Quem salvará o Cerrado do agronegócio e de Bolsonaro?

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Por Anelize Moreira – O Joio e o Trigo

30/03/2022

Metade de nosso segundo maior bioma foi destruída em 50 anos. Lá se concentra a expansão agrícola do Brasil – feita quase sempre após desmatamento ilegal. Governo favorece grileiros e tenta abocanhar terras da reforma-agrária.

A área de lavoura no Brasil triplicou entre 1985 e 2020: de 19 milhões para 55 milhões de hectares. Todas as projeções de mercado indicam que o país se consolidará como o maior fornecedor de soja e milho para o mundo. Um relatório da consultoria Agroconsult já prevê o esgotamento da oferta de novas áreas para grãos em algumas regiões do país.

Todos os caminhos apontam para o . Hoje, segundo a plataforma MapBiomas, 44,2% da área desse bioma brasileiro está coberta pela agropecuária. As projeções da Agroconsult enxergam longe. E, mesmo sem tecer uma linha sobre a devastação do Cerrado, permitem enxergar o futuro: estima-se que até 2058 o Mato Grosso triplique a produção, enquanto os vizinhos Mato Grosso do Sul, Tocantins e Goiás mais do que dobrem.

O Brasil é o segundo país com maior área de floresta do mundo e o primeiro em florestas tropicais. O modelo de produção do agronegócio tem ameaçado o Cerrado, segundo maior bioma do Brasil, que perdeu mais de 50% da sua cobertura vegetal original, de 1970 a 2018, de acordo com relatório da organização não governamental WWF.

Mais preocupado com o futuro, um relatório do MapBiomas aponta que 99% da devastação ocorrida em 2020 no Cerrado foi ilegal. O desmatamento está concentrado nas mãos de poucos ruralistas. De acordo com o Cadastro Ambiental Rural, o desmatamento foi causado por apenas 1% das propriedades rurais.

O Cerrado possui 198 milhões de hectares distribuídos por 12 estados e Distrito Federal

Guilherme Eidt, da área de políticas públicas no Instituto Sociedade, População e Natureza, ressalta que o desmatamento do Cerrado pelo agronegócio pode ter impactos na capacidade hídrica de abastecimento, na geração de energia elétrica e também na produção de alimentos.

“Das 12 principais bacias hidrográficas no Brasil, oito delas têm suas nascentes no Cerrado. Fica clara nesta correlação de desmatamento a redução de vazão dos fluxos d’água. Temos evidências do impacto para a crise hídrica, mas também para a segurança alimentar e nutricional, à medida que você tem uma menor oferta de água para a produção de alimentos, porque muitas vezes a capacidade de irrigação em algumas regiões está muito direcionada para a produção de commodities”, analisa Eidt.

Um estudo do IBGE mostra que 97,4% da água consumida no país vai para as atividades ligadas ao agronegócio. Já o consumo domiciliar de água per capita pelas famílias brasileiras foi de 116 litros por dia, na média nacional de 2017. O Centro-Oeste, onde se concentra a maior produção de grãos, registrou o maior consumo de água, com 1.511,9 litros para cada R$ 1 gerado para economia da região. Quer dizer, enquanto fechamos a torneira para economizar água, o setor agropecuário esbanja o uso do recurso natural.

O Brasil tem investido na produção de commodities agrícolas em detrimento de uma agricultura diversificada e que atende pequenos produtores. Porém, é possível ter um território conservado, com produtividade, mas com impacto socioambiental menor.

“Hoje é possível produzir no Brasil e garantir as mesmas rentabilidades em termos do que o próprio agronegócio coloca sem precisar avançar em áreas de floresta. Com o uso inteligente dos sistemas agrícolas, com uma perspectiva agroecológica, é possível garantir que esses eventos climáticos extremos, por exemplo, tenham uma regulação, um impacto menor, aumentem a capacidade adaptativa das populações nos territórios e a mitigação de muitas dessas mudanças no clima”, conclui Eidt.

De 2000 até 2020, 76% dessa expansão da agricultura se deu sobre vegetação nativa do Cerrado na região do Matopiba – um polígono que abrange Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia. Nos demais estados, esse percentual da expansão da agricultura é inferior a 10%.

