Krenak foi o primeiro indígena a receber o título de Doutor Honoris Causa pela Universidade de Brasília (UnB) – Manuel de Almeida/Agência Lusa
Lucas Weber
19 de Outubro de 2023
Escritor foi escolhido neste mês para ocupar cadeira na Academia Brasileira Letras, sendo o primeiro indígena eleito
A seca que afeta o Amazonas e tem feito rios desaparecerem não é um fenômeno isolado, defende Ailton Krenak. Considerada por especialistas como a estiagem mais severa que já atingiu a região, a crise hídrica impacta, principalmente, populações ribeirinhas que têm dificuldade de conseguir abastecimentos básicos, como água potável e alimento.
“Os rios estão apresentando essa espécie de mergulho no lençol freático. Eu já disse mais de uma vez que os rios, na verdade, não morrem. Eles fogem do nosso bullying. Eu, se fosse um rio, não ia gostar dos outros cagando, cuspindo em mim. Eu ia mergulhar.”, disse o mais novo imortal da Academia Brasileira de Letras.
“Como os rios viraram esgoto, eles estão mergulhando. Digamos que é uma transição poética do desastre ecológico que implica em queimar as florestas, devastar os ecossistemas todos.”
Imortalidade? Estrume
Os 126 anos de história da Academia Brasileira de Letras (ABL) são pouco para as histórias milenares que Ailton Krenak traz em suas obras. Neste mês, o pensador indígena foi convidado para ocupar a cadeira 5, que estava vaga desde a morte do historiador José Murilo de Carvalho, no último mês de agosto.
Embora se sinta prestigiado com a convocação, o escritor não se vangloria do status de imortal, destinado para os membros da Academia.
“Ela [Academia Brasileira de Letras] não pode me dar nada não, eu venho de outra cosmovisão, eu estou ligado com outras perspectivas.”
“Quer dizer, se eu entrasse nessa história, eu ia achar que os outros podem morrer e eu não. Isso é uma besteira. Nós vamos virar todos, todos, todos estrume, inclusive os imortais.”
No dia que Krenak entrou na ABL, o Brasil celebrava os 35 anos da Constituição Brasileira, promulgada em 5 de outubro de 1988.
Embora não fosse deputado constituinte, tão pouco filiado a algum partido, Krenak participou ativamente deste momento. Um discurso dele, feito no Congresso Nacional, até hoje é repercutido internacionalmente.
Enquanto se pronunciava em defesa de direitos indígenas dentro da Constituição, Krenak pintava seu rosto com tinta extraída de jenipapo.
“Eu fico admirado daquele gesto ter travado uma memória na história do nosso país. Não é qualquer pessoa que consegue marcar uma história da sua geração de uma maneira tão clara”, comenta o escritor.
Este discurso foi objeto de intervenções artísticas em exposições na Cidade do México e também Seul, capital da Coreia do Sul.
Confira a entrevista completa abaixo
Nesta semana, no dia 16 de outubro, foi celebrado o Dia Mundial da Alimentação. De fato temos alguma coisa para comemorar?
Essas datas que, socialmente, a gente foi instituindo no final do século 20, início do 21, não são datas num sentido celebrativo, como a gente faria, por exemplo, a festa de São João.
Elas são datas para alertar a humanidade sobre os graves riscos de colapso, na saúde, na alimentação, na segurança, na convivência, porque nós estamos vivendo a experiência de um mundo em erosão.
A questão da alimentação é uma questão que afeta hoje cerca de 800 milhões de refugiados no planeta, sendo que alguns navios, navios hotel, navios hospedaria, estão encostados nas fronteiras com a Europa, com 250 mil refugiados africanos que não conseguem descer em terra e recebem marmitex pra morrer flutuando no mar, naquela região ali do Mediterrâneo.
Então, a alimentação não pode ser tratada como uma coisa assim, digamos, diretamente relacionado com a oferta de comida.
Ela tem a ver com territórios, com terra. As pessoas estão ficando desterradas. Aqui no Brasil mesmo, a gente tem gente ficando desterrada.
Eles não conseguem mais produzir seus alimentos e dependem de cesta básica. Eu participei, há dois anos atrás, da campanha “Tem gente com fome”. Ela foi uma distribuição de comida em tudo quanto região do país, inclusive sobrou para o yanomami, invadidos pelo garimpeiro e recebendo comidas lançadas de avião.
Nós estamos vivendo uma distopia. A gente não tem que celebrar nada, não. Isso é um alerta para o colapso social que nós estamos vivendo. O mundo está sem governo.
O mundo desceu a ladeira. Antes a gente cantava “Lá vem o Brasil, descendo a ladeira”. Agora a gente pode dizer “Lá vem o planeta, descendo a ladeira”. Só que ele vai rolar em cima da gente.
