Como a soja tomou conta dos assentamentos familiares na Amazônia

Há duas décadas, Evanir e Danilo Pertile migraram para iniciar a agricultura em Querência, na Amazônia brasileira. Agora, as plantações de soja criam desafios para pequenos produtores como eles (Imagem: Flávia Milhorance)

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Flávia Milhorance

24 de fevereiro de 2023

Pequenos agricultores no Brasil estão desistindo de culturas alimentares e arriscando dívidas, atraídos pelo grande negócio de exportação de soja.

Uma placa apagada na esquina da rodovia MT-110 com uma estrada de terra sinaliza “Setor 1”. Ao virar à esquerda, entro no assentamento agrário Pingo D’Água, no município de Querência, Mato Grosso. Percorro cerca de 10 quilómetros ao longo de plantações de soja que se estendem a perder de vista, até chegar a um lote que se destaca nesta paisagem monótona.

A estrada em direção à propriedade é contornada por árvores, a rara sombra amenizando o intenso calor da região. Percebo que são seringueiras, típicas da Amazônia, de onde se extrai o látex para a produção da borracha. Entrando na propriedade, passo por mandiocas e árvores frutíferas – abacaxi, abacate e acerola – até parar em frente a uma casa rodeada de flores.

O látex líquido bruto escorre de linhas diagonais na casca de uma seringueira nas terras dos Pertiles. A técnica é bastante difundida entre as comunidades da Amazônia, na qual os agricultores familiares se inspiraram (Imagem: Flávia Milhorance)

Danilo Pertile, 73, e sua esposa Evanir Pertile, 69, me recebem em sua ampla varanda. Eles me contam como o assentamento, originalmente destinado a agricultores familiares pobres para produzir principalmente alimentos, foi se transformando ao longo do tempo. “Começou com pequenas plantações, depois expandiram e os pequenos agricultores venderam suas roças”, conta Evanir. “Agora, é praticamente só soja.”

Querência tem quase tudo que a indústria da soja precisa: terras planas, solo bom, infraestrutura e a presença de grandes bancos e traders, como Bunge, Cargill e Amaggi. “O que faltou?” pergunta o economista e biólogo Rafael Barbieri. “Terra. E onde havia terra? Nos assentamentos.”

Com a escassez de terras agrícolas no município, a indústria da soja voltou sua atenção para os agricultores familiares, que vivem e trabalham na terra e normalmente ganham menos de R$ 500.000 por ano , segundo Barbieri, autor de um estudo para o Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM) sobre o que vem acontecendo em Pingo D’Água.

Soja cresce em lavoura em área desmatada em Querência (Imagem: Flávia Milhorance)

“A soja vem ocupando os assentamentos de forma muito agressiva, o que é uma grande preocupação”, diz Richard Smith, coordenador regional do IPAM, que visa incentivar cadeias produtivas alternativas. “Nossa missão não é superar a soja, mas salvar a agricultura familiar.”

Os produtores de capital e de soja geralmente vêm de fora da região, às vezes de fora do país. Enquanto isso, famílias de agricultores deixaram de cultivar alimentos ou migraram para regiões menos caras – ou tentaram resistir às pressões.

“A soja está dificultando cada vez mais”, diz Danilo, cuja pequena agropecuária se concentra na produção e comercialização de diversas frutas, mandioca, borracha e palmito. Além da especulação imobiliária, Danilo explica que, com menos agricultores familiares, enfraqueceram as estruturas cooperativas que sustentavam o assentamento. Os investimentos se concentram na cultura da soja – dezenas de silos de armazenamento surgiram em Querência nos últimos anos – enquanto as linhas de crédito para pequenos agricultores diminuíram.

Um vasto silo e uma instalação de processamento de soja marcam a paisagem na chegada a Querência (Imagem: Flávia Milhorance)

Além disso, aviões sobrevoam os campos de soja próximos pulverizando agroquímicos tóxicos. “Eles também passam por cima de nós”, diz Danilo. Embora a produção do casal não seja orgânica, eles dizem aplicar o mínimo possível de agrotóxico. Com a intensificação da pulverização aérea, eles notaram algumas de suas espécies frutíferas produzindo menos do que antes ou até, nas palavras de Evanir, “morrendo murchas”.

