‘Um ciclo vicioso’: agrotóxicos e mudanças climáticas, um incrementa o outro

O primeiro ano de um experimento em que 33% das plantas de melão foram substituídas por plantas com flores. Rob Faux

https://www.ecowatch.com/pesticides-climate-change.html

Olívia Rosane

20 de fevereiro de 2023

Como o uso de agrotóxicos e as mudanças climáticas pioram um ao outro e o que podemos fazer sobre isso.

A energia necessária para produzir todo o glifosato usado em todo o mundo em 2014 foi equivalente à energia anual necessária para abastecer 6,25 milhões de carros (nt.: destaque em negrito dado pela tradução para mostrar a realidade dos agrotóxicos que nunca se leva para conhecimento público).

Essa é uma das descobertas surpreendentes de “Pesticides and Climate Change: A Vicious Cycle”, um relatório inédito da Pesticide Action Network North America (PANNA) detalhando como esses dois problemas ambientais interagem para tornar nosso sistema alimentar menos justo e resiliente. 

“Descobrimos essencialmente que os impactos das mudanças climáticas estão previstos para piorar as pressões de pragas e tornar os agrotóxicos menos eficazes, aumentando seu uso devido às mudanças climáticas, enquanto, ao mesmo tempo, liberam  emissões de gases de efeito estufa”, disse ao EcoWatch em uma entrevista, a codiretora e organizadora da PANNA além de coautora do relatório, Asha Sharma. 

Um Ciclo Vicioso

Das discussões em torno da pecuária industrial e do consumo de carne ao desmatamento da Amazônia, nos últimos anos tem sido dada maior atenção às maneiras pelas quais o sistema agrícola industrial dominante contribui para a crise climática. Mais de um terço das emissões globais de gases de efeito estufa vêm da produção de alimentos e 31% dessas emissões são geradas pela agricultura. No entanto, embora agrotóxicos e fertilizantes sejam essenciais para a agricultura convencional (nt.: importantíssimo ressaltar que não são essenciais para a produção de alimentos, mas sim para o modelo industrial e irracional de commodities agrícolas que formam o chamado ‘agribusiness’ com tradução para o português como ‘agronegócio’. Se quiser uma comprovação acesse ao link deste nosso website), esses produtos químicos sintéticos foram deixados de fora da discussão sobre clima e agricultura.

Essa omissão pode realmente tornar as coisas mais difíceis para as pessoas que pressionam por um sistema alimentar mais ecologicamente correto e justo. Sharma disse que ela e sua coautora e cientista sênior da PANNA, Margaret Reeves, foram parcialmente motivadas a escrever o relatório porque estavam tendo dificuldades para incluir os planos de redução de agrotóxicos nas regulamentações climáticas da Califórnia.

“Queríamos reunir toda a pesquisa possível para apresentar um argumento convincente aos formuladores de políticas”, disse ela. 

No cerne do argumento está o fato de que os agrotóxicos e a crise climática vêm da mesma fonte. 

“Está tudo relacionado à indústria de combustíveis fósseis”, disse Reeves ao EcoWatch.

Noventa e nove por cento – 99% – de todos os produtos químicos sintéticos, incluindo os agrotóxicos, são feitos de combustíveis fósseis, e as principais empresas de petróleo ExxonMobil (nt.: sempre vale a pena lembrar que essa empresa é da família Rockfeller e toda sua influência no atual momento religioso e político brasileiro, ver os link 1 e 2), ChevronPhillips ChemicalShell fabricam agrotóxicos ou seus precursores químicos. Transformar produtos petroquímicos em agrotóxicos também requer uma enorme quantidade de energia. 

“Outros insumos químicos na agricultura, como fertilizantes nitrogenados, receberam atenção significativa devido a suas contribuições para as emissões de gases de efeito estufa. No entanto, a pesquisa mostrou que a fabricação de um quilo de agrotóxico requer, em média, cerca de 10 vezes mais energia do que um quilo de fertilizante nitrogenado”, escreveram os autores do estudo. 

Os venenos agrícolas geram emissões não apenas quando são produzidos, mas também quando são transportados, aplicados e dispersos no meio ambiente. 

“É importante considerar todo o ciclo de vida”, disse Reeves.

