Mostrar que um alimento geneticamente modificado é quimicamente similar ao seu equivalente natural não constitui evidência adequada de que ele é seguro para o consumo humano. E é com base neste enfoque da equivalência substancial que as plantas transgênicas vêm sendo liberadas em diferentes países, inclusive no Brasil. Para além da “equivalência substancial”.
http://antigo.aspta.org.br/por-um-brasil-livre-de-transgenicos/documentos/equivalencia-substancial-um-conceito-mais-comercial-que-cientifico
Erik Millstone, Eric Brunner e Sue Mayer
Revista Nature, 07 de outubro de 1999
Mostrar que um alimento geneticamente modificado é quimicamente similar ao seu equivalente natural não constitui evidência adequada de que ele é seguro para o consumo humano
Todas as vezes em que foi concedida aprovação oficial à introdução de alimentos geneticamente modificados (ou transgênicos) na Europa ou nos Estados Unidos, os comitês reguladores invocaram o conceito da “equivalência substancial”. Isto significa que se um alimento transgênico puder ser caracterizado como substancialmente equivalente ao seu antecedente “natural”, pode-se assumir que ele não representa novos ricos à saúde e portanto é aceitável para uso comercial. À primeira vista a abordagem pode parecer plausível e encantadoramente simples, mas acreditamos que ela é mal orientada e deveria ser abandonada em favor de outra que inclua testes biológicos, toxicológicos e imunológicos ao invés de simples testes químicos.
O conceito da equivalência substancial nunca foi adequadamente definido; o grau de diferença entre um alimento natural e sua alternativa transgênica até que suas “substâncias” deixem de ser aceitas como “equivalentes” não está definido em nenhum lugar, assim como não existe uma definição exata acordada por legisladores. É exatamente esta imprecisão o que torna o conceito tão útil à indústria, mas inaceitável aos consumidores. Além disso, a confiança dos tomadores de decisão no conceito da equivalência substancial funciona como uma barreira para a realização de pesquisas mais aprofundadas sobre os possíveis riscos do consumo de alimentos transgênicos.
Ingestão diária aceitável
O conceito da equivalência substancial surgiu em resposta ao desafio enfrentado por autoridades reguladoras no início da década de 1990. Empresas de biotecnologia haviam desenvolvido diversos alimentos transgênicos e, para reassegurar seus clientes, queriam aprovação oficial à sua introdução no mercado. Mas estatutos governamentais não cobriam alimentos transgênicos e tampouco estabeleciam competências para a regulamentação dessas inovações. A legislação poderia ser emendada, mas isto não resolveria o problema central de como avaliar os riscos. Uma solução óbvia àquela altura seria os legisladores darem aos alimentos transgênicos o mesmo tratamento dado aos novos compostos químicos, como medicamentos, agrotóxicos e aditivos alimentares, e requererem das empresas a condução de uma série de testes toxicológicos dos quais se poderia obter evidências para a determinação de níveis de “ingestão diária aceitável” (IDA). Regulamentações poderiam então ter sido introduzidas para assegurar que níveis de IDA nunca (ou raramente) fossem excedidos.
Do ponto de vista da indústria de biotecnologia, esta abordagem teria tido dois principais incovenientes. Primeiro, as empresas não queriam ter que conduzir experimentos toxicológicos, que atrasariam o acesso de seus produtos ao mercado por pelo menos cinco anos, e acrescentariam aproximadamente U$ 25 milhões por produto em custos de pesquisa e desenvolvimento. Segundo, por definição, o uso de níveis de ingestão diária aceitável teria restringido os alimentos transgênicos a um papel marginal na dieta. Um nível de IDA é geralmente definido como um centésimo da dose mais alta constatada como não prejudicial a animais de laboratório. Assim, mesmo se animais de laboratório não mostrassem efeitos adversos com uma dieta constituída exclusivamente do material testado, a ingestão humana ainda seria restrita a 1% da dieta. As empresas de biotecnologia querem comercializar alimentos básicos transgênicos, como grãos, feijões e batatas, que individualmente poderiam representar até 10% da dieta humana, e coletivamente fornecer mais da metade da ingestão de alimentos de uma pessoa.
A adoção do conceito da equivalência substancial pelos governos dos países industrializados funcionou como um sinal às indústrias de alimentos transgênicos de que, desde que as empresas não tentassem comercializar alimentos transgênicos que tivessem uma composição química gritantemente diferente daquela de alimentos já presentes no mercado, seus novos produtos seriam liberados sem qualquer teste toxicológico ou de segurança. O conceito da equivalência substancial também visava tranqüilizar os consumidores, mas não está claro se ele serviu, ou pode servir, a este propósito. Embora testes toxicológicos e bioquímicos e sua interpretação sejam notoriamente problemáticos e contestados, além de serem demorados e caros, eles podem fornecer informações essenciais à proteção dos consumidores [1].
