https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S1631069117301300
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Abstract
Vários agrotóxicos são suspeitos ou comprovados como sendo disruptores endócrinos (nt.: em inglês – endocrine disruptor compounds/EDCs). No presente levantamento bibliográfico, tentamos definir as principais questões a serem consideradas para a classificação individual dos agrotóxicos como disruptor endócrino ou não.
Keywords
Pesticide; Endocrine Disruptor; Nuclear receptor; Risk; Hazard Mechanism
1. Introdução
Os agrotóxicos são moléculas sintéticas destinadas a serem tóxicas para fungos, plantas ou animais que são prejudiciais às culturas. Fungicidas (fungicides), herbicidas e inseticidas foram desenvolvidos para controlarem o mais especificamente possível estas pragas, a fim de protegerem as culturas. No entanto, estes agrotóxicos podem ser tóxicos para os seres humanos e a fauna selvagem. Essas moléculas devem ser tóxicas, uma vez que visam destruir organismos vivos, mas são selecionadas para afetarem etapas precisas nos organismos-alvo que não estão presentes em organismos não-alvo (non-target organisms). Além disso, seu uso pretendido é erradicar agudamente espécies indesejadas e a maioria dos testes de toxicidade também é feita mais em situações agudas do que em experimentos de longo prazo (long-term experiments). E é geralmente em situações de longo prazo que moléculas xenogênicas podem potencialmente agir como disruptores endócrinos.
Nosso objetivo no presente trabalho é definir as características funcionais dos disruptores endócrinos, a fim de avaliar se sua toxicidade para espécies não-alvo é principalmente devida a esta sua função de desregular o sistema endócrino ou não.
2. Definição(s) de Disruptores Endócrinos
O termo compostos disruptores endócrinos (nt.: em inglês – endocrine disruptor compounds/EDCs) foi definido em 2002 pela OMS/ONU: “Um disruptor endócrino é uma substância exógena ou uma mistura delas que altera função(ões) do sistema endócrino (endocrine system) e consequentemente causa efeitos adversos de saúde em um organismo intacto, ou sua progênie (progeny) ou em (sub)populações”.
O sistema endócrino é constituído por um grande rede de hormônios, permitindo funções coordenadas de dezenas de diferentes tipos de células em organismos multicelulares. Esta rede processa numerosas interconexões de estimulação e retroação em cascada para que os diferentes parâmetros fisiológicos (tais como glicemia –glycaemia-, lipedema, equilíbrios hidromineral, etc.) e funções fisiológicas (tais como o desenvolvimento do organismo, crescimento, reprodução, etc.) sejam estabelecidos numa ordem adequada para a boa saúde do organismo em sua totalidade e para a sobrevivência das espécies.
Neste trabalho, nosso objetivo é introduzir uma série de questões centrais em relação aos EDCs com particular interesse nos agrotóxicos.
3. Mecanismo das Disfunções Endócrinas
Os EDCs são moléculas, naturais ou sintéticas, que interferem na rede endócrina dos vertebrados (vertebrates), provocando disfunção adversa dos parâmetros ou funções fisiológicas controladas hormonalmente [1]. Essa interferência pode ocorrer através de diferentes mecanismos (Fig. 1), tanto diretamente pela ligação ao receptor hormonal (hormone receptor) como indiretamente pelo aumento ou pela diminuição da concentração do(s) hormônio(s) endógeno(s):
• o mais direto é uma interação dos EDCs com um receptor hormonal que leva tanto à estimulação (Fig. 1A) [2] como à inibição (Fig. 1A) da via celular a jusante nas células-alvo;
• ou as concentrações de hormônios ativos endógenos que podem ser afetadas tanto pela estimulação como pela inibição de sua síntese (Fig. 1B) bem como por sua degradação (Fig. 1C) [2], [3] ou mesmo disponibilidade (Fig. 1D).
Vários testes in vitro e in vivo vêm sendo estabelecidos por diversas agências nacionais e internacionais para identificarem os EDCs [4], [5], [6], [7].
4. Estruturas e atividade tóxica planejada dos agrotóxicos
Uma grande maioria dos agrotóxicos são pequenas moléculas orgânicas com peso molecular em torno de 300 to 2000 Da.
