Tradições: Ailton Krenak, o filósofo da terra

Imagem: Mavi Morais (@moraismavi)/Elástica.

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Piero Detoni, doutor em História Social pela USP

26/04/2024

[NOTA DO WEBSITE: Graças ao autor, podemos ver que essa pecha arrogante dos supremacistas brancos eurocêntricos de que existe uma hegemonia humana que só pode ser gerada pela civilização eurocentrada, é um grande equívoco quando se aprofunda nos conceitos emitidos, de forma direta, simples e sem rodeios semânticos, pelo nosso honrado ‘imortal’ Ailton Krenak. Desmistifica essa pretensiosa pseudo intelectualidade caricata dos ‘patriotas brasileiros’ de que ‘índio’ é um sub-humano. As Forças Armadas, seguindo esse preceito, assaltaram, a parte mais íntegra e diversa de nosso País, nas décadas de 60 e que reverberam até os dias de hoje com o chamado ‘bolsonarismo’, através do execrável agronegócio. Uma imensa parte da Nação ainda não tinha sido conspurcada pela ideiologia que ainda hoje nos ensina de que existiria uma civilização maior e mais competente do que as outras. Ou seja, a europeia, e por isso estaria acima da vulgaridade dos habitantes da Terra que não fossem os humanos. E a separatividade de todas as outras vidas que compõem o Planeta, era e é a essência de sua convivência com tudo no mundo. E Ailton, aqui colocado num estudo comparativo com Heidegger, pensador alemão que viveu até recentemente, por exemplo, demonstra a importância de acolhermos como uma abertura para nosso futuro a percepção de que somos Seres Coletivos que poderemos viver em paz e harmonia entre todos, humanos ou não. Essa transformação de nossa distorcida visão de mundo eurocêntrica pode acontecer se acolhermos nossos contemporâneos e compatriotas dos de todas as Américas].

I. Eduardo Viveiros de Castro, no posfácio de Ideias para adiar o fim do mundo, do intelectual e ativista indígena Ailton Krenak, contextualiza as/os leitoras/es do livro que se trata, assim como faz Davi Kopenawa e Daniel Munduruku, de uma reflexão em busca da história da descoberta do Brasil pelos índios. Quer dizer, uma contra-história e, também, uma contra-antropologia atravessa o ensejo de Krenak. Seu objeto é a desnaturalização da história única da humanidade, aquela mesma da cultura dominante do Estado-nação moderno que se voltou belicosamente contra as populações indígenas. Krenak é propositor, segundo Viveiros de Castro, de perguntas inquietante: somos uma humanidade? Uma humanidade única e não diversa? Uma humanidade e não uma rede “inextrincável” e “interdependente” de humanos e não humanos? Quem seria esse “nós” no questionamento krenakiano? “Nós” relativo a quem? Ao quê? Uma pergunta sobre identidade? Sobre o quem somos? Estamos ante, pois, de questionamentos existenciais, em que esse “nós” deixa de se portar unívoco e unidimensional, voltando-se para um nós pluralista, móvel, criativo e variável – diferencial. Para os Krenak isso incluiria a terra, as pedras, as montanhas, os rios, os seres em geral. Esses são alguns dos questionamentos, ou ideias propositivas, para se lançar, então, o adiamento do fim do mundo.

Talvez tenhamos perdido uma percepção um tanto quanto elementar em termos de existência humana: nos esquecemos que coabitamos o mundo, que o compartilhamos com outras pessoas, sendo ele, pois, a nossa grande morada. Esse questionamento, contudo, não passou desapercebido na história da filosofia ocidental, dado que já tratado por Martin Heidegger. Também ele se ocupou de refletir sobre os modos (im)possíveis de sermos e de estarmos na terra, logo, coabitando-a. O habitar encontra-se, de uma maneira ou de outra, implícito em todas as dimensões da existência humana, ao ponto desse gesto se confundir com o próprio viver. O modo como vivemos decorre de uma extensão, ou de uma conservação, do nosso repertório de crenças, de valores e de intenções que, ao verterem-se enquanto escolhas, se concretizam no habitar. Habitar incorre, nesse sentido, na própria existência, na própria maneira como decidimos ser. Como podemos, enfim, coabitar o mundo? A questão colocada pelo filósofo alemão, conhecida através da sua influente conferência Construir, habitar, pensar, de 1951, nos servirá, então, como uma espécie de horizonte dialogal para refletirmos os alcances do pensamento do indígena, ambientalista, filósofo e escritor brasileiro Ailton Alves de Oliveira Krenak.