Cercando por ambos os lados
O desafio de como lidar com a questão do risco de se consumir alimentos transgênicos foi inicialmente enfrentado em 1990, em um encontro internacional da FAO/ONU (Organização para a Agricultura e Alimentação / Organização das Nações Unidas) e da OMS/ONU (Organização Mundial de Saúde / ONU), que contou com a participação de representantes oficiais e da indústria, mas não de consumidores [2]. O relatório do painel da FAO/OMS proporciona uma leitura intrigante, porque o que ele deixa de mencionar é tão importante quanto o que é discutido. Ele não usa o termo “equivalência substancial” e nem menciona níveis de Ingestão Diária Aceitável. Ele sugere que os alimentos transgênicos são singulares em alguns aspectos importantes, mas então afirma que eles não são de maneira nenhuma diferentes – são apenas produzidos por extensões marginais de técnicas tradicionais. Estas inconsistências são inevitáveis, considerando que as indústrias queriam argumentar tanto que os alimentos transgênicos eram suficientemente diferentes para requerer nova legislação e uma profunda revisão das regras sobre direitos de propriedade intelectual de modo a permitir-lhes patenteá-los, como também argumentar que eles não eram tão diferentes de modo que não poderiam introduzir novos riscos à saúde pública ou ao meio ambiente.
As empresas de biotecnologia queriam que os reguladores governamentais as ajudassem a convencer os consumidores de que seus produtos eram seguros, e ainda queriam que os obstáculos regulatórios fossem os mínimos possíveis. Os governos queriam que a regulamentação de alimentos transgênicos tivesse uma abordagem que pudesse ser acordada internacionalmente e que não inibisse o desenvolvimento das empresas de biotecnologia em seus países. O comitê da FAO/OMS recomendou, então, que os alimentos transgênicos deveriam ser tratados analogamente aos seus antecedentes não transgênicos e avaliados essencialmente pela comparação dos dados sobre sua composição com os dados de seus antecedentes naturais, de modo que se pudesse considerá-los similarmente aceitáveis. Apenas se existissem diferenças de composição evidentes e importantes é que seria apropriado requerer outros testes, o que seria decidido em avaliações caso a caso.
Infelizmente, os cientistas ainda não são capazes de predizer com segurança os efeitos bioquímicos ou toxicológicos de um alimento transgênico a partir do conhecimento de sua composição química. Por exemplo, um trabalho recente sobre a genética de variedades comerciais de uva mostrou que, apesar do conhecimento detalhado sobre a química e o sabor de uvas e vinhos existente há séculos, a relação entre a genética das uvas e o seu sabor ainda não é compreendida [3]. Da mesma maneira, a relação entre genética, composição química e riscos toxicológicos permanece desconhecida. Confiar no conceito da “equivalência substancial” é portanto apenas uma ilusão: é como simular a existência de bases adequadas de julgamento para decidir se os produtos são ou não seguros.
Os resultados dos experimentos de Arpad Pusztai com batatas transgênicas e sua interpretação permanecem uma questão controversa (ver Nature 398, 98; 1999), mas sua hipótese inicial era a de que as batatas transgênicas seriam substancialmente equivalentes às batatas não transgênicas. Pusztai interpretou seus resultados ainda não publicados como indicativos de que as batatas transgênicas manifestaram efeitos bioquímicos e imunológicos adversos, que não poderiam ter sido previstos a partir do que era conhecido sobre sua composição química. Os tipos de experimentos que ele conduziu não são legalmente exigidos e portanto não são rotineiramente conduzidos antes que alimentos transgênicos sejam introduzidos na cadeia alimentar.
Fracasso em definir “equivalência substancial”
O conceito da equivalência substancial foi introduzido em 1993 pela OECD [4] e foi subsequentemente endossado em 1996 pela FAO e pela OMS. Dada a importância que o conceito veio a alcançar, é notável que ele permaneça tão mal definido e que tão pouca atenção seja dada a este fato. O documento da OECD atesta:
“Para alimentos e componentes alimentares provenientes de organismos desenvolvidos pela aplicação da biotecnologia moderna, a abordagem mais prática para a decisão é analisar se eles são substancialmente equivalentes a produtos alimentares análogos, se tais existirem…. O conceito da equivalência substancial concretiza a idéia de que organismos existentes usados como alimentos, ou como fontes de alimentos, podem ser usados como base para comparação quando da avaliação da segurança do consumo humano de um alimento ou de um componente alimentar que tenha sido modificado ou que seja novo.”
Isto foi o mais próximo de uma definição oficial sobre equivalência substancial a que se chegou, mas a definição é vaga demais para servir como uma referência para política de saúde pública.
