https://www.ecodebate.com.br/2024/04/22/povos-indigenas-os-guardioes-da-ecologia-integral/
Juacy da Silva e Priscilla Alyne Sumaio Soares
22 de abril de 2024
[NOTA DO WEBSITE: O mundo começa, enfim, a reconhecer que existem outros seres humanos além dos supremaistas brancos eurocêntricos. Inclusive fato que está cada vez mais claro para os próprios europeus e seus eurodescendentes espalhados por todo o planeta. Ainda não conseguem, no entanto, muitos deles constatar de que mais do que ‘ecologistas’ são, intrinsicamente, Seres Coletivos, conforme nos despertou Ailton Krenak. Mas temos que honrar esses movimentos, destacando o Papa com os povos originários do Canadá, o governo holandês com os povos originários africanos e agora, a presidência de Portugal, declarando explicitamente suas desculpas tanto no que fez com os povos africanos como com os Povos Originários de todos os continentes por onde passou. Acolhemos com humildade esse momento porque poderá ser a grande abertura para outros tempos. Tempos onde possamos sair da situação arrogante e pretensiosa de querer ‘dominar’ a Natureza, desconhecndo de que tudo é sagrado e que somos somente uma das partes que compõe a Vida na Terra. Que esses novos tempos sejam acolhidos e que, inteligente e humildemente, colhamos os frutos que os povos originários querem conosco, todos, compartilhar].
“O ano de 2022 representou o fim de um ciclo governamental marcado por violações e pela intensificação da violência contra os povos indígenas do Brasil. Como nos três anos anteriores, os conflitos e a grande quantidade de invasões e danos aos territórios indígenas avançaram lado a lado com o desmonte das políticas públicas voltadas aos povos originários, como assistência em saúde, educação e com o desmantelamento dos órgãos responsáveis pela fiscalização e proteção desses territórios”. Fonte: Relatório Violência contra os povos indígenas no Brasil. Dados de 2022 – CIMI – Conselho Indigenista Missionário.
Estamos em plena Semana dos Povos Indígenas no Brasil, com destaque para o DIA DOS POVOS INDÍGENAS, que desde o ano de 2022, passou a ser comemorado em 19 de Abril, em substituição ao então denominado “DIA DO ÍNDIO”.
Como resultado das deliberações e reflexões do primeiro Congresso Indigenista Interamericano, realizado no México em abril de 1940, foi destacado que era e continua sendo necessário um destaque para a realidade dos povos indígenas do continente Americano, como forma de luta em defesa dos direitos e da cultura de milhares de povos distintos e que até recentemente eram considerados apenas índios.
No Brasil, em plena ditadura de Getúlio Vargas durante o Estado Novo, um dos períodos mais autoritários da história do Brasil, período , `a semelhança da ditadura militar que vigorou entre abril de 1964 ate 1985, em que se destacaram a censura, a tortura, as prisões arbitrárias e tantas outras formas autoritárias de governo, parece contraditório que o ditador de plantão tenha sido o responsável pela instituição do DIA DO ÍNDIO, através do Decreto-Lei 5.540, de 02 de Junho de 1943, como forma de celebrar os direitos dos povos indígenas.
No entanto, esta denominação tentava homogeneizar mais de 300 culturas, costumes, tradições e expressões linguísticas de inúmeros povos distintos que sempre existiram no território brasileiro, mas que ao longo de nossa história tem sido vítimas de violência, preconceito e extinção.
Quando do descobrimento do Brasil, mesmo que as informações demográficas e estatísticas não sejam coerentes ou até bem diferentes, calcula-se que os povos indígenas representavam mais de 6 milhões de pessoas, apesar de que os colonizadores e seus descendentes até hoje não consideram os indígenas como seres humanos, razão mais do que suficiente para justificar os preconceitos, as inúmeras formas de discriminação, exclusão e até mesmo a escravidão, afora a imposição de valores e formas religiosas que desrespeitam esses povos primitivos ou originários.
Durante 80 anos, de 1943 até 2022, quando o Congresso rejeitou o veto do então Presidente Bolsonaro, a um projeto de Lei aprovado pelo Congresso Nacional, que com sua ideologia de extrema direita, da mesma forma que seus seguidores, principalmente os barões do agronegócio, demonstrou uma aversão pelos povos originários, os povos indígenas.