II. As relações entre construir e habitar se imbricam na explicação de Heidegger. São dialogais e retroalimentares. Isso porque o objetivo da construção é o habitar, contudo, é na própria ação de habitar que o construir encontra o seu sentido. Assim, o desempenho de uma atividade implica habitar. A reflexão de Heidegger se inicia com a própria pergunta: “O que é o habitar”? Não se trata da simples relação com o morar, com o plano utilitário das edificações. Entendendo a linguagem não apenas como veículo, mas como força criadora do mundo, recorre ao emprego do termo no antigo alto-alemão para situar o significado de construir: baun. A descoberta do filósofo é de que, em sua origem, construir significava, justamente, habitar. A vocábulo baun não se referia, pois, apenas a ação de habitar, mas englobava o permanecer, o morar, que indicaria um aceno de “(…) como devemos pensar o habitar que aí se nomeia” (HEIDEGGER, 2012, p. 126). De todo modo, não se encerra, aí, a definição do habitar. Isso porque baun, o construir, derivou do verbo bauen, que, também, guarda relação direta com aquele, mesmo que, naquela atualidade, tenha deixado de implicar nessa significação. Contudo, Heidegger recobra o seu esteio original: “que amplitude alcança o vigor essencial do habitar” (HEIDEGGER, 2012, p. 127)? É interessante o movimento percorrido por ele, dado que essa percepção o leva a entender que bauen seria a mesma expressão alemã para bin, que não seria outra coisa que o verbo ser conjugado em eu sou e tu és. Se ser é habitar, logo, eu habito e tu habitas. Havendo, dessa maneira, a abertura para a coabitação. Essa disposição resultaria, nessa direção, nos modos de existência que se dão através do habitar, o que implicaria, no limite, dizer que o “(…) o homem é a medida que habita (HEIDEGGER, 2012, p. 127).

Byung-Chul Han disse que Heidegger teria sido o último defensor da ordem terrena (2018). Porém, ele não foi o último. O filósofo alemão encontra contemporâneos na atualidade, sendo um deles, além do próprio Han, o indígena Ailton Krenak. Heidegger, que via na linguagem modos de instituição de mundos, se ocupou com esmero ao estudo da linguagem. Por isso se faz necessário explicar o significado de Krenak. Krenak seriam dois termos, adverte Ailton: kre, uma partícula que significa cabeça, e o complemento nak, que seria justamente terra. Vejamos o alcance da filosofia da terra do escritor indígena, que alcança o diálogo proposto por Heidegger: “Krenak é a herança que recebemos dos nossos antepassados, das nossas memórias de origem, que nos identifica como ‘cabeça da terra’, como uma humanidade que não consegue se conceber sem essa conexão, sem essa profunda comunhão com a terra” (KRENAK, 2012, p. 48). Ailton Krenak deixa em evidência em seus escritos que a terra, conforme concebida por seu povo, não seria, pois, um mero sítio, como se designa hoje em dia, avançando para aquilo que o filósofo alemão também se preocupava: a terra como esse lugar que todos nós compartilhamos. Heidegger e Krenak, enquanto contemporâneos, estão preocupados com os modos de “desraigamento” no mundo terreno, do próprio planeta enquanto moradia.

Podemos expandir um pouco mais a reflexão heideggeriana, colocando-a em diálogo com a filosofia krenakiana, se recobrarmos que há dois significados subjacentes e complementares em bauen (construir): proteger/cultivar e edificar. O filósofo da floresta se empenha na recuperação desses significados originais de habitar, o que o leva ao seu entendimento de que bauen é permanecer, bem como um de-morar-se. Além disso, e recobrando o gótico wunian, se poderia especificar ainda mais o âmbito dessa experiência, quer dizer, ser e permanecer em paz. Paz, ainda explorando o potencial da linguagem conformadora do mundo, seria o mesmo que “livre”, que de acordo com a sua a origem denotaria resguardado, que, no limite, seria a devolução “(…) de maneira própria, alguma coisa ao abrigo de sua essência” (HEIDEGGER, 2012, p. 129). Resguardar mantém relação com libertar-se: “(…) libertar para a paz de um abrigo” (HEIDEGGER, 2012, p. 129). A discussões propostas pela filosofia de Martin Heidegger nos leva, potencializada a partir das reflexões do pensador indígena Ailton Krenak, que o traço fundamental do coabitar seria, não outro, o estado de permanecer pacificado envolto na liberdade de um pertencimento, resguardando as coisas em sua autenticidade possível.

