Inquestionável: glifosato e o câncer

Marcia Sarpa Abrasco

A toxicologista do INCA (Instituto Nacional do ), Márcia Sarpa, traz a fundamentação científica do mata-mato ser igual a mata=gente.

 

http://www.epsjv.fiocruz.br/noticias/entrevista/se-a-substancia-e-carcinogenica-nao-existe-um-limite-de-exposicao-que-nao-va

 

 

Em decisão inédita, a Justiça americana condenou a Monsanto a indenizar o jardineiro Dewayne Johnson em US$ 289 milhões pelo aparecimento de um câncer, que estaria relacionado ao uso do Roundup, que tem como princípio ativo o controverso glifosato, um dos agrotóxicos mais usado no Brasil. O processo é um de cinco mil casos similares em andamento nos EUA. Apesar de a Monsanto negar que a substância esteja ligada à doença, a Agência Internacional de Estudo em Câncer (Iarc, na sigla em inglês) já havia classificado em 2015 a substância como “provavelmente carcinogênico para seres humanos”. Em entrevista ao Portal EPSJV, a toxicologista do Instituto Nacional do Câncer (Inca) e integrante do grupo de trabalho ‘Saúde e Ambiente’ da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), Márcia Sarpa, fala como essa decisão impacta nosso país, que em 2009 se tornou o maior consumidor mundial de agrotóxicos, com mais de um milhão de toneladas, o que equivale a um consumo médio de 5,2 kg de veneno agrícola por habitante. A exemplo do estudo da Iarc, o Inca comprova em pesquisa que está para ser publicada até o fim deste ano que pacientes com exposição ocupacional a agrotóxicos têm mais chances de desenvolverem linfomas não-Hodgkin, o mesmo que afetou o jardineiro americano.
Portal EPSJV/Fiocruz – EPSJV/Fiocruz | 17/08/2018 12h06 – Atualizado em 23/08/2018 15h35

O Inca está para publicar um estudo até o fim do ano, indicando que pacientes com exposição

ocupacional a agrotóxicos têm mais chances de desenvolverem linfomas não-Hodgkin, o

mesmo que afetou o jardineiro americano que receberá uma indenização da Monsanto,

por decisão da Justiça americana. Qual a relação entre este tipo de linfoma e a exposição

ocupacional a agrotóxicos?

Estudo da Iarc publicado em 2015 já havia comprovado a relação entre o glifosato e o linfoma

não-Hodgkin em populações expostas ocupacional e ambientalmente à substância, classificando-a

como provavelmente carcinogênico para seres humanos. Mas tem outros agrotóxicos que também

foram associados ao  linfoma não-Hodgkin, como o malathion [inseticida usado para o controle

de formigas, moscas, baratas e malária], bastante usado no Brasil, tanto na agricultura quanto

em campanhas de – essa substância é usada para matar o mosquito da dengue –,

o diazinon [inseticida organofosforado usado para controlar insetos no solo, nas plantas ornamentais

e nas culturas de frutas e legumes] e o 2,4-D [um dos herbicidas mais antigos do mundo, produzido

durante o programa da guerra química e biológica no período da segunda Guerra Mundial], que

é o segundo ou terceiro agrotóxico mais usado no Brasil. O estudo da Iarc, que contém todos esses

ingredientes ativos de agrotóxicos, foi baseado em estudos epidemiológicos de coortes que vêm

sendo desenvolvidos em vários países, inclusive no Brasil. O estudo do Inca, por exemplo,

que está para ser publicado este ano, ainda que não relacione o glifosato exclusivamente ao linfoma

não-Hodgkin, traz evidências entre o câncer e os agrotóxicos em geral. É um estudo de caso e

controle que realizamos no hospital, por meio do qual identificamos que pacientes com linfoma

não-Hodgkin foram expostos a agrotóxicos durante a vida laboral.

 

Esse estudo traz alguma outra evidência?

Não, porque o estudo foi realizado apenas com pacientes com linfoma não-Hodgkin. Mas estamos

para iniciar um novo estudo com pacientes com tumor de cérebro, uma vez que este tipo de câncer

também já foi associado à exposição ao agrotóxico. São estudos longos, que precisamos fazer por tipo

e localização de tumor.

 

A Agência Internacional de Estudo em Câncer classifica o ingrediente como provável agente carcinogênico para humanos, enquanto que Instituto Brasileiro de Toxicologia defende que não existe comprovação da relação entre o câncer e o glifosato nos estudos científicos. Presidente do Instituto Brasileiro de Toxicologia e coordenador das atividades do Grupo de Informação e Pesquisas sobre o Glifosato – iniciativa apoiada pelas fabricantes do ingrediente químico –, Flavio Zambrone destacou em matéria do jornal O Globo (14/8) que a posição da Iarc não foi aceita por várias agências reguladoras, inclusive a americana, que revisaram a segurança da substância e mantiveram a liberação. Como você observa esse conflito?

