MORTE NA FLORESTA

https://www.washingtonpost.com/world/interactive/2022/brazil-amazon-deforestation-highway-br-319

História de Terrence McCoy, Fotos de Rafael Alves (Terrence McCoy, que cobre o Brasil para o The Washington Post, atravessou a rodovia 319 para relatar esta história).

17 de março de 2022

Imagem do ‘El País, ‘Viagem pela BR-319: estrada rumo à destruição da ‘, NAIARA GALARRAGA GORTÁZAR, 08.11.21

A AMAZÔNIA, DESFEITA – Uma rodovia está acelerando a destruição do recurso global vital. Nesse trecho, as matanças já começaram.

Primeiro a estrada estava esburacada e rachada. Aqui era uma poça grossa de lama. Em seguida, um redemoinho de poeira vermelha. Mas agora, depois de termos viajado centenas de quilômetros pela selva mais densa, a estrada finalmente estava boa — pavimentada e lisa — e foi aqui que o motorista parou o caminhão.

Havia uma estrada de terra não sinalizada que se ramificava da rodovia. Atravessou a selva e sumiu de vista. Lucas Ferrante, o cientista ambiental que lidera essa jornada, queria descer a estrada e ver o que – e quem – estava escondido atrás das árvores.

“Isso é desmatamento ilegal”, disse ele.

O motorista, que mora na rodovia, disse que seria muito perigoso prosseguir. Essas estradas secundárias são muitas vezes obra de grupos criminosos armados. Os grupos, que dominam este trecho da floresta, desencadearam uma onda de fogo e destruição que estava transformando grande parte do sul do estado do Amazonas em pastagens fumegantes. A forma como eles resolvem os problemas é com violência. As pessoas desaparecem. Seus corpos nunca são encontrados. Nosso motorista temia os problemas que seguir por essa estrada traria.

Estrada que liga Porto Velho, na Rondônia, à Manaus, no Amazonas.

Ferrante, que passou anos detalhando a ilegalidade da região em revistas acadêmicas, entendeu os perigos e as incertezas da rodovia melhor do que a maioria. Ele havia sido ameaçado em ligações e mensagens anônimas – depois sequestrado em novembro de 2020 e instruído a ficar quieto.

Outro pesquisador que documenta a destruição recebeu este texto: “Você vai queimar no fogo. Será um churrasco. Mensagem enviada.”

Mas Ferrante, 33 anos, acreditava que viajar para cá valia o risco. Ele viera para ver essa estrada, um corte avermelhado marcando uma colcha verde, como uma das últimas arquibancadas da Amazônia. Um fotógrafo e eu havíamos nos juntado a ele nessa jornada até os confins.

A BR-319 começa ao longo das margens do rio Amazonas e percorre mais de 800 quilômetros, cortando o núcleo amplamente preservado da Amazônia brasileira para conectar as cidades de Manaus e Porto Velho. Manaus, população: 2,2 milhões de habitantes; Porto Velho: 540 mil habitantes.

Os trechos da rodovia foram melhorados nos últimos anos, facilitando as viagens e desencadeando uma onda de desmatamento. Muitos na floresta tropical querem que o governo conclua o trabalho. O presidente Jair Bolsonaro, que trabalhou para facilitar e minar as regulamentações ambientais para promover o desenvolvimento, diz que a pavimentação da rodovia atenderia “um desejo do povo amazônico”. Seu vice-presidente, um general da reserva, disse que comeria sua própria boina militar se as autoridades atuais não o fizessem.

Para muitos em Manaus, uma cidade de 2,2 milhões de habitantes isolada do principal sistema rodoviário do Brasil, a estrada simboliza algo próximo da liberdade – uma tábua de salvação que os conecta ao resto do país e abre o caminho para o desenvolvimento.

Uma vista de perto da Vila Realidade na Rodovia 319, que percorre mais de 800 quilômetros pelo centro da Amazônia brasileira.