Atualmente, a agropecuária ocupa 44,2% do Cerrado e, não por acaso, esse avanço está relacionado à destruição ambiental. Foto: Joel Silva

Adoecimento da terra

Os dados da FAO ajudam a entender um outro aspecto negativo relacionado ao agronegócio: desde a abertura de fronteiras, nos anos 1990, cresce de maneira constante o uso de venenos agrícolas. Nos últimos quatro anos, foram liberados mais de dois mil agrotóxicos no Brasil – 1.517 só nos três primeiros anos de governo Bolsonaro.

A Agência Internacional para Pesquisa sobre Câncer informou, após inúmeras pesquisas, que o glifosato, por exemplo, um agrotóxico amplamente utilizado no Brasil, mas proibido em pelo menos 21 países, foi comprovado como carcinogênico para animais mamíferos e provavelmente para humanos. No Brasil, a Anvisa decidiu, no ano passado, manter a liberação da substância, bastante usada nas lavouras de cana-de-açúcar, de soja, trigo e milho.

Além da contaminação do solo e da água, os agrotóxicos colocam em risco a biodiversidade e a produção de alimentos. Segundo o 1º Relatório Temático de Polinização, Polinizadores e Produção de Alimentos no Brasil, das 191 plantas cultivadas ou silvestres utilizadas para a produção de alimentos no Brasil, 114 (60%) dependem da visita de polinizadores, como as abelhas. Para se ter ideia, em apenas três meses de 2019, meio bilhão de abelhas foram encontradas mortas no Brasil pelo uso de veneno. É o que aponta o levantamento da Agência Pública e da Repórter Brasil.

Mas a contaminação não acaba no campo. Além de contaminar frutas, legumes e hortaliças, resíduos de agrotóxicos chegam nos alimentos ultraprocessados. Um estudo do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) analisou 27 produtos consumidos no Brasil e, em 13 deles, há presença de glifosato, entre outros agrotóxicos, em bolachas e salgadinhos, por exemplo.

Estamos destruindo o meio ambiente e a biodiversidade, mas estamos plantando o que nas lavouras brasileiras?

Ao privilegiar a produção de commodities que servem como matéria-prima para os ultraprocessados ou para ração animal, o Brasil faz uma opção por um modelo que adoece a população. Foto: Joel Silva

Ambientes saudáveis, corpos saudáveis

Um estudo da Faculdade de Saúde Pública (FSP) aponta que, quanto maior o consumo de dietas com menor impacto ambiental, a probabilidade de ter sobrepeso e obesidade é 24% menor. O levantamento faz parte do doutorado do pesquisador Leandro Cacau, e um artigo a esse respeito foi publicado em outubro na revista científica Nutrients.

“Os indivíduos que seguem mais esse modelo de dietas mais saudáveis e sustentáveis têm menores valores de pressão arterial, perfil lipídico, colesterol total, LDL colesterol, que seria o colesterol vilão. Eles também possuem menor resistência à insulina do que aqueles que não seguem esse modelo de dieta ou que têm baixa adesão”, explica Cacau.

O estudo mostra que uma alimentação mais baseada em frutas, verduras, legumes, cereais integrais e oleaginosas – e menos em carnes vermelhas, laticínios, tubérculos, açúcares de adição e gorduras animais – é saudável ao planeta e para o corpo.

Para Cacau, é importante que se promova os sistemas alimentares sustentáveis priorizando o consumo de mais vegetais e menos carnes. “Tanto na produção, na própria criação dos animais, na produção de ração de alimentos, na produção da soja, de milho. Tudo isso tem um impacto ambiental considerável, muito importante. Uma dieta mais sustentável seria de fato uma dieta com mais vegetais.”

A mudança na dieta da população brasileira nos últimos 30 anos fez com que os impactos ambientais da alimentação no país também aumentassem. Entre os anos de 1987 a 2018, houve um aumento de 21% na emissão de gases de efeito estufa, 17% na pegada ecológica e 22% na pegada hídrica. Os dados fazem parte do estudo de Jacqueline Tereza da Silva e outros autores, publicado em novembro de 2021 na revista The Lancet Planetary Health.

O estudo também afirma que o aumento da emissão de gases poluentes relacionado à compra de alimentos indica que o Brasil está indo na direção contrária ao que foi estabelecido no Acordo de Paris, que fixa metas por país para a redução nas emissões.

O único caminho para brecar esse crescimento das doenças e dos ultraprocessados é via políticas públicas de incentivo à produção de alimentos saudáveis. Mas será que é nessa direção que estamos indo?

