Indígenas são peça-chave contra crise climática, diz FAO

Relatório mostra que os territórios indígenas devidamente reconhecidos são os que têm áreas mais intactas de vegetação e menores taxas de desmatamento

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Nádia Pontes

25.03.2021

Relatório inédito da agência da ONU com base em centenas de estudos científicos conclui que indígenas são os melhores guardiões das florestas e pede apoio internacional para protegê-los.

Povos indígenas são os melhores guardiões das florestas tropicais e fundamentais para o equilíbrio do clima do planeta. A conclusão é de um relatório inédito assinado pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO, na sigla em inglês), divulgado nesta quinta-feira (25/03).

É a primeira vez que a FAO, criada há mais de 75 anos para combater a fome e buscar a segurança alimentar no mundo, produz um documento dedicado ao papel dos povos indígenas com base em evidências científicas – mais de 300 publicações foram consultadas.

“Está claro que a situação dos indígenas e populações tribais se tornou urgente”, justifica David Kaimowitz, especialista da agência da ONU e um dos autores.

A urgência vem de questões políticas, econômicas, geográficas e culturais que colocam os territórios indígenas em xeque, agravadas pela pandemia de covid-19. Esse cenário está diretamente ligado ao aumento da demanda por alimentos, energia, minérios e madeira, além de projetos de infraestrutura.

A cobiça pelo controle dos recursos naturais coloca os povos e seus territórios sob pressão, e os impactos ambientais e sociais dessa ameaça que recai sobre esses cuidadores das florestas serão desastrosos, alerta o relatório.

“A pandemia nos fez mais conscientes dos perigos de não responder prontamente aos problemas. E esse é um momento importante, em que estamos vendo que é preciso enfrentar a crise climática e da biodiversidade. Os indígenas são parte da solução”, adiciona Kaimowitz. 

Retrocessos no Brasil

Um terço das florestas tropicais na América Latina e no Caribe são classificadas como territórios indígenas. Com estudos de caso feitos em diferentes países, incluindo o Brasil, o documento mostrou que os territórios devidamente reconhecidos são os que têm áreas mais intactas de vegetação e menores taxas de desmatamento.

Por outro lado, desde que Jair Bolsonaro assumiu a presidência, com a promessa de rever as terras demarcadas, o número de invasões e crimes ambientais disparou. Ao mesmo tempo, um projeto de lei que questiona a autonomia dos indígenas em seus territórios, o que é garantido pela Constituição, avança com apoio de parlamentares, fazendeiros, mineradoras e governo na Câmara dos Deputados.

Os retrocessos no Brasil deixam a comunidade internacional em alerta. Ainda assim, para Myrna Cunningham, presidente do Fundo para Desenvolvimento dos Povos Indígenas na América Latina e Caribe (Filac), é possível driblar esse cenário.

“Mesmo em casos como o do Brasil, consideramos que, com um movimento global fortalecido, é possível provocar mudanças de fora para dentro, via investidores, grandes organizações internacionais e um movimento global forte”, afirma em entrevista à DW.

Na visão de Cunningham, grandes consórcios de investidores estão preocupados. “Se o tema de direitos indígenas não é resolvido, eles não podem investir em novas áreas”, afirma.

Exemplo positivo ameaçado

Dentre os exemplos positivos de políticas que fortalecem a boa gestão de territórios indígenas está o PrevFogo, programa do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente (Ibama). Com base em conhecimentos tradicionais e treinamento técnico, brigadistas são contratados pelo governo na temporada de seca para prevenir e combater queimadas e incêndios florestais.

“Diálogos interculturais entre oficiais do serviço público e comunidades indígenas podem enriquecer políticas de governo”, elogia o estudo mencionando o caso brasileiro.

Em 2020, porém, ano em que as queimadas consumiram os biomas em níveis alarmantes, o corte na contratação geral de pessoal de combate ao fogo foi 58% – caiu de R$ 23,78 milhões em 2019 para R$ 9,99 milhões no ano passado.

“Não sei se o governo Bolsonaro está repensando algumas de suas posições nesses temas. O que podemos dizer é que importante não só para o Brasil, mas para o mundo lidar com essas questões”, comenta Kaimowitz sobre o corte no PrevFogo e ataques a terras demarcadas.

“Extensas áreas de florestas intactas na Amazônia estão nas mãos de indígenas e quilombolas. Perda de florestas terão um impacto devastador na agricultura brasileira, no abastecimento de água e na saúde humana”, pontua o pesquisador com base nas publicações científicas consultadas para o relatório.

No foco da ciência

A influência dos povos indígenas na conservação das florestas despertou atenção especial de cientistas nas últimas duas décadas. Para Paulo Moutinho, pesquisador sênior do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), a curiosidade científica se aguçou com as descobertas feitas durante os primeiros anos do Experimento de Larga Escala na Biosfera-Atmosfera na Amazônia (LBA), a partir de 1999.

“O LBA trouxe informações que permitiram avaliar o papel da floresta na manutenção do clima local e regional e como a floresta preservada afetava o clima fora da região”, comenta Moutinho, ressaltando como a conservação influencia a biodiversidade, o regime de chuvas e o transporte de umidade. “Mais tarde, outros trabalhos começaram a indicar mais precisamente o papel da preservação ambiental com participação indígena, de como as áreas sob o cuidado deles são as mais preservadas.”

Estudos publicados por Moutinho e citados no relatório da FAO, por exemplo, mostram que a perda de gás carbônico, que provoca o efeito estufa e acelera as mudanças climáticas, é infinitamente menor em reservas indígenas na Amazônia. Nesses locais, a área desmatada e degradada é, em média, menor que 2% do total. No último ano, porém, invasões ilegais para extração de madeira e garimpo têm aumentando esse índice.

“É por isso que o relatório propõe ações concretas, como fortalecer organizações indígenas”, diz Cunningham sobre os guardiões da floresta. Pagamento por serviços ambientais, apoio a projetos de manejo sustentável e garantia dos direitos territoriais são outras medidas propostas pela FAO.

No momento em que o mundo busca formas de recuperação na pós-pandemia e assiste ao avanço das mudanças climáticas, a preservação das florestas feita por indígenas é uma saída viável que precisa de apoio internacional, defende Cunningham.

“E a FAO, que publica o relatório, tem mandato para encontrar e propor aos países medidas que melhorem a segurança alimentar. O manejo de forma sustentável que os indígenas fazem de suas florestas contribui para isso”, afirma.

As mulheres indígenas, adiciona, merecem destaque. “Quando falamos das florestas, as mulheres também têm papel importante na proteção dos recursos naturais, da água, do alimento. São elas que coletam e processam as sementes tradicionais. Durante a pandemia elas seguem fazendo isso num contexto complicado, pois cresceu o racismo e a discriminação.”