“BR-319: É um direito nosso”, diz o slogan estampado nas redes sociais e nas placas das rodovias. Em uma região de vastos recursos e pobreza generalizada, muitos dizem que chegou a hora de usar o que está disponível, para aproveitar a vida melhor há muito negada pelo isolamento e pela geografia, para resistir às leis federais e aos ambientalistas que parecem se importar muito mais por árvores do que por pessoas.

O resultado do choque político emocional, dizem os cientistas, tem implicações não apenas para o resto da floresta, mas para o mundo. 

A Amazônia é um baluarte crucial contra o aquecimento global, ajudando a retardar a marcha inexorável das mudanças climáticas. Mas os pesquisadores alertam que terminar a rodovia e as estradas estaduais subsequentes abririam seu núcleo à destruição. Cientistas da Universidade Federal de Minas Gerais descobriram em 2020 que pavimentar a rodovia quadruplicaria o desmatamento aqui nas próximas três décadas.

“Isso seria o fim da floresta”, disse Carlos Nobre, cientista climático que se concentra na Amazônia.

Saiba mais sobre o estado da Amazônia

  • Terras indígenas ameaçadas. Os territórios indígenas têm atuado historicamente como amortecedores contra o desmatamento. Mas nos últimos anos, os incêndiosa mineração ilegal de ouro e a extração irregular de madeira aumentaram, deixando as comunidades tentando proteger a floresta.
  • Um ponto de inflexão. Os cientistas dizem que a Amazônia pode estar à beira de uma mudança catastrófica. O desmatamento já consumiu 17% de sua área. As mudanças climáticas e o desmatamento enfraqueceram até 75% do que resta, dizem os pesquisadores.
  • Impacto global. A Amazônia tem atuado historicamente como um vasto sumidouro de carbono, ajudando a absorver suas emissões e a conter o aumento das temperaturas globais. Mas os cientistas temem que o desmatamento possa enfraquecer tanto o bioma que se torne uma “bomba de carbono”. Partes da floresta já estão emitindo mais gases carbônicos do que são absorvidos .
  • Próxima eleição. Os anos finais para salvar a Amazônia estão agora aqui. O destino da floresta tropical será uma questão-chave na eleição presidencial do Brasil em outubro. Alguns cientistas temem que mais quatro anos de Jair Bolsonaro, cuja presidência coincidiu com o aumento do desmatamento, possam levar a Amazônia a um ponto sem retorno.

Acredita-se que a Amazônia já esteja à beira do precipício. Se muito mais for perdido, alertam os cientistas, a floresta pode sofrer mudanças ecológicas desestabilizadoras que convertem imensas faixas em savana aberta degradada. O que historicamente tem sido um sumidouro de carbono pode de repente se tornar uma “bomba de carbono”, derrubando os esforços do mundo para evitar um aquecimento catastrófico. Algumas regiões da Amazônia já estão explodindo – emitindo mais gás carbônico do que absorvem. A mudança foi particularmente aguda nas seções mais desmatadas do sudeste degradado da Amazônia, onde nos últimos 40 anos a temperatura média durante a estação seca anual aumentou mais de 4 graus.

Vídeo de 19 de outubro de 2021 mostra o desmatamento que aumentou no estado do Amazonas, no Brasil, como resultado do desenvolvimento da Rodovia 319. (Terrence McCoy/The Washington Post)

Mas a onda agora está se movendo mais fundo na floresta. As duas cidades brasileiras que mais produzem gases carbônicos – São Félix do Xingu e Altamira – estão longe de ser as mais populosas. Ambos estão na Amazônia, próximos a grandes projetos de infraestrutura que trouxeram desenvolvimento (nt.: é importante se saber que tipo de ‘desenvolvimento’ é esse, como diz a seguir: desmatamento e violência? ou desenvolvimento é a presença de produtos de consumo, na sua maioria inúteis?), mas também desmatamento e violência extrema.

Nesse trecho da BR-319, onde o processo destrutivo está em andamento, as matanças já começaram.