II. A evidência de que viveríamos o antropoceno, para Ailton Krenak, seria motivo suficiente para a ação, para um reencontro com o mundo, para um despertar para a coabitação pacífica da terra, para a sua preservação e de seus viventes. Em sua opinião, o antropoceno, considerado um era geológica caracterizada pelos impactos da exploração humana sobre o planeta, deveria soar como um alarme nas nossas cabeças. A grande morada é a preocupação dos dois filósofos, pois como explica Ailton Krenak: o planeta terra, de onde se exaure as fontes de vida, é o que possibilita ao seu povo o sentimento de estar em casa, de que havia “uma casa comum que podia ser cuidada por todos” (KRENAK, 2020, p. 47). Contudo, a escritor indígena pensa que essa disposição diante do mundo, que já vinha sendo assolada pela noção eurocêntrica de humanidade, teria entrado num estado alarmantemente expansivo devido à exclusão de toda organização de vida que estivesse fora dos domínios do capitalismo consumista. Aqui entra, então, a sua filosofia da terra, ou do enraizamento, que se lança ao perspectivismo e contrário à unidimensionalidade do mundo. O povo Krenak, esclarece Ailton, foram animados justamente pelo coabitar o mundo de maneira diversa, pluralista, sendo também partes constitutivas do próprio planeta, não percebido, pois, como objeto a ser explorado, “(…) em que havia corresponsabilidade com os lugares onde vivemos e o respeito pelo direito à vida dos seres, e não só dessa abstração que nos permitimos construir como uma humanidade, que exclui todas as outras e todos os outros seres” (KRENAK, 2020, p. 27).

Os Krenak pertencem, assim sendo, à ordem da terra, estando, então, em movimento interacional, um estar submetido em modo atento e aberto em escuta ao nomos da terra. Nomos é um conceito que deriva da mitologia grega, podendo ser interessante junto às reflexões de Ailton Krenak. Falar em nomos da terra representaria o daemon das leis, estatutos e normas. Krenak e Heidegger se movem, assim sendo, para a sua ordem mais elementar, isto é, a existência na terra. Também o filósofo alemão, em seu texto Construir, habitar, pensar, se move para a factualidade e para o pluralismo terreno-imanentista, percebendo a vida como uma quadratura terra e céu, mortal e divino. Os dois autores sabem que o ser humano é mortal, não agente. A responsabilidade diante do habitar reside nisto: poderia não haver novas natalidades em muitos sentidos. Também ouvem os seus Deuses, que mais do que entidades apartadas do mundo – nele se encrusta e enuncia sentidos passíveis de escuta. Naquele lugar, tanto na floresta negra quanto ao longo do Rio Doce/MG, ele tem o seu lugar num recanto encantado e com sentidos, sendo a condição para isso o saber habitar, o que implicaria o saber ser com outrem no mundo.

A terra, de acordo com Ailton Krenak, deve ser entendida como um organismo vivo, sendo ela, não apenas para seu povo, considerada uma mãe e provedora, mas em um nível que vai além da substância ou uma provedora de recursos, mas “(…) também na dimensão transcendente que dá sentido à nossa existência” (KRENAK, 2020, p. 43). Ou seja, o mundo terreno, para os Krenak, oferece a oportunidade de um habitar que implica mais do que um conhecimento ativo sobre o mundo, mas dele recebendo aprendizados, o que os tornam intérpretes da natureza, posto que ela lhe oferece sentidos e modos pluralistas de ser. O filósofo indígena, contudo, percebe o progressivo esquecimento da terra e do habitar, onde se verificaria todo um afastamento dos lugares de origem. Obviamente que não se trata, aqui, de alguma explicação que poderia levar ao entendimento da atualização de uma disputa entre modos de vida sedentário e nômade. O que Ailton Krenak busca refletir é sobre a perda dos sentidos de deslocamento na atualidade tecnológica, questão para ele importante por afastar as pessoas do mundo: “Se é certo que o desenvolvimento de tecnologias eficazes nos permite viajar de um lugar para o outro, que as comodidades tornam fácil a nossa movimentação pelo planeta, também é certo que essas facilidades são acompanhadas por uma perda de sentido dos nossos deslocamentos” (KRENAK, 2020, p. 43). Aqui entramos no âmago do apontamento de Ailton Krenak sobre a alienação do mundo, sobre o desenraizamento descomprometido com relação à existência terrena, do esquecimento da facticidade do ser no mundo, que se opera no habitar e na duração. A sensação percebida pelo filósofo indígena é de que as pessoas, na atualidade, estariam vivendo, paralelamente, em “um cosmos vazio de sentido” e “desresponsabilizados de uma que possa ser compartilhada, mas sentimos o peso dessa escolha sobre as nossas vidas” (KRENAK, 2020, p. 44).