Alguns agrotóxicos – como o fluoreto de enxofre fumigante (nt.: segunda consta, pelo menos até 2016, esse produto não era usado no Brasil) – são eles próprios gases de efeito estufa. Liberar uma tonelada do material é como emitir 4.780 toneladas de dióxido de carbono. Outros podem interagir com óxidos de nitrogênio e luz ultravioleta para formar ozônio ao nível do solo, um poluente do ar e gás de efeito estufa. 

Outra ligação importante entre o uso de agrotóxicos e a crise climática é a maneira como eles podem interagir para tornar nosso sistema alimentar menos resiliente. Espera-se que temperaturas mais altas e condições de seca tornem as plantas menos resistentes a estresses como pragas, além de expandir a gama de espécies de pragas em algumas áreas e prejudicar os úteis predadores de pragas. Ao mesmo tempo, é mais provável que eles se desviem de seu alvo pretendido em condições mais quentes e se degradem mais rapidamente, o que, por sua vez, levará a seu maior uso.

Aqueles que volatizam – ou se transformam em gás – em climas mais quentes têm maior probabilidade de poluir o meio ambiente e prejudicar a saúde pública, expondo os trabalhadores rurais e as comunidades agrícolas a ainda mais perigos. 

“É um golpe duplo para as pessoas que apoiamos há muito, muito tempo”, disse Reeves.

Um Ciclo Vivaz

As autoras do relatório reuniram suas descobertas a partir de estudos científicos revisados ​​por pares, relatórios de outras organizações sem fins lucrativos, sites de agências reguladoras e alto relato de empresas de combustíveis fósseis e agrotóxicos. Elas também concluíram alguns de seus próprios cálculos para colocarem os dados em perspectiva – como comparar a demanda de energia de agrotóxicos e fertilizantes nitrogenados e produção de glifosato e combustível para veículos.

O objetivo de tudo isso não era simplesmente delinear o problema, mas defender soluções que a PANNA acredita que abordarão tanto a crise climática quanto o uso excessivo de agrotóxicos. A principal solução defendida pela organização é a “”. 

“Geralmente significa trabalhar com a natureza e não contra ela”, explicou Sharma. 

Isso inclui usar o mínimo possível de insumos sintéticos (nt.: NUNCA agrotóxicos, transgênicos e adubos solúveis) e ouvir as perspectivas dos mais afetados pela agricultura, como trabalhadores rurais e indígenas ou comunidades locais. Também significa confiar na biodiversidade para melhorar a saúde do solo e das culturas e gerar “um ciclo vivo de nutrientes e prevenção de pragas”, escreveram os autores do estudo. 

Eles também expressaram preocupação de que, se os agrotóxicos não fossem incluídos na conversa sobre clima e agricultura, os governos poderão imaginar soluções nacionais como plantio direto ou agricultura de precisão. No entanto, essas alternativas ainda dependem de produtos químicos sintéticos ou dão às grandes empresas do agronegócio muito controle sobre a produção de commodities (nt.: que querem nos impor como…) alimentos. 

Em contraste, os autores do estudo pediram três soluções principais: 

  1. Incluindo metas de redução de agrotóxicos nas metas climáticas do governo: a PANNA aconselhou reduzir seu uso em 50% até 2030 e em 90% até 2050, bem como estabelecer metas para reduzir sua toxicidade, eliminando gradualmente os altamente perigosos e fazer a transição de 30% das terras cultivadas para agroecologia ou agricultura orgânica até 2030.
  2. Aumentar o financiamento para pesquisa agrícola e agricultura orgânica/agroecológica: O relatório pede aos governos que invistam em programas que incentivem o compartilhamento de conhecimento entre fazendas, aumentem a assistência técnica e a ajuda financeira aos agricultores que praticam ou desejam praticar agroecologia e adquirirem produtos de fazendas agroecológicas ou orgânicas.
  3. Apoiar os direitos dos trabalhadores agrícolas e outras comunidades da linha de frente: os autores do relatório recomendaram medidas, incluindo fornecer um caminho para a cidadania para os trabalhadores agrícolas, protegendo seus direitos à negociação coletiva, ajudando-os a acessarem e possuírem terras e centralizarem sua liderança na elaboração de políticas de agrotóxicos. 