Humaitá, a cidade mais próxima da nossa posição, registrou 15 homicídios só em outubro — cinco vezes a média mensal. A polícia disse que a maioria está ligada ao aumento da apropriação de terras e ao desmatamento. Em uma fazenda de gado construída em terra desmatada, vários trabalhadores haviam desaparecido recentemente. Primeiro foi um lavrador chamado Jeferson Bungenstab, 37. Depois seguiu um dos últimos homens a vê-lo com vida, um caseiro chamado Nelson Antônio da Conceição, 33. A polícia ainda não sabia o que havia acontecido com os homens, mas começou a suspeitar do pior.

Ferrante, sem saber da onda de assassinatos e desaparecimentos, espiou pela estrada. Ele tinha se decidido. Ele disse ao motorista para entrar nela. O fotógrafo Raphael Alves e eu nos entreolhamos. Senti uma onda de nervos. Alves preparou sua câmera. O caminhão começou a avançar.

“Estamos entrando em uma área de grande risco”, alertou o motorista, que pediu para não ser identificado por preocupação com sua segurança.

Descendo o caminho e entrando na floresta, ainda não sabíamos o quanto.

CONSEQUÊNCIAS AMBIENTAIS “CATASTRÓFICAS”

No final da década de 1960, vários anos depois das duas décadas de regime militar do Brasil, um pequeno grupo de generais começou a traçar linhas no mapa. Eles estavam planejando a maior excursão militar da história brasileira: a conquista da Amazônia. Eles traçaram uma blitzkrieg de projetos de rodovias para domar e integrar a floresta tropical ao país maior. A Rodovia Transamazônica corta o ventre da Amazônia. Outra estrada cortou o estado do Pará maciço. Uma terceira rodovia laçou a Venezuela à Amazônia brasileira.

As novas estradas alimentaram surtos de migração e desmatamento. Em uma região onde as pessoas há muito se apoderam de terras e tentam estabelecer a propriedade ocupando-as, as estradas estão cheias de viajantes – migrantes pobres, especuladores de terras, fazendeiros – em busca de fortuna e oportunidade. Muitos acabaram ao longo do sul da Amazônia, uma área em forma de arco que agora concentra 75 % das perdas da floresta e passou a ser conhecida como o “arco do desmatamento”.

Em 11 anos, a paisagem da Vila Realidade mudou drasticamente, pois o desmatamento se estendeu em um padrão clássico de espinha de peixe da BR-319. (Direitos autorais © 2022 Planet Labs PBC.)

[Nota do website: essa imagem acima não faz parte do texto original do Washington Post, mas sim do material publicado no site].

Anos de análises ilustram como as estradas geralmente levam ao desmatamento. É o chamado padrão de espinha de peixe. A estrada forma a espinha dorsal. Em seguida, especuladores, madeireiros ilegais e funcionários locais constroem estradas que irradiam para fora: as costelas. Estudos mostraram que a grande maioria do desmatamento na Amazônia ocorreu dentro de 48 a 50 quilômetros de uma estrada principal.

A BR-319 foi diferente. Foi construída na década de 1970, como as outras estradas, mas atraiu muito menos atenção. Comerciantes em Manaus encontraram métodos mais baratos para transportar mercadorias. Os migrantes foram para outras partes da floresta. A rodovia – construída às pressas durante a estação chuvosa e danificada anualmente desde então com uma precipitação média de 2.200 milímetros – caiu em desuso e ficou intransitável durante grande parte do ano. Em 1988, ela foi efetivamente fechada, isolando tanto o centro da Amazônia quanto Manaus, onde desde então um debate divisivo sobre seu futuro tem oscilado.

Um trecho desmoronado da rodovia BR-319, em uma área ao sul de Manaus, no estado do Amazonas.

Rodoviário trabalha em ponte no trecho mais degradado da rodovia, na zona rural do município de Beruri, no Amazonas.

Autoridades de transporte e meio ambiente aprovaram em 2007 a restauração de trechos da rodovia, mas não de seu vasto meio. Em seguida, eles autorizaram a “manutenção” rudimentar do meio da rodovia em ruínas – mas não a pavimentação. Políticos locais prometeram antes das eleições de 2018 terminar tudo. Ambientalistas responderam que não fazia sentido econômico: estudos mostraram que era mais barato transportar mercadorias ao longo de rotas fluviais.