Os inseticidas controlam insetos por interferirem em seu sistema nervoso ou inibirem sua metamorfose. Por exemplo, inibidores da acetilcolinesterase (acetylcholinesterase) (os agrotóxicos chamados de organofosforados, carbamatos) e antagonistas do canal de sódio (agonists) (piretroides) que agem sobre o sistema nervoso do inseto [8], [9] tanto quanto os inseticidas neonicotinoides (neonicotinoid insecticides) (imidacloprid, acetamiprid, thiacloprid, clothianidin, thiamethoxam, e dinotefuran) que atuam através de sua afinidade com os subtipos [10], [11], [12], [13], [14], [15] com o receptor nicotínico (nicotinic receptor/nAChR). Estes últimos têm um perfil de segurança favorável devido a sua pobre penetração na barreira hematoencefálica (blood–brain barrier) dos mamíferos e baixas taxas de aplicação, controlando efetivamente as espécies pragas que desenvolveram resistência a outras classes de inseticidas. No entanto, devido à sua alta toxicidade intrínseca às abelhas (honey bees [16], [17]), os inseticidas neonicotinoides nitro-substituídos têm sido intensamente avaliados pelas agências reguladoras em todo o mundo e temporariamente suspensos na União Europeia para tratamento de sementes, aplicação no solo e tratamento foliar em cultivos atrativos às abelhas. Isto ilustra a dificuldade de desenvolver e aplicar inseticidas sem afetar os insetos não-alvos [18], [19].
Os herbicidas controlam o desenvolvimento de plantas não desejadas pela inibição da síntese de alguns de seus amino-ácidos, de sua fotossíntese (photosynthesis) ou pela antagonização especificamente da ação natural dos reguladores de seu desenvolvimento [20], [21], [22]. Por exemplo, herbicidas tricetona alteram a formação de carotenoides (carotenoids) e por isso interrompem o transporte de elétron (electron transport) fotossintético nas plantas. Já que o objetivo é ter um impacto fisiológico sobre plantas específicas e não sobre o cultivo, a rápida metabolização das tricetonas pelo milho, em particular pelas enzimas citocromo P450 (cytochrome P450), torna esta planta insensível ao tratamento do herbicida [23]. Um conhecimento preciso das espécies de plantas-alvo é importante para obter a máxima eficiência na escolha do herbicida mais específico e eficiente [24]. Os fungicidas (fungicides) [25] controlam fungos pela inibição da síntese de alguns de seus amino-ácidos ou suas divisões celulares.
5. Estruturas e a atividade da disfunção endócrina dos agrotóxicos
Muitos testes in vitro vêm sendo criados para detectarem potencias efeitos diretos de estimulação ou inibição (Fig. 1A) pelos agrotóxicos sobre a atividade transcricional dos receptores nucleares (nuclear receptors), que são os principais alvos diretos dos EDCs [26]. Em 2010, uma grande pesquisa de 200 agrotóxicos em testes transcricionais in vitro para seis diferentes receptores (hERα, hERβ, hAR, hPXR, mPPARα, mAhR) foi publicada [27], e apontou que, entre eles, 47 mostraram ação mediada pelo receptor hERα 33 e pelo hERβ. Somente três mostraram transcrição mediada pelo mPPARα, enquanto 11 pelo mAhR. Curiosamente, 106 de 200 exibiram atividade agonista (agonist) em sistemas dependentes do receptor hPXR. É interessante ressaltar que o hPXR é o receptor nuclear com a bolsa de ligação mais volumosa (≥ 1200 Å3), e daí suscetível a acomodar o maior número de moléculas e maiores.
É muito mais difícil estabelecer testes in vitro correspondendo a mecanismos indiretos (Fig. 1B, C e D) por poderem ser muito diversos.
6. Como os disruptores endócrinos diferem dos hormônios?
Os hormônios e seus receptores co-evoluíram para assegurar a especificidade própria do pareamento hormônio-receptor (hormone–receptor) em todas as gerações de espécies, em sua evolução e diversificação. Os ligantes naturais para receptores nucleares (nuclear receptors) não são hormônios polipeptídicos (polypeptide) ou proteicos e, portanto, não são diretamente codificados por genes. Também pode-ser observar que os hormônios que se ligam aos receptores nucleares estão muito bem conservados no processo evolutivo (estrógenos, progestágenos (progestagens), hormônios da tireoide, etc.). Assim, pode-se concluir que a evolução dos receptores nucleares foi restringida pela necessidade de reconhecer seu hormônio específico e também pela necessidade de não se ligar a outra molécula circulante. Pode-se supor que um animal com um receptor que permita sua estimulação por um ligante circulante errado não sobreviveria ou não seria capaz de se reproduzir (o que é o mesmo em termos de evolução).
O problema com a chegada de milhares de pequenas moléculas orgânicas industriais é que os receptores nucleares não foram selecionados durante o processo evolutivo a evitarem sua ligação de baixa afinidade. Portanto, um certo porcentual destas moléculas pode, mais ou menos, acomodar-se no local de ligação dos receptores (receptors binding) e promoverem a ativação ou inativação do receptor; isto é, estas moléculas agem como disruptores endócrinos.