Na linha de frente em Fresno

Um exemplo de comunidade de linha de frente cujos esforços podem ser auxiliados pelo novo relatório é o Central Valley, na Califórnia. Os oito condados deste centro agrícola são onde são aplicados mais de 61% dos mais de 90 mil toneladas de agrotóxicos usados ​​nesse estado, disse o diretor executivo da Central California Environmental Justice Network (CCEJN), Nayamin Martinez, ao EcoWatch. No município de Fresno, onde ela mora, é o líder na aplicação. 

Isso tem sérias consequências para a saúde dos trabalhadores rurais e das comunidades locais – alguns dos quais vivem a 15 a 60 metros de pomares onde os agrotóxicos são pulverizados. Isso pode levar a intoxicações agudas, mas também à exposição crônica, com os moradores locais desenvolvendo câncer (nt.: ou retardo mental como mostra o documentário do link anterior sobre exposição crônica) após 30 anos vivendo e trabalhando com agrotóxicos difíceis de rastrear definitivamente até os produtos químicos. Embora os incidentes nos quais os trabalhadores rurais sejam diretamente “atingidos” – ou acidentalmente inundados com agrotóxicos no campo – estejam diminuindo, eles ainda ocorrem. Em um incidente recente em Fresno, quase 40 trabalhadores foram atingidos por engano.

“Realmente queremos que agrotóxicos não sejam usados”, disse Nayamin. 

O Central Valley também é extremamente vulnerável à crise climática. 

“Você cita um exemplo e eu lhe darei dez maneiras”, disse Nayamin. 

Verões mais quentes e incêndios florestais mais extremos tornam o trabalho agrícola ao ar livre mais perigoso, enquanto a seca contínua esgota os aquíferos, deixando comunidades sem acesso à água e trabalhadores agrícolas sem trabalho quando os agricultores com falta de água optam por deixar alguns campos em pousio. 

Os dois problemas também podem interagir. 

“Os agrotóxicos, como apontou esse relatório, estão realmente exacerbando outros problemas que temos, especialmente aqui no Central Valley”, disse ela. 

Um exemplo principal é a poluição por ozônio, que é agravada tanto pelas emissões de agrotóxicos quanto pelo alto calor. No entanto, tem sido uma luta para Nayamin e a CCEJN incluir agrotóxicos nas regulamentações estaduais de qualidade do ar e clima. Por exemplo, as emissões de ozônio no Central Valley são atualmente mais altas do que deveriam, mas ao revisar o Plano Estadual de Implementação (SIP) para a qualidade do ar sob a Lei do Ar Limpo, a CCEJN não encontrou nenhuma menção a eles. 

São lacunas como essa que Nayamin espera que o relatório os ajude a preencher no futuro. 

“Acho que minha única preocupação é que não saiu no ano passado”, disse Nayamin. 

Foi quando ela e outros defensores estavam trabalhando com o Conselho de Recursos Aéreos da Califórnia no Plano de Escopo de 2022 para Alcançar a Neutralidade do Carbono

“Estávamos pressionando para que o Plano de Escopo incluísse agrotóxicos, porque para nós era como você está falando sobre mudança climática. Como não incluir agrotóxicos?” Nayamin perguntou. 

Os defensores conseguiram incluir alvos para o agrotóxico 1,3-dicloropropeno (Telone) no plano, mas, em geral, Nayamin expressou esperança de que as futuras regulamentações climáticas da Califórnia incluam mais alvos de agrotóxicos e que o relatório a ajude e a outros defensores a reforçarem o caso para incluí-los. 

Além de pressionar por regulamentações, a CCEJN também está em sintonia com o apoio do relatório à agroecologia. Com outras organizações, conseguiu financiamento para lançar uma fazenda de demonstração no sudoeste de Fresno em dois meses, que ensinará práticas agroecológicas a trabalhadores rurais e famílias de baixa renda da região. Eventualmente, Nayamin espera que o centro se transforme em uma cooperativa onde trabalhadores rurais e membros da comunidade possam cultivar e vender seus próprios produtos.

“É uma forma de demonstrar que existe outra maneira de cultivar alimentos”, disse Naymain.