Então, no ano passado, uma nova variante de coronavírus esmagou a cidade, esgotando seus suprimentos de oxigênio. Os torcedores da estrada fervilhavam: se a estrada fosse transitável, o oxigênio teria chegado a tempo. Em vez disso, dezenas morreram sufocados.

Estudos mostram que é mais barato transportar mercadorias por vias fluviais do que completar e manter a BR-319. (Raphael Alves para The Washington Post)

Os nervos à flor da pele em torno da questão foram expostos em ruidosas audiências públicas.

Em uma sessão de setembro em Manaus, um cientista americano leu uma longa declaração preparada. “A rodovia BR-319 é ​​economicamente inviável”, disse Philip Fearnside, que contribuiu para o trabalho do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas, que ganhou o Prêmio Nobel da Paz em 2007 pela pesquisa climática. Ele chamou o processo decisório do Brasil de “deficiente”. E as consequências ambientais se a rodovia fosse asfaltada? “Catastróficas.”

Os torcedores da rodovia na platéia começaram a vaiar. Fearnside gritou com eles em seu português com forte sotaque. Então seu microfone foi cortado. O vídeo mostra o próximo orador caminhando para a frente.

“Por que alguém dos Estados Unidos viria aqui para isso?” exigiu Sérgio Kruke, diretor do Movimento Conservador do Amazonas, apontando para Fearnside. “Como poderia ser?”

O público aplaudiu e aplaudiu. Kruke gritou no microfone.

“Esta casa é nossa! Se quisermos derrubar todas as árvores, vamos derrubá-las!”

UMA ESTRADA EM TRÊS ATOS

Ferrante, pesquisador afiliado ao Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, sentou-se na primeira fila dessa audiência, cada vez mais inquieto. Ele é brasileiro, mas acredita que a floresta é do mundo. Aterrorizado com as implicações de pavimentar a rodovia, ele fez uma parceria com Fearnside para mostrar como mesmo sua simples manutenção já havia prejudicado a floresta tropical e também ameaçado comunidades indígenas.

Mas sentado na platéia, o doutorando viu que os estudos não foram suficientes. Poucos estavam convencidos de sua opinião. Ele precisava de mais provas. Ele precisava fazer outra viagem pela estrada. Pedimos para acompanhá-lo.

O cientista ambiental Lucas Ferrante passou anos realizando pesquisas sobre o impacto da Rodovia 319 do Brasil no desmatamento da floresta amazônica.

Partimos às 3 da manhã, pegamos a primeira balsa saindo de Manaus e, com o céu avermelhado sobre o rio Amazonas, chegamos à rodovia. Ferrante pensou no longo caminho pela frente.

A BR-319 é ​​uma rodovia em três atos. Os primeiros 100 quilômetros são pavimentados, marcados por placas de trânsito e divididos por faixas amarelas. Então começa a se transformar no que é conhecido como o “trecho do meio”: 400 quilômetros de sujeira e fendas e trechos escorregadios de lama tão formidáveis ​​que fazem os veículos girarem e caírem para fora da estrada. O ato final é suavizado – e acelera os viajantes em uma das partes mais perigosas da Amazônia, à beira do arco do desmatamento, onde a destruição ambiental e a violência são desenfreadas.

Ferrante garantiu sua máscara N95, menos para protegê-lo do coronavírus desenfreado do Brasil do que para esconder sua identidade.

“Estamos indo contra o mundo inteiro aqui”, disse ele, um mundo que ele temia lhe desejando mal. Intenso e combativo, Ferrante sabia que seu trabalho e comportamento o haviam tornado inimigos. Ele discutiu acaloradamente com os defensores das rodovias. Ele acusou o governo em artigos de opinião de destruir intencionalmente a Amazônia. Ele havia escrito estudo acadêmico após estudo acadêmico: Sobre madeireiros ilegais ao longo da estrada. Em grupos indígenas remotos marginalizados durante as discussões na estrada. Na prospecção ilegal de ouro perto da rodovia.