Floresta perdida

Nem sempre foi assim. O casal chegou a Querência há duas décadas, deixando uma área rural disputada no sul do Brasil (nt.: ou seja, do RS, SC ou PR. Ainda levados pela famigerada política lá dos anos da ditadura militar que representou a destruição tanto da Amazônia como do Cerrado) para tentar um pedaço de terra no centro-oeste. “Era quase tudo mata”, lembra Danilo. “Eram poucos moradores e gado”, acrescenta Evanir.

Os Pertiles inspecionam uma aceroleira, que produz uma fruta parecida com a cereja e é nativa das regiões tropicais das Américas. O casal cultiva várias frutas e verduras em sua terra (Imagem: Flávia Milhorance)

Assim como em outras áreas da Amazônia, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), órgão do governo federal, tem distribuído terras a fazendeiros para potencializar a ocupação da região, onde os povos indígenas habitam o bioma há milênios e, em muitos casos, foram expulsos de seus territórios. Criado em 1970, durante a ditadura militar brasileira, o INCRA ainda assenta pequenos agricultores em propriedades improdutivas ou terras públicas não utilizadas.

Em 1998, o INCRA distribuiu lotes de terra em uma propriedade de 40.000 hectares para cerca de 550 famílias, entre elas os Pertiles. Naquele ano, as pastagens ocupavam apenas 4% do Pingo D’Água, segundo nossa análise baseada na plataforma Mapbiomas. O resto era floresta amazônica. Em apenas seis anos, a pecuária já ocupava metade da área, destruindo com ela a mata nativa. Mas a maior transformação ainda estava por vir.

Ao longo das décadas, os incentivos do governo federal à agricultura intensiva e o aumento progressivo das exportações, principalmente para a China, levaram a uma enorme expansão da produção de soja que se espalhou do sul para o centro do Brasil. Várias cidades do Centro-Oeste cresceram com a demanda do mercado internacional por soja.

Entre eles estava a Querência, que está entre os 10 maiores produtores de soja do Brasil há pelo menos uma década. A soja já havia tomado a maior parte das áreas agrícolas do município – e logo invadiu os assentamentos.

No Pingo D’Água, a cultura da soja avançou progressivamente até ultrapassar a pecuária em 2018, em termos de área ocupada. Desde então, os campos de soja continuaram a se expandir à medida que as pastagens e as florestas diminuíam. Em 2021, somente a soja ocupou mais da metade do assentamento, restando a mata nativa em menos de 15%, segundo dados do Mapbiomas.

O fenômeno surpreendeu Barbieri, já que a soja costuma ser mais viável em grandes áreas – acima de 200 hectares – onde o ganho de escala reduz custos e riscos associados à monocultura. Mas o exemplo de Pingo D’Água não é mais exceção no país: processos semelhantes já ocorreram em outros pólos agroexportadores, inclusive em outros assentamentos do entorno de Querência.

Desafio para a produção de alimentos

Os agricultores familiares desempenham um papel importante no abastecimento de alimentos do Brasil. Embora não esteja claro o tamanho exato de sua participação , eles são responsáveis ​​pela maior parte da produção de hortaliças, frutas, leite de vaca e carnes (excluindo carne bovina e de frango), segundo nossa análise do Censo Agropecuário 2017, a mais recente disponível. Mas o número de propriedades ocupadas pela agricultura familiar diminuiu 9,5% em relação a 2006.

Isso significa que os ganhos que a soja está obtendo na agricultura familiar aumentam as preocupações com a segurança alimentar. Cerca de 60% da soja brasileira é exportada, segundo dados da Companhia Nacional de Abastecimento (CONAB), entidade agropecuária estadual. Os grãos que permanecem no Brasil não são consumidos diretamente pelo homem, na forma de tofu ou leite de soja, por exemplo, segundo levantamento da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação, mas são usados ​​principalmente para ração animal e biodiesel.