Por iniciativa da Deputada Federal Joenia Wapichana, do partido REDE – RR, partido este surgido da luta ambientalista da então senadora e atualmente Ministra do Meio Ambiente e Mudanças do Clima, Marina Silva, foi apresentado o projeto de Lei 5.466/19, que após tramitar no Congresso Nacional foi aprovado, mas acabou sendo vetado integralmente por Bolsonaro. No entanto, o Congresso Nacional “derrubou” o veto presidencial, transformando-o na Lei 14.402, de 2022, quando 19 de Abril passou a ser O DIA DOS POVOS INDÍGENAS, em reconhecimento da pluralidade desses povos.
“Para Joenia Wapichana, a intenção ao renomear a data é ressaltar, de forma simbólica, não o valor do indivíduo estigmatizado “índio” mas o valor dos povos indígenas para a sociedade brasileira. “O propósito é reconhecer o direito desses povos de, mantendo e fortalecendo suas identidades, línguas e religiões, assumir tanto o controle de suas próprias instituições e formas de vida quanto de seu desenvolvimento econômico”, afirmou a deputada quando o texto foi aprovado na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara.” Fonte: Agência Câmara de Notícias.
O processo de destruição física e cultural dos povos indígenas, que em alguns momentos beira ou assemelha-se a um verdadeiro genocídio, é um fato reconhecido por historiadores, pesquisadores, demógrafos nacionais e internacionais e também por diversas cortes internacionais e organismos como a OEA e a própria ONU.
Todavia a luta desses povos para garantirem seus direitos de existir como grupos humanos com a mesma dignidade e direitos que são reconhecidos aos não indígenas, os chamados “povos civilizados” , tem sido árdua, tanto por parte de suas lideranças quanto de inúmeras outras organizações civis e religiosas, como o CIMI e outros defensores dos direitos humanos e do meio ambiente, centenas ou milhares dos e das quais já pagaram com suas próprias vidas, considerados e reconhecidos como mártires, ao longo de décadas e séculos. Essa luta e violência tem recrudescidas desde os anos setenta quando aconteceu a expansão das fronteiras agrícolas e econômicas rumo ao Centro-Oeste e Amazônia, onde vivem ainda a grande maioria dos povos indígenas, inclusive alguns povos “isolados”.
Este processo ganhou um grande aliado que tem sido o atual Governo Federal. Durante o período militar com sua visão geopolítica do “integrar para não entregar”, com a abertura de rodovias nessas duas regiões, estimulando a migração e o deslocamento populacional, e também por obras como a construção de usinas hidrelétricas de grande porte que alagaram imensas áreas expulsando tanto os povos indígenas quanto outros “povos das florestas”, como posseiros, agricultores familiares, quilombolas e outros mais era o modelo vigente.
O DIA DOS POVOS INDÍGENAS, não representa um momento de festas, de júbilo; mas sim, de reconhecimento da situação em que vivem tais povos, discriminados, vilipendiados, violentados e “encurralados’ cada vez mais em territórios que não lhes garantem o direito de serem diferentes dos não-indígenas, os chamados “povos civilizados”.
Assim, cremos que este DIA especial possa servir para o reconhecimento de suas lutas, a começar pela luta pela demarcação de suas terras, ameaçadas pela ganância, pela grilagem e pela mineração e garimpo ilegal. Esta luta tem sido contra o chamado MARCO LEGAL, que o Supremo Tribunal Federal reconheceu como inconstitucional, mas que, em seu confronto com o Poder Judiciário, o atual Congresso, de maioria extremamente conservadora e influenciado pela chamada Bancada do Boi, conseguiu aprovar um projeto de Lei instituído o referido MARCO LEGAL como constitucional, gerando um conflito legal, político e institucional perigoso e extremamente complexo.