Agora ele temia ser um homem marcado. Em novembro de 2020, ele entrou em um carro que assumiu ser seu Uber do lado de fora de seu apartamento. O motorista o desviou e, segundo depoimento de Ferrante às autoridades estaduais, o atacou com um objeto pontiagudo, arranhando seus braços. “Você está mexendo com coisas que não deveria”, disse Ferrante que o homem lhe disse. Desde então, Ferrante tem percebido ameaças em quase todos os lugares.

Ele os viu novamente aqui agora, quando seu motorista parou diante de um corpo de água estagnado. O escoamento da manutenção da estrada havia tornado a água marrom como uma sopa. Ferrante olhou para frente e para trás — costa limpa — e saiu para investigar. “Temos que nos apressar”, disse ele. “Não podemos ficar em um lugar por muito tempo.” Ele notou os danos ambientais – peixes mortos, fonte de água envenenada – e voltou para o caminhão. A próxima fonte de água na estrada era a mesma. E o seguinte: marrom e morto.

O trecho asfaltado da Rodovia 319 termina abruptamente a cerca de 160 quilômetros ao sul de Manaus, e começa a parte áspera do meio da estrada.

Uma área de floresta amazônica queimada e desmatada é vista ao longo do trecho central da Rodovia 319.

À medida que avançávamos, a floresta era um borrão ininterrupto de verdes verdejantes – exceto onde não era. De vez em quando, um pedaço inteiro da floresta tinha sido arrancado, deixando para trás árvores carbonizadas, terra fumegante, ar enfumaçado. O gado, criado para o abate, vagava pelo mato queimado. Muitas vezes, no centro dessas extensões cinzentas, havia um único barraco habitado por um invasor. A floresta se foi, e a terra foi reivindicada.

“Você ainda pode sentir o cheiro do fogo”, disse Ferrante.

“Isso tudo era floresta há três meses”, disse o motorista.

A estrada sob o caminhão começou a mudar. O asfalto rachou e depois recuou. Os restos pareciam pedaços de cerâmica quebrada. Uma placa dizia que a parte pavimentada da rodovia havia chegado ao fim. Agora havia apenas uma linha de terra vermelha riscando a distância. Tínhamos chegado à pior parte da estrada.

“O trecho do meio”, disse Ferrante.

MERGULHANDO MAIS FUNDO NAS GARRAS DA FLORESTA

Não havia sinais de humanidade aqui. A temperatura estava mais baixa. A floresta era densa e escura. À medida que nos aprofundávamos em seu alcance, a estrada se tornou um pântano de lama espessa. O veículo avançou com dificuldade – passou por um caminhão abandonado, uma van abandonada, uma onça contornando a estrada. Finalmente, chegamos a uma pequena coleção de casas cobertas de terra ao longo de um rio.

Dentro de uma casa de madeira sobre palafitas, uma velha havia passado 50 anos esperando.

Nilda Castro dos Santos, 74 anos, era jovem quando veio para cá, seguindo o pai de uma cidade sem saída no interior do Amazonas. A estrada então era “nova e bonita”. Ela via isso como uma promessa: haveria trabalho, oportunidades, uma vida melhor para seus filhos. As pessoas construíram uma comunidade com pequenos restaurantes, lojas, atendendo moradores e visitantes. Mas então sua tábua de salvação – a rodovia – começou a atrofiar. Ninguém veio consertar. O fluxo de viajantes parou. Os vizinhos se afastaram.

Agora a cidade parecia tão morta quanto a própria estrada: silenciosa e murcha pelo sol.

Todos os dias agora, Nilda Castro senta e espera – que o governo se lembre deste lugar, que a estrada seja pavimentada, pelo cumprimento de uma promessa que ela sente estar atrasada em meio século.

“Estou com medo de morrer sem nunca vê-lo pavimentado”, disse ela. “Conseguimos sobreviver aqui, mas não conseguimos viver.”

Rosineu Batista, 59 anos, nasceu e mora na comunidade de Igapó-Açu, no Amazonas.