A soja transgênica tolerante ao glifosato ilustra como o conceito foi usado na prática. A composição química desta soja é, obviamente, diferente daquela de todas as variedades de soja antecedentes, caso contrário ela não seria patenteável e não resistiria à aplicação do glifosato. É muito fácil distinguir, em laboratório, as características bioquímicas específicas que fazem estas plantas diferentes. A soja resistente ao glifosato, no entanto, foi considerada substancialmente equivalente às variedades de soja não transgênica ao se assumir que as diferenças genéticas e bioquímicas conhecidas são toxicologicamente insignificantes e focando-se, ao invés disso, em um grupo restrito de variáveis de composição, como as quantidades de proteínas, carboidratos, vitaminas e minerais, aminoácidos, ácidos graxos, fibra, cinza, isoflavonas e lecitinas. A soja tolerante ao glifosato foi considerada substancialmente equivalente porque similaridades suficientes aparecem para estas variedades selecionadas.
Mas este julgamento não é confiável. Embora nós saibamos há cerca de dez anos que a aplicação de glifosato na soja altera significativamente sua composição química (por exemplo, o nível de componentes fenólicos como isoflavonas [5]), a soja resistente ao glifosato usada nos testes de composição cresceu sem a aplicação de glifosato [6]. Isto apesar do fato de que as lavouras comerciais de soja tolerante ao glifosato seriam sempre tratadas com o produto para eliminar plantas invasoras. Os grãos testados eram, portanto, de um tipo que jamais seria consumido, enquanto aqueles que seriam consumidos não foram avaliados. Se a soja tolerante ao glifosato tivesse sido tratada com o agrotóxico antes da análise de sua composição química, teria sido mais difícil sustentar a reivindicação de equivalência substancial. Existe um debate na comunidade científica sobre se tais alterações na composição química são desejáveis ou indesejáveis, mas esta é uma questão que permanece não resolvida e que foi negligenciada por aqueles que consideraram a soja transgênica tolerante ao glifosato substancialmente equivalente à soja não transgênica.
Limitações confessas
Apenas uma organização oficial reconheceu algumas das limitações do conceito da equivalência substancial. Uma equipe do governo alemão admitiu que “análises sobre a composição… como um método de triagem para efeitos não esperados… de modificação genética têm suas limitações… em particular com respeito a anti-nutrientes e toxinas naturais desconhecidas”, e deu uma pista tentando explorar algumas alternativas [7]. A equipe alemã aceita que comparações com dados crus sobre a composição de organismos correspondentes fornecem uma triagem muito fraca sobre a introdução de acasos genéticos, bioquímicos, imunológicos e toxicológicos, e sugere uma triagem mais fina para testar as diferenças em algumas das variáveis biológicas relevantes, como análise de DNA, transcrição de RNA mensageiro, transcrição de proteína, descrição de metabólitos secundários e testes de toxicidade in vitro. Se o uso de uma triagem tão fina revelasse que um alimento transgênico contivesse um grau relevante de diferença, então a recomendação de estudos mais aprofundados seria ainda mais forte, e tais estudos poderiam se beneficiar das pistas indicando que hipóteses valeriam mais a pena ser investigadas.
A equivalência substancial é um conceito pseudo-científico porque é um julgamento comercial e político mascarado de científico. Ele é, além disso, inerentemente anti-científico, porque foi criado primeiramente para fornecer uma desculpa para não se requererem testes bioquímicos e toxicológicos. Ele ainda serve para desencorajar e inibir pesquisas científicas potencialmente informativas. O caso da soja transgênica tolerante ao glifosato mostra, mais ainda, que o conceito da equivalência substancial está sendo mal aplicado dentro dos processos regulatórios, mesmo em seus próprios termos. Se os tomadores de decisão estão aí para garantir a proteção adequada dos consumidores e verdadeiramente tranqüilizá-los, então o conceito da equivalência substancial deve ser abandonado, ao invés de meramente aprimorado. Ele deve ser substituído por uma abordagem prática que investigue ativamente a segurança e a toxicidade dos alimentos transgênicos, ao invés de simplesmente confiar neles, e que possa realmente levar em consideração princípios de saúde pública, assim como interesses industriais.
Autores:
Erik Millstone, (SPRU) Science and Technology Policy Research, Mantell Building, Sussex University, Brighton BN1 9RF
(E-mail [email protected]);
Eric Brunner, Department of Epidemiology and Public Health, University College, 1-19 Torrington Place, London WC1E 6BT;
Sue Mayer, GeneWatch UK, The Courtyard, Whitecross Road, Tideswell, Buxton, Derbyshire SK17 8NY
Referências:
[1] ‘The ADI Debate’, Appendix I de ‘Food additives and the consumer’, European Commission, 1980, pp. 41-3.
[2] Strategies for assessing the safety of foods produced by biotechnology, WHO, Geneva, 1991.
[3] Bowers, J. et al. Science 285, 1562-1565 (1999).
[4] Safety Evaluation of Foods Derived by modern biotechnology. OECD, Paris, 1993.
[5] Lydon, J. & Duke, S.O. Pesticide Science 25, 361-374 (1989).
[6] Padgette, S. R. et al. Journal of Nutrition 126, 702-716 (1996).
[7] Kuiper, H. A. et al. Food Safety Evaluation of Genetically Modified Foods as a Basis for Market Introduction (Ministry of Economic Affairs, The Hague, 1998).