Krenak acredita, em todo caso, que estaríamos vivendo em uma espécie de situação de cegueira coletiva, isto é, impossibilitados de nos situarmos junto à facticidade terrena, que invoca sentidos pluralistas de existência e, de modo correlato, imprime gravitação existencial. Essa cegueira avançaria pelo âmbito individual e social, posto que de a unidimensionalidade da noção de humanidade eurocêntrica estaria em risco não somente o habitar, mas, sobretudo, o coabitar – condição para a “cooperação dos povos, não para salvar os outros, mas salvar a nós mesmos” (KRENAK, 2020, p. 44). Para tanto a necessidade de um despertar diante da perda de sentidos, da perda dos sentidos de coabitação do mundo, não sendo este um problema apenas dos povos originários. A perda da possibilidade de imprimir sentidos alternativos e pluralistas ao mundo, e com isso invocar novas possibilidades de imaginação social e política, que pelo encontro a partir da coabitação e da cooperação instituem acontecimento geradores de novidade e de diferença, deveria se voltar para o recontro com a ordem terrena. Esse gesto se daria, de qualquer maneira, em função do caráter totalizante da modernidade eurocêntrica e da dinâmica do capitalismo, elementos que conjugados estão levando à “(…) iminência de a terra não suportar nossa demanda” (KRENAK, 2020, p. 45). Ailton Krenak é sabedor, de toda maneira, da unidimensionalidade artificial elaborada pelo capitalismo, especialmente a partir da noção de mercadoria, que por meio das suas fantasmagorias fetichistas impedem a visão sobre a terra, ou ambiente planetário, para além da reificação.

III. A vida humana e terrena, agora não somente entre os povos originários, enfrentaria uma tragédia que atingiria a todos nós. O pensador indígena percebe apenas movimentos paliativos, muito em função de decisões políticas regionalizadas e localizadas, que abririam, em sua perspectiva, algum “espaços de segurança temporária” para as comunidades em geral. Mas ainda avançando sobre a reificação do mundo pelo capitalismo hegemônico, que seria algo bastante diverso da observância da sua tangencialidade, o que presenciamos, desenvolve Ailton Krenak, é o “esvaziamento sentido do compartilhamento dos espaços”, quer dizer, os próprios sentidos de coabitar o mundo. O que se vê, na atualidade, são medidas paliativas ou ações orientadas pela razão cínica neoliberal, que “(…) depende cada vez mais da exaustão das florestas, dos rios, das montanhas, nos colocando num dilema em que parece que a única possibilidade para que as comunidades humanas continuem a existir é à custa da exaustão de todas as outras partes da vida” (KRENAK, 2020, p. 46). O que se deve ter em mente é que o voltar-se para terra gera, correlatamente, gravitação e pluralismo junto aos modos de existência, dado que na ordem planetária há o acidental, o desviante, o sinuoso e as multiplicidades – disso a possibilidade de oferecer sentidos ao mundo, pois passamos a ter o entendimento em modo vetorizado ante à existência em si, sem o movimento sujeito/objeto, fazendo do habitar uma forma de afirmação da vida pela possibilidade da saída do tempo único, o qual o capitalismo presentista faz parecer como modo padrão, ou absoluto, de existir.

Além disso, a suspensão dos modos reificados de habitação do mundo, amparados pela lógica do consumo da vida planetária, dariam condições de possibilidade para a produção de espaços e para a coabitação. Ora, o espaço único, a unidimensionalidade proposta pelo capitalismo, não oferecia outra coisa, ainda mais em seu nível neoliberal, do que a competição por espaços amparados na lógica na coabitação e da partilha, mas da exploração e da individualização não (inter)colaboracionista. Ora, a subjetividade neoliberal não abarca o dissenso e o congregar – não reparte e não partilha. Está focada na unidimensionalidade, na medida em que, em seu modo de conceber o mundo, só há espaço para o seu Eu, abrindo, em último modo, todo um processo de expulsão do outro. Esse processo é assimilado por Krenak através dos projetos de exaustão da natureza.