Contra o MARCO LEGAL há alguns anos os povos indígenas e outras lideranças e instituições não indígenas tem promovido em Abril, de cada ano, o chamado ACAMPAMENTO TERRA LIVRE, como estímulo a esta luta pelas suas terras, seus territórios. Além da luta pela defesa de suas terras, os povos indígenas têm outras frentes de luta, tais como:
Luta contra as formas preconceituosas e todas as formas de discriminação como são tratados; luta para manterem suas culturas, tradições, manifestações religiosas, costumes que estão sendo ameaçadas há séculos; luta pelas suas identidades e suas ancestralidades, seus saberes, seus conhecimentos e seus sistemas próprios de produção e relações de trabalho, de base solidária e não em busca da propriedade privada da terra , dos meios de produção e do lucro capitalista; luta pelos seus direitos humanos fundamentais, a começar pelo direito `a vida, sempre ameaçada pela invasão de seus territórios, por doenças infecto contagiosas disseminadas por grileiros e garimpeiros principalmente; luta pela saúde, contra as doenças como a covid que dizimou milhares de indígenas ou a contaminação por mercúrio usado pelo garimpo ilegal que contamina as águas e os peixes principalmente, contra o desmatamento que acaba com a biodiversidade vegetal e animal, colocando em risco a segurança alimentar dos povos indígenas, contribuindo para aumentar a fome , a desnutrição e a morte entre os mesmos; luta contra a violência generalizada, que tem provocado a morte, principalmente de suas lideranças, como tem ocorrido em todos os estados brasileiros; luta por justiça social, justiça ambiental e justiça inter geracional; enfim, a luta em defesa da natureza e da ECOLOGIA INTEGRAL, que é a base da luta pelo reconhecimento de que os povos indígenas tem o direito constitucional de viverem em harmonia com os demais grupos humanos não indígenas e também em harmonia e em defesa das florestas, das águas, dos rios, das nascentes, do solo, considerados e consideradas terras sagradas, obras da criação.
Por tudo isso, não há dúvida de que os povos indígenas são os grandes guardiões da natureza, do meio ambiente e de uma cosmovisão ou modo de vida que ajuda a combater a destruição e a degradação do Cerrado, da Amazônia, do Pantanal e dos demais biomas brasileiros e, por extensão, contribuem para salvar o planeta deste processo de destruição socioambiental, cujas consequências já estamos sentindo, como, por exemplo o aquecimento global, a mudança ou crise climática, a degradação dos solos, a poluição do ar, das águas, a mudança radical do regime de chuvas e da temperatura, com ondas de calor e de frio intensas.
Em seu terceiro mandato como Presidente da República, Lula retirou a tutela militar que ao longo de quase cem anos marcou as entidades voltadas `a questão indígena, como o antigo Serviço de Proteção aos índios, substituído pela FUNAI e criou o Ministério dos povos originários, sob a liderança de dirigentes indígenas, que melhor conhecem os desafios, as lutas e alimentam um projeto que atenda as necessidades e os sonhos dos povos indígenas do Brasil.
Antes de finalizar esta reflexão vale a pena transcrever e destacar a posição dos Bispos do Brasil, reunidos na 61ª Assembleia Anual da CNBB, entre 10 e 19 de Abril deste ano (2024), na “Mensagem ao povo brasileiro”, que está sendo divulgada, enfatizam que “Os povos indígenas brasileiros, prejudicados por séculos, enfrentam um dos maiores ataques de sua história, por meio do Marco Temporal, que já foi declarado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) como inconstitucional. Há necessidade de melhores políticas públicas na ação concreta em defesa dos povos originários e proteção às suas terras, especialmente no território Yanomâmi”.
Esta luta não é apenas dos povos indígenas, mas de todas as pessoas que se preocupam com a ECOLOGIA INTEGRAL, com os DIREITOS HUMANOS e com uma melhor qualidade de vida e o respeito `a terra sem males e o destino do planeta terra, cujo dia (DIA DA TERRA) também é celebrado anualmente em 22 de Abril.
Não podemos nos distrair, pois ainda é tempo de lutar por nossos recursos naturais e consequentemente, nossas vidas. Como disse Ailton Krenak, “O que é feito de nossos rios, nossas florestas, nossas paisagens? Nós ficamos tão perturbados com o desarranjo regional que vivemos, ficamos tão fora do sério com a falta de perspectiva política, que não conseguimos nos erguer e respirar, ver o que importa mesmo para as pessoas, os coletivos e as comunidades nas suas ecologias.” Fonte: Krenak, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo, São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
Juacy da Silva professor fundador, titular e aposentado da Universidade Federal de Mato Grosso, mestre em sociologia, ambientalista, articulador da Pastoral da Ecologia Integral Centro Oeste. Email [email protected] Instagram @profjuacy
Priscilla Alyne Sumaio Soares, professora substituta da Universidade Federal de Mato Grosso, especialista em Libras, mestre e doutora em linguística, consultora educacional e linguística do Instituto Vem Comigo. E-mail [email protected] Instagram @prisumaio