Colheita de soja na região baiana do Matopiba. Foto: Fellipe Abreu

O Brasil virou um fazendão

O agronegócio tem o discurso de que, sem o seu modelo agrícola, o mundo pode passar fome. As projeções a longo prazo sobre o agronegócio, feitas pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, apontam para a redução das áreas de arroz e feijão e o aumento da área de plantações de commodities de soja e milho. A expectativa é de que a área de soja, por exemplo, dobre nos próximos anos, passando dos 23,5 milhões de hectares, registrados em 2009/2010, para 48,9 milhões em 2030/31.

Ou seja, nos próximos anos, as principais áreas agrícolas não estão destinadas a plantar o que compõe o prato do brasileiro e, consequentemente, levar a ter saúde. Se de um lado sobra incentivo do Brasil à produção de commodities principalmente para exportação, de outro os agricultores familiares que são responsáveis pela produção de alimentos têm cada vez menos espaço para plantar.

Para demonstrar os desafios para acessar a terra por agricultores familiares, fomos atrás de entender como as políticas agrárias avançaram nos últimos governos. De acordo com o Incra, existem 9.433 assentamentos criados ou reconhecidos pelo órgão. O órgão informou ao Joio que 5.092 famílias foram homologadas como beneficiárias da reforma agrária no balanço de 2021 – porém, o MST afirma que não houve nenhuma desapropriação.

A reforma agrária ganhou força no governo Lula. O pico ocorreu em 2006, quando 136 mil famílias foram assentadas em terras improdutivas. O ritmo diminuiu nos últimos governos: no último ano do governo Dilma, em 2015, foram assentadas 26.335 mil famílias; no governo Temer, em 2016, o número despencou para 1.686 famílias assentadas.

Titula Brasil: Dividir para enfraquecer

No primeiro semestre de 2021, o governo federal instituiu o Titula Brasil, um programa que “abre a porteira”, transferindo as atribuições de titulação da terra aos municípios, facilitando a grilagem e aumentando a pressão na compra de terras pelo agronegócio. Até o governo Temer, era ilegal vender terras da reforma agrária – com esse programa, as famílias assentadas passam a receber a posse da terra.

A Constituição garante às famílias assentadas na reforma agrária o direito à titulação definitiva por duas vias: o título de domínio ou a Concessão do Direito Real de Uso (CDRU). O Titula Brasil oferece apenas o título de domínio, que dá o direito ao pequeno agricultor de se tornar um proprietário da terra, mas também pode fazer com que ele adquira gastos que não tinha antes, e para se livrar da dívida, acaba tendo que negociar essa terra com o agronegócio. Os movimentos do campo defendem que a terra continue sendo pública.

De acordo com o Incra, em 2021 foram emitidos 87.700 títulos em áreas da reforma agrária e áreas de pequenos agricultores. Apesar dos números, no mesmo ano se acirrou a disputa pelo fim da demarcação de terras indígenas e houve conflitos fundiários.

Kelli Mafort, do assentamento Mário Lago e da coordenação nacional do MST, ressalta que esse programa mexe com o sonho das famílias de ter terra. “Eles pensam: ‘Nossa, eu vou ter de papel passado a minha terra. Eu posso vender essa terra!’ Até o ‘gado’ do Bolsonaro fica perdido. ‘Mas Bolsonaro não é contra a reforma agrária? Por que está indo lá oferecer esses títulos?’ O que ele quer é trabalhar essa disputa na base dos movimentos sociais, que é muito parecido com o que ele está fazendo com o movimento indígena. Então, [para Bolsonaro] é tipo assim: ‘Os meus indígenas são a favor da mineração’.”

De acordo com o Incra, na gestão Bolsonaro, de 2019 a 2021, foram expedidos 277.915 títulos para famílias em assentamentos e glebas públicas federais. Já o MST diz que o órgão ficou sem orçamento para as políticas de reforma agrária desde 2019 e, por isso, não houve novos assentamentos.

“Hoje, o assentado consegue preservar sua terra mesmo que tenha eucalipto e cana do lado, porque a comunidade existe, porque tem escola, tem uma parte social. Se isso for descaracterizado, um vende, outro vende, e tal, o que vai acontecer com aquele que fala ‘Não, não quero vender’?”, questiona a coordenadora do MST. “Nós sabemos a história no nosso país: quando os proprietários querem comprar uma terra, é na violência.”