Em diversas ocasiões durante sua campanha eleitoral em 2022, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva defendeu o incentivo à agricultura familiar como estratégia de combate ao aumento da fome que se alastra pelo Brasil. Segundo estimativas recentes, mais de 33 milhões de brasileiros não têm o suficiente para comer todos os dias. Em evento em setembro, pouco antes do primeiro turno das eleições, Lula disse que seu plano garantiria “alimentos saudáveis, de melhor qualidade e mais baratos”.

Assim que assumiu a presidência, em janeiro, Lula criou o Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar, que será responsável pela gestão do INCRA e das políticas de incentivo ao pequeno produtor rural. Anteriormente, essas funções eram da responsabilidade do Ministério da Agricultura.

Mas o presidente enfrentará oposição. As mudanças já desagradaram a bancada ruralista, entidade que reúne cerca de 280 parlamentares ligados ao . “O que nos preocupa hoje é como ficará essa reorganização dos ministérios”, disse  recentemente seu líder, Pedro Lupion. “Infelizmente, o Ministério da Agricultura foi enfraquecido.” Segundo Lupion, a separação da gestão da agricultura familiar e dos médios e grandes produtores “compromete a estratégia de crescimento” da agroindústria (nt.: DESTACAMOS PORQUE ESTA É A ESSÊNCIA DA VISÃO DOS LIGADOS AO FAMIGERADO AGRONEGÓCIO. A INTENÇÃO É CONFUNDIR TUDO: AGRICULTURA FAMILIAR COM COMMODITIES COMO SE TUDO FOSSE A MESMA COISA. ISSO FOI QUE O GOVERNO TEMER COM A GLOBO E SEU ‘AGRO É POP’ BUSCAM LEVAR PARA OS CONSUMIDORES URBANOS, DEPOIS DA QUEDA DA DILMA. FALÁCIA!! OS PODEROSOS TEM ACESSO A TUDO E OS PEQUENOS SÃO ALIJADOS E CADA VEZ VÃO DESAPARECENDO MAIS COMO MOSTRA ESSA REPORTAGEM!! CRIME HUMANITÁRIO, CORPORATIVO E DE LIDERANÇAS VENAIS POLÍTICAS COMO LUPION ALGUÉM CONHECE A HISTÓRIA DA FAMÍLIA LUPION NO PARANÁ? OLHEM DE ONDE É ESSE TAL DEPUTADO! Por esses dois links dá para se ver que ele é realmente neto de Moises Lupion com sua história no oeste do Paraná).

Além dessa reforma departamental, nenhum plano concreto foi lançado para pequenos ou grandes produtores. Uma das possibilidades em discussão é a criação de um fundo para melhorar a oferta de crédito para a agricultura familiar – um dos principais desafios dos pequenos agricultores.

Um futuro diferente

Sentados no chão da varanda, quatro jovens descansam do trabalho no campo enquanto ouvem os Pertiles falarem sobre o apego à terra e a preocupação com o futuro do assentamento. “Daqui a alguns anos, quem vai produzir alimentos se não houver agricultura familiar?” Evanir pergunta (nt.: pergunta fundamental nesse tempo de usurpação da função social da terra. Hoje é só rentismo e degradação, bem como eliminação de todo o patrimônio da humanidade que são as florestas tropicais em troca de dinheiro).

A casa dos Pertiles é repleta de flores e árvores frutíferas que se destacam em meio à monocultura da soja que cerca a propriedade (Imagem: Flávia Milhorance)

Elias da Silva Benício, 22 anos, é filho de uma família agricultora cuja história é parecida com a de Danilo e Evanir. Mas seus próprios planos são diferentes. “Quando meu pai morrer, no dia seguinte vou plantar soja”, diz sem rodeios, arrancando risadas e aplausos dos demais jovens. “É isso que dá dinheiro, não é?” (nt.: aqui se percebe a ideologia que se implantou nos corações e mentes de todos os jovens que espelham a doutrina de fantasmas famintos de muitos líderes políticos do país, como o sr. Lupion acima).