Outra maneira: Fazenda Genuína de Faux

Rob Faux, que administra a Genuine Faux Farm no nordeste de Iowa, é a prova viva dessa verdade. Faux, que atuou como o primeiro leitor do relatório, tem cultivado “incríveis 06 hectares” sem agrotóxicos de qualquer tipo desde 2004. Faux disse ao EcoWatch que sua fazenda “segue práticas agroecológicas”, embora reconheça que não tem acesso ao conhecimento tradicional herdado que os agricultores indígenas fazem. 

Cercado por grandes fazendas de monoculturas em linha, Faux disse que teve sucesso com sua abordagem alternativa, produzindo até 15 toneladas de alimentos em uma única estação de cultivo. Como ele consegue isso sem agrotóxicos?

“Nossa maior ferramenta nesta fazenda é a diversidade”, disse Faux. 

Além de cultivar até 35 safras por temporada e criar perus e galinhas, Faux também incentivou a biodiversidade natural de seu terreno, deixando algumas áreas para um crescimento selvagem e plantando plantas nativas da pradaria. Quando Faux começou, ele herdou terras que eram convencionalmente usadas para cultivar soja e milho. Durante os primeiros cinco anos de uma abordagem diferente, as pragas devoravam entre 70 a 90 por cento de suas plantas de abóbora, forçando-o a plantar demais para ter qualquer colheita. Mas, cinco anos depois de sua abordagem, Faux notou uma melhora.

“Com o passar do tempo e conforme construímos o ecossistema, os predadores naturais começaram a voltar”, disse Faux. “E de repente não estávamos conseguindo esses picos monstruosos da praga. Eles ainda estavam lá, e ainda estão lá hoje, mas em números que não nos causam danos econômicos. Então, agora, quando quero plantar abóbora, na verdade descubro que superproduzo com mais frequência do que não.”

Em outro exemplo, por volta de 2015, Faux decidiu remover 33% de suas plantas de melão e substituí-las por plantas com flores, incluindo borragem, zínias e calêndulas. O experimento não apenas criou um “campo bonito” cheio de polinizadores, mas também rendeu 33% mais melões do que nos anos anteriores. Quando Faux repetiu o experimento no ano seguinte, obteve o mesmo resultado. Uma verdadeira vitória da diversidade. 

Faux enfrentou muitos desafios em seus quase 20 anos de agricultura. Ele notou que os impactos da crise climática começaram a se intensificar a partir de 2008, com tempestades extremas, chuvas de um em 1.000 anos, secas e visitas de pragas fora de alcance.

“Uma das coisas que começamos a dizer é que gostaríamos de ter uma temporada em que não estabelecemos algum tipo de recorde”, disse ele. 

Ele também notou, em geral, que a área parece menos saudável do que antes.

“As árvores não parecem tão verdes, as folhas não são tão grandes. Não parece certo. Parece que estamos ficando doentes. Parece que toda a paisagem está ficando doente ao meu redor”, disse ele. “E isso é em parte a mudança climática. Mas precisamos abordar o fato de que as mudanças climáticas e o uso de agrotóxicos e as práticas agrícolas que os acompanham são uma grande parte do que está impulsionando todas essas mudanças”.

Mas ele também notou sinais de esperança, e não apenas em sua pequena fazenda alternativa. Um de seus vizinhos – um cultivador convencional – escolheu, há três anos, dedicar 20 hectares de sua fazenda à criação de um habitat para polinizadores. Desde então, Faux notou que o número de polinizadores aumentou em sua própria fazenda e flores silvestres começaram a florescer nas valas vizinhas. 

Diz que isso lhe ensinou duas coisas. A primeira é que os agricultores convencionais estão abertos a novas formas de fazer as coisas. A segunda é que a natureza permanece extremamente poderosa e resiliente quando deixada por conta própria. 

“Quando falamos sobre como ‘Oh, como as coisas estão ruins’, também precisamos falar sobre ‘Oh, como as coisas podem ser boas?’, ele disse.

Olivia Rosane é uma escritora e repórter freelancer com uma década de experiência. Ela contribui diariamente para o EcoWatch desde 2018 e também cobriu temas ambientais para Treehugger, The Trouble, YES! Revista e Vida Real. Ela tem um Ph.D. em Literatura Inglesa pela Universidade de Cambridge e mestre em Arte e Política pela Goldsmiths, Universidade de Londres.

Tradução livre, parcial, de Luiz Jacques Saldanha, fevereiro de 2023.