do Código Civil, que parece extraído diretamente do direito romano – e sabemos a paixão da Revolução e do Império pela Antiguidade romana –, seria, na verdade, a versão secularizada de uma estrutura, cujo primeiro modelo encontra-se entre os pensadores da Igreja. (5) Persiga a religião pela porta, e ela retorna pela janela – especialmente quando se trata do dinheiro!

Uma missão confiada a Deus pelo homem

Até os séculos IV e V, aos olhos dos Padres da Igreja, a apropriação privada é uma usurpação e vem destruir um estado originário que ignorava o seu e o meu. Esta propriedade privada, ensinavam, não separa somente os homens entre si; ela os separa também de Deus, fazendo desaparecer esse estado primigênio, onde nada era de ninguém porque tudo era de Deus. A rigor, como no judaísmo antigo e no islamismo primitivo, poderíamos conceber um direito de propriedade limitado ao usus, e, o que é mais importante, limitado pelas necessidades do Estado ou do bem comum. Mas, certamente, não é esse direito de propriedade, mais absoluto ainda do que aquele do direito romano, que os teólogos cristãos, do século XI ao XIII, vão inventar.

Esses teólogos, para estabelecer um direito de propriedade completo e absoluto, vão remontar não à Lei das Doze Tábuas (450 a.C.), a matriz do direito romano, mas vão retroceder muito mais, até… Adão, o pai de todos nós. A Bíblia nos ensina, com efeito, que o primeiro homem é “senhor do mundo” pela vontade de Deus. (6) O primeiro homem é entronizado por Deus como seu ministro na terra, e, portanto, pode exercer um direito de propriedade sobre o universo inteiro, e não apenas sobre esse pequeno pedaço que constitui a Terra prometida ao povo hebreu. Os historiadores modernos do direito natural encontraram, dessa forma, sem se dar conta, o que era para os teólogos não um direito natural, mas uma espécie de missão confiada por Deus ao homem.

Os primeiros vestígios desse trabalho sobre a Bíblia encontram-se em Hugues de Saint Victor (1096-1141), e Alexandre de Halès (1180-1245). Estes dois eminentes teólogos nos lembram que o homem é superior às outras criaturas e que o poder da dominação que se exerce sobre elas é necessário para a ordem e a beleza do universo querida por Deus, apesar do pecado original.

Assim, o direito de propriedade é de origem divina

Em seguida, vem o dominicano Tomás de Aquino (1225-1274), que aperfeiçoou a doutrina. Para o Doutor Angélico, o domínio do homem, por causa do pecado original, já não tem a sua perfeição primeira: ele vai, doravante, responder exclusivamente às necessidades humanas. Ao mesmo tempo, o homem pode fazer coisas que lhe são úteis.

Um outro passo será dado por um certo Jacques Duèze (1244-1334). Originário de uma família da burguesia abastada de Cahors, ele tornou-se papa em 1316 com o nome de João XXII. Ele é o segundo a reinar em Avignon, que se tornou a residência papal. Este brilhante administrador das finanças pontifícias (7) vai situar-se nas antípodas de uma doutrina muito perigosa para os homens do dinheiro que se desenvolve na época. Trata-se da doutrina dos franciscanos, os discípulos do “pequeno irmão dos pobres”, (8) que se afirmam alheios a qualquer forma de propriedade. O domínio sobre as coisas temporais, responde-lhe João XXII, só poderia ter sido dado por quem o pode fazer. Ora, Deus só tem a capacidade de dar uma coisa que lhe pertence. Como não há nenhuma dúvida de que Deus é o dominus, o proprietário do universo, não há dúvida de que o domínio das coisas foi introduzido pela vontade divina. O domínio humano não foi, portanto, introduzido por direito humano, mas, como diz a Escritura, por direito divino. O direito de propriedade é, portanto, de origem divina. Daí seu caráter absoluto – exatamente do que o capitalismo tinha necessidade!

A invenção do Purgatório…

Para dar toda a sua força ao novo direito de propriedade absoluta ainda na sua infância, e especialmente ao fructus, era preciso ainda reverter o tabu da usura que entravava o comércio do dinheiro, tanto entre os judeus como entre os muçulmanos e os cristãos. Isso foi feito através da invenção do… Purgatório! Até o século XIII, o pós morte foi dividido em duas partes distintas e opostas: o Paraíso e o Inferno. Esta divisão tinha a desvantagem de não estabelecer uma proporcionalidade entre o pecado e a sentença. À medida que o cristianismo finca suas raízes mais profundamente na sociedade, faz-se necessário um sistema menos rudimentar para governar as almas. Assim, deve aparecer, ao longo do século XII, um novo tipo de pecado, o pecado venial – o que significa digno de perdão –, diferente do pecado mortal. Na sequência, se estabelecerá que, se os pecadores, na hora da morte, estiverem carregados apenas com pecados veniais, eles não são condenados à perpetuidade, mas a um tempo limitado de suplício em um lugar para purgar as faltas, o Purgatório. Os mortos que foram para este lugar beneficiam-se, assim, de um suplemento de vida! Acima de tudo, eles estão seguros de que, ao sair das suas provas de purificação, serão salvos. Porque o Purgatório só tem uma porta de saída, aquela que abre para o Paraíso.