Ele é um pesquisador que trabalha para a indústria. Inclusive no processo de reavaliação toxicológica da Anvisa [Agência Nacional de Vigilância Sanitária] que eu participei, a Fiocruz [Fundação Oswaldo Cruz] e o Inca, por exemplo, representavam a saúde e ele representava a indústria. Ele irá falar sempre que os dados científicos não estão corretos. Trata-se de uma questão ideológica. No caso da Iarc, ela segue critérios de avaliação rigorosamente científicos e técnicos. Para posicionar-se em relação à carcinogenicidade de qualquer agente químico, a Iarc irá avaliar estudos científicos internacionais, relacionados ao mecanismo de ação daquele agente. A agência avalia, normalmente, uns dez mecanismos de ação dos agentes químicos, se causa mutação, algum dano genético, estresse oxidativo, entre outros. Irá organizar em uma tabela quantos estudos foram encontrados associando o glifosato, por exemplo, aos danos provocados. Ela também avaliará estudos do mundo inteiro, publicados por pesquisadores independentes. E é muito importante quando se avalia os estudos internacionais aplicados por pesquisadores independentes, que seguem com rigor os padrões, as diretrizes e as linhas toxicológicas para se chegar a um determinado resultado, porque existem os estudos publicados pela indústria, carregados de interesses. Em suma, a Iarc se baseará em três evidências para dar o parecer dela: evidências de mecanismos de carcinogenicidade; de tumores em animais; e de tumores em seres humanos. Eu não quero ser leviana, mas, por exemplo, nos Estados Unidos, a Agência de Proteção Ambiental, que eu acho que é a que Zambrone se refere, usa como referência o processo de avaliação de risco, estabelecendo um limite de exposição para que não ocorra efeito adverso, não ocorra câncer. É o mesmo que estão querendo fazer aqui no Brasil, com o Projeto de Lei 6.299 [conhecido como ‘PL do veneno’]. A gente sabe que, toxicologicamente, se a substância é carcinogênica, não existe um limite de exposição que não vá causar câncer, porque uma única molécula já pode causar o tumor. Só para refletirmos: os Estados Unidos são um dos países que apresentam a maior incidência de câncer, e eles têm uma alta incidência de exposição a agrotóxicos. Eu morei lá por um tempo, e o alimento que eles consomem é super industrializado, logo processado com diversos aditivos de agrotóxicos.

A decisão da Justiça americana que condenou a Monsanto a indenizar o jardineiro Dewayne Johnson pelo aparecimento de um câncer, que estaria relacionado ao uso do herbicida Roundup, que tem como princípio ativo o glifosato, defensivo agrícola mais utilizado no Brasil, traz reflexos sobre nosso país? Como biomédica e pesquisadora dos efeitos da exposição a agrotóxicos, qual a sua avaliação sobre essa decisão?

Foi uma decisão muito importante, que poderá abrir precedente aqui no Brasil. Uma questão interessante a ser analisada nesse caso do jardineiro é que ele era exposto diretamente ao glifosato, havia um ingrediente ativo único a que ele era exposto. E ele pôde ganhar essa causa baseado na publicação da Iarc, uma vez que a agência comprovou a relação entre o glifosato e o linfoma não-Hodgkin. No Brasil, especialmente na agricultura, identificar uma única substância fica mais difícil, pois se usa muitos ingredientes ativos de agrotóxicos, o que poderá dificultar a comprovação da relação entre os agentes ativos e certos tipos de câncer. Mas, por exemplo, temos os agentes de endemias, e eles estão expostos a produtos agrotóxicos específicos, que é o malathion, classificado como provavelmente carcinogênico, podendo causar o linfoma não-Hodgkin e o câncer de próstata. A Fiocruz – e o Inca faz parte desse projeto – vem desenvolvendo estudos com agentes de endemias e identificando a relação entre a exposição ao ativo e o câncer. A gente poderá, também, em breve comprovar essa associação, para que esses trabalhadores possam cobrar na justiça os danos causados pela exposição ao malathion durante a vida laboral.

Como se dá a intoxicação por agrotóxicos?

Temos a intoxicação aguda e a intoxicação crônica. A intoxicação aguda caracteriza-se pela exposição a uma grande quantidade de agrotóxico, em um período de até 24 horas. Esse tipo de intoxicação ocorre quando um indivíduo toma uma grande quantidade da substância, em uma tentativa de suicídio, ou por meio, principalmente, da exposição ocupacional. Neste caso, são trabalhadores da agricultura ou da indústria de agrotóxicos os mais afetados. A intoxicação crônica, por sua vez, se caracteriza pela exposição ao longo da vida, por anos, podendo ser durante dez, 15 anos. É uma exposição a pequenas quantidades, mas durante longos períodos. Neste caso, são atingidos os trabalhadores da agricultura e da indústria, expostos no ambiente de trabalho, mas também a população de uma maneira geral, exposta aos agrotóxicos através do consumo de água e alimentos contaminados. As intoxicações, independentemente se aguda ou crônica, estão diretamente associadas ao fato de sermos um dos países que mais consomem agrotóxicos.