Hoje estamos vendo uma seca tida por alguns especialistas como a mais grave já registrada na história do Amazonas. Os nossos rios estão morrendo?
Os rios estão apresentando essa espécie de mergulho no lençol freático. Eu já disse mais de uma vez que os rios, na verdade, não morrem. eles fogem do nosso bullying.
Eu, se fosse um rio, não ia gostar dos outros cagando, cuspindo em mim, eu ia mergulhar.
Como os rios viraram esgoto, eles estão mergulhando. É uma transição poética do desastre ecológico que implica em queimar as florestas, devastar os ecossistemas todos.
A Mata Atlântica… O Cerrado também. Essa soja avançando no Cerrado está transformando, mudando a distância entre a superfície onde corre a água e onde está lençol freático, ele [o rio] está afundando.
As águas estão afundando, mergulhando, mergulhando, mergulhando… Daqui a pouco a gente só vai conseguir a água se a gente tiver sondas para arrancar ela do fundo da terra, de camadas profundas da terra, não vai ter água de superfície.
A água de superfície está sendo estragada no mundo inteiro, não é só que no Brasil não.
Nós temos uma campanha que começou no Brasil que já tem mais de 20 anos chamada Rios Vivos. Essa campanha foi se enfraquecendo porque parece que a ideia dos rios vivos não é uma ideia viável dentro de uma experiência econômica capitalista, porque o rio vira um insumo, o rio é usado para fazer hidrelétricas, tipo Belo Monte, Tucuruí, Madeira, Jirau.
A gente sabe que, quando o Brasil construiu essas hidrelétricas, tinha muitos alertas de risco, de colapso no abastecimento, no suprimento de água, inclusive o risco de algumas dessas barragens se perderem porque se elas ficarem sem água durante muito tempo, [então] elas geram alga, elas apodrecem.
São bilhões, milhões [de reais] que poderiam estar sendo usados para melhorar a vida das pessoas, mas foram investidos para devastar os rios. Agora a gente tem que dormir com o barulho, ou com a falta do barulho.
Eu vivo na beira de um rio que tem 630 quilômetros de extensão, que é o chamado Rio Doce, vocês podem olhar aí no mapa. Ele sai lá de cima, para cima de Mariana [cidade em Minas Gerais], desce, atravessa Belo Horizonte, vai descendo, passa no Vale do Aço, desce, vai chegar no litoral do Espírito Santo, onde ele derramou milhões de toneladas de lama tóxica para matar as tartarugas marinhas.
Ora, isso é um crime hediondo, um crime que não tem como calcular o efeito dele. Nos próximos 30 anos nós vamos ficar sem água potável na bacia do Rio Doce. O que você vai fazer com 200 mil pessoas que ficaram sem água potável?
Você vai abastecer eles com caminhão pipa, trazendo água do Espírito Santo? A Reserva Krenak é suprida por caminhão pipa, tem oito caminhões pipa, todo dia passando lá dentro.
Parece um autódromo. As estradas foram ampliadas para poder dar acesso a todas as moradias que vão receber a água, dois mil litros d ‘água no caminhão pipa. Quer dizer, nós já entramos na mitigação. Se vai acontecer em outras bacias, esse falecimento dos rios na superfície, significa que a água está fugindo da gente.
Gostaria de saber sua opinião sobre estes primeiros 10 meses da terceira gestão de governo Lula. Em outra entrevista você disse que “estamos em guerra”, se referindo à situação dos povos indígenas que passam pela devastação dos territórios e cultura. Este inicio de governo está conseguindo apaziguar esta guerra?
Olha, a frase não estava fazendo referência especificamente a essa realidade circunstancial da política brasileira. Ela estava falando de um sentido muito mais amplo dessa guerra.
Nós estamos vivendo uma experiência de uma guerra onde existe um pensamento expansionista, desenvolvimentista, que quer comer o mundo e pequenas constelações de comunidades humanas, quilombolas, indígenas, ribeirinhas, outras comunidades nos Andes, na África, que sabiam viver e que estão sendo transformados em refugiados nos seus próprios territórios.
Essa é uma guerra epistêmica, é uma guerra de visões de mundo, são visões opostas de mundo, na verdade, não é uma guerra de troca de tiro. Troca de tiro está acontecendo nas favelas, onde a polícia vai matar jovens negros e pobres.
Se trata de um paradigma, um paradigma de destruir o mundo e acabar com as pessoas e com o modo de vida das pessoas que era autônomas e que estão virando, agora, dependente de cesta básica.
Eu já disse, também, repetindo uma frase do Eduardo Viveiros de Cássio, que no nosso caso brasileiro, a gente é especialista na produção da pobreza. A gente consegue chegar numa região onde as pessoas pescam, caçam, sobem arvores, tiram açaí, comem e vivem de acordo com os ciclos da natureza. E nós ‘azaramos’ com o território dessas pessoas, destruímos e transformamos em pobres. E depois a gente bota eles na fila.