Um caminhão que derrapou no atoleiro e ficou atolado é resgatado por trabalhadores no trecho danificado da BR-319, em Beruri, no Amazonas.

Um homem retorcido desceu a rua de terra. Rosineu Batista, 59, falou do cunhado. O homem havia adoecido recentemente. Mas a estrada estava intransitável e, sem os devidos cuidados, ele morreu. Batista acredita que uma rodovia asfaltada pode mudar as coisas aqui. Talvez ele pudesse comer mais do que qualquer coisa que pudesse pescar no rio.

“Mas você não está preocupado com grileiros criminosos que chegam com uma estrada pavimentada?” perguntou Ferrante.

“Sim”, disse ele. Então ele olhou para a aldeia desolada: “Mas…”

Nós continuamos. O caminhão sacudiu e sacudiu através de um rio, sobre pontes precárias, passando por placas anunciando a próxima manutenção. As chuvas correram. A escuridão envolveu a floresta. Vila Realidade, um vilarejo de estradas pedregosas, povoado por posseiros, veio e se foi.

Então, tão repentinamente quanto havia se deteriorado, a estrada melhorou. A sujeira alisou. Barracos apareceram ao longe.

Anderson Ferreira, 30, com seu cachorro Spike, em sua casa nos arredores de Humaitá. Ferreira é um caseiro que cuida do gado de outra pessoa em terras recentemente desmatadas.

Anderson Ferreira, 30, saiu de um deles. Ele cresceu na estrada. Durante a maior parte de sua vida, a floresta era tudo o que existia. Mas então os trabalhadores começaram a melhorar a rodovia. Forasteiros chegaram de estados distantes.

A floresta começou a queimar.

Agora Ferreira cuida de uma casinha em terra recentemente desmatada, cuidando do gado de outra pessoa. Ele quer muito que a estrada seja pavimentada – é tudo o que todos aqui falam. Mas ele também pensa no custo.

“Ser humano é querer viver em harmonia com a natureza”, disse ele.

Além de sua casa, a fumaça subia. Tínhamos chegado ao arco do desmatamento.

‘ESTA VAI SER UMA ENORME FAZENDA ESCONDIDA’

Desde 2015, o desmatamento ao longo da rodovia cresceu nove vezes. Uma extensão de floresta quase do tamanho de Washington, DC, é perdida a cada ano. Em nenhum lugar a destruição é mais evidente do que aqui, nos vastos limites da cidade de Humaitá, o maior município ao longo da rodovia, onde a estrada finalmente suaviza. Fração a fração, a floresta aqui está sendo desmatada. Estradas ilegais se estendem pela linha das árvores que se afastam.

A equipe de pesquisa de Ferrante começou a mapear as estradas, chegando a passar por várias. Eles encontraram garimpo ilegal de ouro, extração de madeira e floresta queimada. Um corretor florestal criminoso tentou vender terras para eles. Sobre isso, a equipe escreveu na revista acadêmica Land Use Policy. O corretor criminoso ofereceu menos de um hectare de terra desmatada por US$ 570. A mesma quantidade de terra florestada sairia por US$ 3,80, mas os compradores teriam que desmatar e ocupar eles mesmos. Durante uma visita ao local, o “agente grileiro” estava com uma arma na mão.

Policiais militares se preparam para uma operação de apreensão de madeira coletada ilegalmente em partes da Amazônia ao longo da BR-319 perto de Humaitá.

Agentes se preparam para uma operação armada de apreensão de madeira extraída ilegalmente, em uma área ao longo da rodovia conhecida por ser inundada por grileiros, fazendeiros, pecuaristas e madeireiros ilegais.

O desmatamento tem sido acompanhado de perto pela ameaça de violência. Em 2017, garimpeiros ilegais armados em plena luz do dia incendiaram os escritórios do Ibama em Humaitá, a agência federal de fiscalização ambiental. Os inspetores que investigam locais ilegais agora se equipam para o combate: rifles longos, uniformes camuflados, coletes à prova de balas. Proprietários rurais foram alvos. Os criminosos “vêm e executam as pessoas na terra para que possam reivindicá-la”, disse o detetive da polícia estadual do Amazonas, Mário Melo.