…ou pequenos arranjos com os mortos

A duração da permanência nas chamas purgativas não depende somente do número e da gravidade dos pecados do morto, mas também da afeição dos seus familiares – que se manifesta através de orações e oferendas, uma oportunidade adicional para a Igreja receber doações e legados.

Para que os usurários evitem a condenação do Inferno, bastava fazer da sua culpa um pecado venial. Para isso, a taxa de juros deve ser moderada, ou seja, não pode ultrapassar um determinado limiar considerado como “usurário”. Então passamos a encontrar desculpas para a cobrança de juros. Considerou-se que o credor, caso não for reembolsado na data prevista, incorre em danos que podem ser indenizados com um juro. Ou ainda, de maneira mais sutil, que o credor, separando-se desta parte do seu capital, foi impedido de investir este dinheiro em um lugar talvez mais vantajoso. (9) Enfim, considerou-se que o credor incorre no risco de não ser reembolsado, seja por causa da insolvência do devedor, seja por má-fé.

Esta noção chave é estendida da atividade do credor à do negociante por um gênio incompreendido da época, o franciscano Pierre de Jean Olivi (1248-1298). Grande adversário de Tomás de Aquino, perseguido pelas autoridades eclesiásticas de seu tempo, ele foi objeto, depois da sua morte, de uma verdadeira devoção popular. Para acabar com ela, os restos do seu corpo foram desenterrados e cremados e seu túmulo foi destruído…

O capitalismo uma vez libertado da religião

Olivi anunciou os novos tempos. Para ele, de fato, o comerciante tem direito a uma recompensa não só pelos riscos que o negócio envolve, mas também porque mostra a sua capacidade de avaliar e controlar os riscos que comporta a prática comercial. O negociante pode, portanto, vender suas mercadorias a um preço mais elevado do que aquele de quem comprou, porque tem uma função útil à coletividade e porque assume riscos. Quanto às operações de crédito, elas escapam da condenação da usura se elas são feitas em função das operações comerciais úteis à coletividade.

O buraco que aqui se abriu, nunca mais se fechará. A primeira aparição conhecida de um contrato de seguro data de 1287, sob a forma de uma escritura notarial, redigida por um notário de Palermo. Depois disso, o seu uso se espalharia favorecendo a exploração dos mecanismos de mercado para a partilha dos riscos.

Por isso, o capitalismo, uma vez libertado das cadeias religiosas pelos próprios religiosos, pôde prosperar, devorar seus próprios genitores e partir para a conquista do mundo inteiro. Nós vivemos os últimos momentos desse triunfo global.

Notas:

(1) Les Juifs et la vie économique, traduzido do alemão com a permissão do autor, pelo doutor S. Jankélévitch, Paris, Payot, 1923.

(2) Marcos 10,17-30. Citamos ainda: “Vocês não podem servir a dois senhores, a Deus e a Mammon”, Mateus 6,24; “Bem-aventurados os pobres em espírito”, Mateus 5,3. Sem esquecer que Jesus expulsou com um chicote os mercadores do Templo, João 2,13-22.

(3) L’Éthique protestante et l’esprit du capitalisme, precedido de Remarque préliminaire au recueil d’études de sociologie de la religion, e seguido de Les Sectes protestantes et l’esprit du capitalisme / trad. de l’allemand, introd. et notes par Isabelle Kalinowski, Flammarion, 2000.

(4) Escola que extrai o direito da “natureza” do homem, ao contrário da Escola Positivista que faz do direito uma criação de uma autoridade (Deus, Estado), para dizê-lo de forma sucinta.

(5) Origines théologiques du concept moderne de propriété, Marie-France Renoux-Zagamé, Genebra; Paris: Droz, 1987.

(6) “Deus disse: ‘Façamos o homem à nossa imagem e segundo nossa semelhança. para que domine sobre os peixes do mar, as aves do céu, os animais domésticos e todos os animais selvagens e todos os répteis que se arrastam sobre a terra’. Deus criou o homem à sua imagem, à imagem de Deus o criou, macho e fêmea ele os criou. E Deus os abençoou e lhes disse: ‘Sede fecundos e multiplicai-vos, enchei e subjugai a terra! Dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu e sobre tudo que vive e se move sobre a terra’. Deus disse: ‘Eis que vos dou toda erva de semente, que existe sobre toda a face da terra, e toda árvore que produz fruto com semente, para vos servirem de alimento’” (Gênesis 1,26-30).

(7) Les Papes, l’Église et l’argent, Philippe Simonnot, Bayard 2005.

(8) Trata-se certamente de São Francisco de Assis. Este novo “Cristo” (ele ostentava os estigmas do Crucificado no final da sua vida) poderia ter colocado em perigo a autoridade do Papa e se tornado um herege. Mas, ao contrário, preferiu ser submisso.

(9) É o que se chama, na literatura econômica contemporânea, de custo de oportunidade.

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