Produzir pobre é mais fácil do que produzir riqueza. As pessoas produzem pobre, é mais fácil.
Mas focando nesta terceira gestão do governo Lula, o que podemos falar? A criação de ministérios como dos Povos Originários ou Igualdade Racial são avanços de fato?
Localmente sim, a gente cria algumas situações temporárias de convívio, de solidariedade. Se a gente olhar outras regionais do mundo, onde lugares povos são bombardeados por mísseis, a gente vê o escândalo dessa violência que estava assolando todo mundo e ficamos pensando que a gente está, na verdade, vivendo uma experiência muito positiva no nosso país.
Mas a gente quase teve uma guerra civil, a gente escapou de um colapso no ano passado.
A gente não pode se referir a esse período, agora, contando 10 meses, como se a gente estivesse inaugurando um país. A gente pegou destroços. Essa desgraça que está acontecendo na Amazônia foi plantada.
Ela não começou agora. Nós estamos imersos nas mudanças climáticas e negacionistas governando o mundo. Você vai fazer o quê? Ficar esperando o papai Noel?
Neste mês completamos 35 anos da Constituição de 1988, a que esta atualmente em vigor. Você foi um dos protagonistas da construção deste documento quando fez uma manifestação no Congresso Nacional, se pintando de jenipapo pelo rosto. Como você vê este seu momento hoje? Você repetiria este gesto?
De certa maneira, sair do meu território para ocupar uma cadeira na Academia Brasileira de Letras tem a mesma ênfase de pintar a cara de jenipapo no Congresso.
São lugares diferentes, mas com efeitos muito semelhantes, que é afirmar a presença dos povos originários nesse território colonizado e reivindicar um lugar de voz.
É isso. A gente pode estender a conversa, mas é isso. É lógico que eu não faria de novo o mesmo gesto, porque daí seria uma repetição meio ridícula.
Mas eu continuo subindo em algum lugar, falando e gritando. Às vezes estou gritando no deserto, mas eu não desisto.
Sobre a nossa constituição, esses 35 anos, eu fico admirado daquele gesto ter travado uma memória na história do nosso país. Não é qualquer pessoa que consegue marcar uma história da sua geração de uma maneira tão clara.
Então, imagina, eu fico feliz pra caramba, muito feliz. Eu não sei quantas outras pessoas da minha geração poderiam se vangloriar de um gesto, da coerência do gesto, da continuidade dele. Porque muitos desses gestos, com o passar do tempo se tornam caricatura.
E aquele meu gesto está vivo. Ele foi, inclusive, incluído numa grande exposição no México, na Cidade do México, me pediram autorização para fazer um painel com aquela imagem, fazendo discurso, traduziram para castelhano, para espanhol, para inglês, usando essas tecnologias de informação.
Essa imagem já foi também instalação em uma grande Bienal, em Seul [capital da Coreia do Sul]. Quer dizer, até na Coreia essa voz chegou. Lá, com um aparato digital você para na frente da imagem e aperta um botão e o meu discurso sai em coreano, japonês, chinês, inglês.
Você agora é um imortal da Academia Brasileira de Letras. Isso muda alguma coisa em você? É um outro Ailton Krenak?
Então, na verdade, a gente precisa sempre lembrar que esse termo imortalidade ou imortal fala muito mais das obras. Eles se referem muito mais às letras, sugerindo que a letra eterniza uma mensagem, eterniza uma ideia e, assim, estariam, de certa maneira , imortalizando aquele texto, aquela memória.
É muito interessante porque essa é uma narrativa ocidental, grega, europeia… Porque se você pensar nos povos daqui do continente americano, da ameríndia, da pachamama, você vai encontrar povos que se relacionam com a narrativa oral, com a oralidade, com essa história que é transmitida milhares de anos por pessoas que nunca escreveram nada e também não pretendem ser reconhecidos como escritores, letristas ou letradas.
A Academia Brasileira de Letras foi criada mais de cem anos atrás, quer dizer, ela é uma agência colonial, ela não pode me dar nada não, eu venho de outra cosmovisão, eu estou ligado com outras perspectivas.
E quando você vê A Queda do Céu do Davi Kopenawa Yanomami, você vai ver uma obra que perseverou por milhares de anos, narrada dentro da floresta, à noite, às vezes de dia, geração em geração, transmitindo uma língua, uma visão do mundo, uma cosmovisão.
Tanto que o livro se chama uma cosmovisão Yanomami, A Queda do Céu. E essa maravilha nos põe em um outro lugar. Diferente dessa coisa de algumas pessoas serem distinguidas com algum título. E os outros todos são mortais.
Quer dizer, se eu entrasse nessa história, eu ia achar que os outros podem morrer e eu não. Isso é uma besteira.
Nós vamos virar todos, todos, todos, estrume inclusive os imortais