Benício fala que cultivar hortaliças e frutas “dá muito trabalho, mas não dá renda”. Da agricultura familiar, diz, “sobra pouco, mas da soja sobra muito”. A decepção dos Pertiles é óbvia.

Mas a percepção dos jovens de que a soja é uma forma rápida de ganhar dinheiro não condiz com a realidade. Com base em entrevistas do Pingo D’Água, Barbieri conta que a maioria dos assentados que se dedicaram à lavoura da soja por conta própria, mesmo com experiência, contraíram dívidas difíceis de saldar (nt.: DESTACAMOS PORQUE FOI EXATAMENTE O QUE ACONTECEU NO RIO GRANDE DO SUL NAS DÉCADAS DE 60 E 70 QUANDO OS GRANDES CAPITALISTAS COMPRARAM AS TERRAS DOS PEQUENOS QUE MIGRAM PARA O CENTRO OESTE E NORTE DO PAÍS, SOB OS AUSPÍCIOS DOS DITADORES MILITARES).

O alto custo de produção da soja reduz as chances de lucro dos pequenos produtores e os expõe a riscos. Na ausência de crédito público, os comerciantes e intermediários de soja oferecem assistência técnica, garantia de compra do produto e facilidade de financiamento. Isso parece atraente para os agricultores, mas os preços de compra ficam aquém das expectativas e as taxas de juros são muito altas.

Quando meu pai morrer, no dia seguinte vou plantar soja. É isso que dá dinheiro, não é?

Endividados, os produtores fazem parcerias, arrendam ou vendem suas terras para agricultores com mais capital dentro e fora do assentamento. Como o INCRA proíbe os assentados de arrendar e limita a venda de lotes apenas àqueles com títulos definitivos, a maioria dos agricultores firma contratos de parceria.

O produtor de soja Jonathan Ben conseguiu vender sua produção do ano anterior para um atravessador local, mas teme pelo destino da safra deste ano, cujos brotos começam a surgir em seu terreno de 62 hectares.

“Plantamos porque temos dívidas a pagar”, diz Ben, segurando a filha no colo em frente a sua casa. “Mas você não consegue vender nada. Tudo aqui é embargado.”

Embargos do IBAMA, agência de fiscalização ambiental do governo, na compra de soja de terras desmatadas ilegalmente foram introduzidos em uma tentativa de proteger a floresta amazônica. Mas os agricultores do assentamento foram involuntariamente apanhados na complexa burocracia. Isso limita ainda mais o acesso ao crédito e à venda de produtos. Quando consultamos o banco de dados do IBAMA, encontramos 97 embargos ativos em Pingo D’Água, aplicados entre 2009 e 2019 – nenhum deles em nome de Ben ou Pertile.

O quintal de Ben tem algumas mandiocas, bananeiras e algum gado para consumo próprio. Sua renda depende inteiramente do negócio da soja – tanto com o que ele mesmo planta quanto com os serviços que presta com seu trator e colheitadeira, enormes máquinas estacionadas ao lado de sua casa. Para ganhar a vida, diz ele, “tem que saber trabalhar, tem que ter maquinário, que é caro”.

Ben segue os passos do pai, com quem emigrou do Paraná, no sul, para Querência em 2003. Para ele, a soja está menos ligada ao atual boom do mercado e mais ao hábito: “Desde os 11 anos , 12 anos, sempre trabalhamos nessa safra.”

O hábito também mantém os Pertiles em um negócio que enfrenta barreiras cada vez maiores. “Aprendemos a plantar desde muito cedo”, diz Evanir, que teme os impactos de longo prazo da soja em sua lavoura. “Estamos nos virando por enquanto, mas não sabemos por quanto tempo mais conseguiremos produzir.”

Flavia Milhorance, editora brasileira do Dialogo Chino, baseada no Rio de Janeiro.

Tradução livre, parcial, de Luiz Jacques Saldanha, março de 2023.