Pode-se afirmar, portanto, que a população mais atingida é a rural?

Sim, tanto trabalhadores agrícolas quanto moradores do espaço rural. Há um tipo de exposição, que chamamos de exposição ambiental, que atinge, por exemplo, a família do agricultor. Ele tem uma lavoura em casa, por exemplo, mas mora ao lado de uma grande plantação que faz uso de agrotóxicos. O vento e a chuva irão trazer para perto dessa família todas as substâncias aplicadas naquela plantação. Uma criança brincando no quintal dessa casa, especialmente, vai sofrer com essa exposição. Além disso, tem a questão de lavar os equipamentos usados na plantação em casa, de lavar as roupas sujas do trabalho, contaminadas de agrotóxicos, junto com as outras roupas da família, entre outros casos. Em Casimiro de Abreu, uma cidade predominantemente rural, localizada no interior do estado do Rio de Janeiro, onde desenvolvemos um trabalho relativo à exposição a agrotóxicos, observamos que muitas famílias usam embalagens dos agrotóxicos dentro de casa para armazenar água, lavar roupa. Elas transformam as embalagens em baldes de água. Por isso que, nesse trabalho que desenvolvemos, entrevistamos e coletamos amostras biológicas de sangue e urina dos trabalhadores rurais, bem como dos moradores da região.

Quais são os efeitos desta intoxicação e da exposição contínua a agrotóxicos, além do risco de desenvolvimento de câncer?

Os efeitos da intoxicação aguda são náuseas, vômitos, diarreia, coceira, até casos de coma e morte, dependendo da quantidade que o indivíduo foi exposto. O problema, nesses casos, é que normalmente as intoxicações por agrotóxicos não são notificadas corretamente, pois os sintomas de náuseas, vômitos ou diarreia são semelhantes aos da gripe ou de uma intoxicação alimentar. E a subnotificação acaba levando a um problema muito grande de saúde pública, porque a partir do momento em que não se enxerga a contaminação por agrotóxico, nada se faz nesse sentido. Em relação à intoxicação crônica, há inúmeros efeitos bastante graves. Um deles é sobre o sistema nervoso central – o desenvolvimento de Parkinson entre agricultores, por exemplo, já foi associado à exposição crônica a agrotóxicos. Isso porque já está comprovado que os agrotóxicos atuam sobre algumas moléculas, alguns ingredientes ativos de determinadas substâncias interagem com o sistema nervoso, causando danos como tremores e neuropatias periféricas. Há, também, os problemas associados ao sistema endócrino, que chamamos de desregulação hormonal, ou seja, de alteração na produção de hormônios da tireoide, do estrogênio ou da testosterona. Nós observamos um aumento de trabalhadores expostos a agrotóxicos com problemas de tireoide. Em Paulínia, interior de São Paulo, por exemplo, onde durante anos a Shell-Basf [fábrica de agrotóxicos], contaminando trabalhadores e o entorno com organoclorado [agrotóxico utilizado em pesticidas, nas tintas, no plástico, no verniz, entre outros produtos], as pessoas que moravam no entorno começaram a apresentar problemas hormonais, na tireoide. Além da tireoide, os hormônios sexuais estrógeno e testosterona são alterados pelos agrotóxicos. Isso é muito importante para compreendermos o câncer de mama. Ele é um câncer que está relacionado à exposição aumentada de estrogênio, dos receptores de estrogênio. Estudos publicados nos Estados Unidos revelam aumento de casos de câncer de mama na população rural associado à exposição a agrotóxicos.

Observamos, ainda, danos no sistema imunológico, que podem ser uma imunoestimulação, ou seja, aumento da capacidade do sistema de produzir células imunológicas, implicando o crescimento das alergias e de reações a vacinas, ou uma imunossupressão, que diminui a capacidade de produzir células do sistema imune e, consequentemente, a formação do câncer. Nós precisamos de um sistema imunológico vigilante, para caso surja uma célula tumoral ele a destrua. A exposição aos agrotóxicos impacta, também, o sistema reprodutivo. Nesse caso, aparecem os problemas de infertilidade e abortos, que também já foram descritos em estudos científicos nacionais e internacionais com populações expostas a agrotóxicos em lavouras. Há uma tese de mestrado, defendida pela Universidade Federal do Ceará, em que se constatou o aumento de casos de crianças que nasceram com má formação congênita, em consequência das mães terem sido expostas durante a gravidez aos agrotóxicos. Além do Ceará, o estado do Paraná detectou um aumento de casos de má formação congênita em regiões onde o uso de agrotóxicos é alto.

Quais são os principais desafios impostos por este cenário?

Precisamos apoiar a Política Nacional de Redução de Agrotóxicos [PNaRA]. É um projeto de lei que foi proposto pela Abrasco e que está no Congresso nesse momento. Já começaram as audiências públicas em relação à política. Precisamos ocupar esses espaços como forma de apoiar a política, com vistas a reduzir os casos de câncer e outras doenças no país que estão relacionados à exposição a esses produtos.