Ferrante havia pensado muito sobre os perigos de seu trabalho. O Brasil é um dos países mais perigosos do mundo para investigar crimes ambientais. Vinte ambientalistas foram mortos apenas em 2020. Mas ele disse a si mesmo – e sua família – que isso não aconteceria com ele. Ele era muito metódico, muito cuidadoso. Ainda assim, algum risco era inevitável: “Só podemos descobrir certas coisas entrando”.

Agora ele estava dentro de novo, descendo outro caminho ilegal, olhando para a floresta escura.

“Isso é novo”, disse ele. “Não sabemos o que estamos prestes a encontrar.”

Então foi em cima dele: um quilômetro abaixo da estrada, havia uma grande placa de madeira. Ferrante disse que a terra aqui – era pública e protegida – e não privada e não podia estar à venda. Ele listava um número de telefone e o nome “Martelos”. Ferrante balançou a cabeça e tirou uma foto. A estrada se bifurcava à direita e se abria em uma vasta clareira.

Uma área de terra enegrecida. Uma série de barracos. Fiação elétrica. Uma cerca para segurar o gado.

“Isso vai ser enorme”, disse Ferrante. “Esta vai ser uma enorme fazenda escondida.”

Se alguém o encontrasse aqui, ele se preocupava, haveria problemas. Perguntas difíceis seriam feitas. Alguém pode reconhecê-lo. Ele poderia facilmente desaparecer. Ele estava horas fora do alcance do celular. Ninguém jamais saberia. Trabalhando rapidamente, Ferrante marcou as coordenadas do imóvel, tirou algumas fotos e, planejando alertar as autoridades, voltou para o caminhão. Ele estava furioso.

“Esta é a terra que pertence ao país!” ele fumegava. “Eles acabaram de invadir e arrancaram todas as árvores!”

Ele então ouviu o grasnar dos pássaros. Estava ficando mais alto. O caminhão se aproximou de um poste da cerca. Os abutres estavam sentados nele.

Alves, o fotógrafo, saiu para documentar a cena. Ferrante e eu o seguimos. Estávamos olhando para o caminho de terra quando ouvimos os gritos. Estava vindo de Alves.

Alves corria em direção ao caminhão. Ele gritou que tinha encontrado um corpo. Daí a razão dos urubus. Tinha sido um homem. Suas mãos estavam amarradas. Ferrante disse ao motorista para ligar o caminhão e mantê-lo funcionando. Ele então foi ver por si mesmo. E lá, na base de uma vala ao lado da cerca, ele encontrou a forma imóvel.

O rosto do homem estava desfigurado. Seus pulsos estavam amarrados. Ele parecia ter sido executado.

Abutres são vistos perto de um portão na entrada de uma estrada de terra não sinalizada em uma área próxima à BR-319. Estradas secundárias como esta são muitas vezes obra de grupos criminosos armados envolvidos em apropriação de terras e desmatamento.

O corpo de um homem que parecia ter sido executado foi encontrado em uma vala na zona rural da BR-319. Os pulsos do homem estavam amarrados com uma corda e ele usava um cinto com a imagem de Nossa Senhora Aparecida, padroeira do Brasil.

O corpo de Nelson Antônio da Conceição, o caseiro da fazenda que havia desaparecido, jazia nesta vala há dias. A polícia diz que ele desapareceu pouco depois de contar o que sabia sobre o desaparecimento do trabalhador agrícola Jeferson Bungenstab. Os dois homens, segundo a polícia, trabalhavam para o mesmo pecuarista, Celso Deola, 59 anos. Conceição, segundo a polícia, o acusou de ordenar o desaparecimento de Bungenstab e outros. A polícia disse que Deola, um suposto grileiro e desmatador ilegal, enganaria seus trabalhadores no dia do pagamento e depois resolveria as disputas salariais resultantes com seu “pistoleiro” – um suposto assassino chamado Edmilson de Jesus Chagas, 35, que carregava uma Glock 9mm.