Ainda além, sistemas de conjugação e degradação também foram criados durante a evolução para limitarem a meia-vida dos hormônios, enquanto as moléculas sintéticas podem permanecer inalteradas e, potencialmente, acumular-se nos organismos por tempo indeterminado.
7. Perigo versus risco da atividade de disfunção endócrina dos agrotóxicos
Como para todas as outras formas de toxicidade, é importante considerar o perigo potencial de todas as moléculas suspeitas o mais minuciosamente possível, a fim de avaliar o risco tanto para as populações humana como da vida selvagem. Nesta perspectiva, é importante considerar: (1) a exposição das populações ao produto químico em estudo; (2) as respostas à dose e seus efeitos; e, (3) o efeito coquetel.
No caso dos agrotóxicos, está claro que a exposição profissional [28] é consideravelmente maior que a exposição da população em geral, mas os profissionais podem tomar medidas apropriadas, se corretamente informados, enquanto o público não deve ser exposto a níveis prejudiciais de agrotóxico(s). Além do mais, os períodos pré-natal e pós-natal (prenatal and postnatal periods) do desenvolvimento até a puberdade são particularmente sensíveis, e em razão de seus efeitos persistentes com possíveis efeitos prejudiciais durante as etapas do desenvolvimento [29]. A exposição da população em geral a poluentes persistentes orgânicos (persistent organic pollutants), incluindo os agrotóxicos, pode ser seguida pela detecção de sua presença em fluidos (body fluids) ou tecidos corporais. Face à extrema sensibilidade da maioria dos ensaios modernos, é necessário considerar, não apenas a presença destas moléculas, mas sua real concentração.
Como em todas as outras formas de toxicidade, a potência de possíveis disruptores endócrinos é uma informação importante a ser considerada e o risco geralmente depende tanto da exposição como de sua potência.
Respostas a doses não monotônicas são clamadas como uma marca registrada dos efeitos dos disruptores endócrinos. A observação, em alguns experimentos, de curvas dose-resposta em forma de U, nas quais doses baixas de produtos químicos exibem efeito superior a doses médias, e efeito comparável com doses elevadas (high doses) não pode ser atribuído às propriedades intrínsecas dos disruptores endócrinos. De fato, isso é mais devido à complexidade das regulações endócrinas em animais e depende do ponto final escolhido para o estudo do(s) efeito(s). Os EDCs exibem baixa afinidade e baixa especificidade em relação às suas proteínas alvo. Na verdade, eles geralmente se ligam a uma ou várias proteínas (receptores, proteínas de ligação (binding proteins), enzimas conjugadoras, etc.) suscetíveis de afetar o sistema endócrino (endocrine system) dos animais. Seus efeitos positivos e negativos em diferentes locais podem levar a respostas não monotônicas, possivelmente diferentes dependendo do ponto final escolhido. Além disso, a opinião de que é propriedade dos EDCs exibirem atividade mais elevada em doses mais baixas do que em doses mais altas, pode levar ao pensamento simplista e errôneo de que seria melhor sempre ter um certo nível de EDCs no ambiente para evitar efeitos de baixa dose!
É claro que o número de moléculas potencialmente tóxicas no ambiente conduz a se levar em consideração os possíveis efeitos sinérgicos aditivos ou piores dos EDCs. Devido à complexidade das regulações endócrinas, tais efeitos exigiriam o estudo dos EDCs dois a dois, ou mais. Isto é, claramente, uma tarefa impossível, e moléculas representativas com mecanismos dados devem ser estudadas para efeitos aditivos, sinérgicos ou neutralizantes com moléculas representativas de outros grupos para se detectar os efeitos de coqueteis mais prováveis.
8. Conclusão e perspectivas
A disfunção endócrina é uma forma de toxicidade leve, porém insidiosa, sendo por isso, muitas vezes, difícil provar ou rejeitar seu envolvimento. A complexidade das regulações endócrinas nos vertebrados (vertebrates), juntamente com o alto número de novas moléculas sintéticas, incluindo os agrotóxicos, tornam a tarefa de determinar o risco desta disfunção de cada molécula enorme e, muitas vezes, contraditória.
Por estas razões, uma classificação de moléculas em estudo por mecanismo(s) de ação sobre regulação endócrina seria útil para reduzir o número de ensaios necessários para validar a disfunção endócrina e também para levar em consideração o potencial aditivo [30], [31], os efeitos de coquetel, sinérgicos ou contrários [31], [32].
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© 2017 Académie des sciences. Published by Elsevier Masson SAS.
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Tradução livre de Luiz Jacques Saldanha, fevereiro de 2020.