Deola não respondeu a vários pedidos de comentários. Um parente disse: “Infelizmente, ele é meu tio. Espero que desta vez ele pague pelo que fez”.

Ferrante deu uma última olhada em uma das supostas vítimas. Então ele correu de volta para o caminhão. O motorista saiu quando sua porta se fechou. Ferrante ergueu os olhos e sentiu uma onda de pânico: na frente do caminhão, dois homens em uma motocicleta vinham em nossa direção. “Não pare”, disse Ferrante ao motorista. “Faça o que fizer, continue.”

O caminhão ultrapassou a motocicleta.

“Vai! Vai! Vai.”

Os homens continuaram indo na outra direção. O caminhão quebrou a linha de árvores e conseguiu voltar para a rodovia. Ninguém estava seguindo.

“Isso não vai acontecer comigo”, disse Ferrante. “Eu não vou acabar morto.”

O caminhão acelerou para a cidade mais próxima. Discutimos acaloradamente o que fazer. Em uma região onde muitas autoridades locais estão ligadas ao crime ambiental, seria difícil confiar na polícia. Seria mais fácil e seguro esperar até sairmos da região para denunciar o corpo. Mas então pensamos na família desse homem, esperando, sem saber o que havia acontecido com ele. Tínhamos que contar a alguém agora. Então, naquela noite, Ferrante denunciou o corpo e levou a polícia de volta.

Nas próximas semanas, a polícia acusaria Chagas e Deola de matar seus dois funcionários e anunciaria mandados de prisão. Os policiais feririam mortalmente o suposto assassino em um tiroteio em sua casa, disse a polícia. Em seguida, eles tentariam visitar o fazendeiro, disse a polícia, mas Deola já havia fugido. A polícia diz que ele agora é considerado um fugitivo. As autoridades divulgariam fotos do que dizem ter sido descoberto em seu rancho: rifles de grosso calibre, silenciadores, miras telescópicas, cartuchos e cartuchos de munição. Ferrante se sentiria enojado com o quão perto ele chegou de enfrentar essa violência.

Vista do extremo sul da Rodovia 319, próximo a Porto Velho, logo após cruzar a divisa entre os estados do Amazonas e Rondônia.

Mas, por enquanto, nesta estrada, Ferrante sentiu como se estivesse ficando para trás. A estrada nos levou mais ao sul – de volta ao alcance das células, para fora da fronteira sem lei e, finalmente, para uma extensão plácida. A rodovia agora estava totalmente pavimentada e sinalizada. De ambos os lados havia pastagens que se estendiam até o horizonte. A onda de desmatamento já havia passado.

A estrada havia sido atravessada e assim terminou: não em acirrada ilegalidade, mas em um riacho de agradáveis ​​casas de fazenda, em gado serpenteando por campos bem cuidados – em outro pedaço de floresta desmatado e a Amazônia aproximada ainda mais sua morte. As armas se foram. Não havia mais corpos. Os criminosos foram substituídos por empresários legítimos. Era como se a floresta nunca tivesse existido e o futuro já estivesse aqui.

“A transformação está completa”, disse Ferrante.

Gabriela Sá Pessoa contribuiu para este relatório.

História de Terrence McCoy Terrence McCoy é o chefe do escritório do Washington Post no Rio de Janeiro. Ele ingressou no The Post em 2014 e foi redator da equipe nas mesas local, nacional e estrangeira.  Twitter

Sobre esta história

Edição de Matthew Brown. Edição de cópia por Vanessa Larson. Gráficos por Laris Karklis. Edição gráfica por Lauren Tierney. Fotografia de Rafael Alves. Edição de fotos por Chloe Coleman. Vídeo de Raphael Alves, Avener Prado e Terrence McCoy. Edição de vídeo por Alexa Juliana Ard. Design e desenvolvimento por Allison Mann. Edição de design por Matt Callahan. Gerenciamento de projetos por Julie Vitkovskaya.

Tradução livre, parcial, de Luiz Jacques Saldanha, março de 2022.