IV. Essa discussão pode encaminhar, com forma de potencializarmos a reflexão de Ailton Krenak, a partir das discussões realizadas entre Judith Butler (2015, p. 75-77) e Hannah Arendt. De acordo com a filósofa estadunidense, quando Arendt refletiu sobre a pólis grega e o fórum romano ela estava pensando para além do âmbito normativo e físico das cidade-estado, mas para as próprias relações instituídas entre as pessoas, o que abriria, naquele espaço de aparição, a comunicação e a ação entre elas. A leitura de Butler, então, caminha para a compreensão dos espaços partilhados entre as pessoas. Esses espaços mediados pelo entre abrem margem para a heterotopia ou para diversidade. Assim, os horizontes públicos dependem, em sua acepção, de dinâmicas que estão para além da disposição infraestrutural e objetiva, apontando para a substância das organizações políticas, que se deseja reguladas pela pluralidade. Os espaços públicos, e aqui levamos em conta o mais primordial de todos, a própria terra, para nos voltarmos ao diálogo com Krenak, são estabelecidos se nos movimentarmos para além da superfície institucional, voltando-se para as fronteiras estabelecidas entre os corpos. Há um movimento disciplinarização dos espaços, em que nem todos os corpos que habitam, ou querem habitar um espaço, são incluídos. Essa é a questão colocada por Butler: como instituir a pluralidade ante às fronteiras? Quem faria parte desse horizonte comum pluralizado? Parece mesmo que Krenak está em um diálogo virtual com a filósofa estadunidense, haja vista também o seu intuito de transformar esses apontamentos como ação política. Ambos, cada qual com seus horizontes mais particulares de preocupações, estão em busca da coabitação e a da produção de espaços interrelacionais, dialógicos e de convívio.

A esse respeito, Ailton Krenak é bastante contundente, flexionando toda uma ontologia do perspectivismo ameríndio: “Definitivamente não somos iguais, e isso é maravilhoso saber que cada um de nós que está aqui é diferente do outro, como constelações” (KRENAK, 2020, p. 33). Agora é Krenak quem potencializa as reflexões de Judith Butler, pois para ele o fato de coabitarmos um espaço possível não implica que somos iguais, mas, e aqui a força do seu pensamento: “(…) significa exatamente que somos capazes de atrair uns aos outros pelas nossas diferenças, que deveriam guiar o nosso roteiro de vida” (KRENAK, 2020, p. 33). Encontra-se, em sua perspectiva, um olhar para um coabitar que percebe a humanidade, e os modos de existir, de maneira pluralista – não através do protocolo da humanidade enquanto singular-coletivo, que, segundo aponta, retiraria a nossa alegria de estar vivos (KRENAK, 2020, p. 33).

V. Ailton Krenak explica a dimensão espacial por onde os povos Krenak habitam o Brasil. Do nordeste até o leste de Minas Gerais, onde encontra-se o Rio Doce, bem como na fronteira do Brasil com o Peru e a Bolívia, no Alto do Rio Negro. O pensador ameríndio deixa em evidência os sentidos efetivos da luta dos Krenak diante dos tensos contextos políticos nacionais que envolvem os direitos dos povos originais de habitarem e existirem em suas terras. Krenak faz, então, um retrospectivo que dos modos como os povos originários habitam, pensam e existem em suas terras e como isso foi, historicamente, pervertido através da história colonial-expansionista-administrativa. Passados séculos de colonialismo, e superando as expectativas de que as populações indígenas não sobreviveriam aos movimentos de ocupação dos seus territórios, com previsões de que já não se manteriam as originárias formas de organização existencial, vemos os Krenak permanecendo em luta: “Isso porque a máquina estatal atua para desfazer as formas de organização das nossas sociedades, buscando uma integração entre essas populações e o conjunto da sociedade brasileira” (KRENAK, 2020, p. 39). Os sentidos do habitar krenakianos são assim, postos em evidência, sendo a terra considerada, por eles, não apenas como um reduto onde a natureza é prospera e oferece alimentos e moradia: ali está onde sobrevive os modos que cada uma dessas sociedades tem de se manter no tempo.

A interação com o planeta, com o mundo terreno, está muito distante de uma separação sujeito e objeto, mas volta-se para imanência radical, por onde se faz possível percebê-lo em modo de agência e, então, assimilar os seus sentidos, longe da razão instrumental ocidental. Por exemplo, o rio Doce, para os Krenak, que sofrera ecocídio através do rompimento da Barragem do Fundão em Mariana/MG, que liberou 55 milhões de metros cúbicos de lama que armazenava, é considerado por essas pessoas como Watu, ou seja, ele é tido como o seu avô. Em seguida é explicada a tensão existente entre fronteiras e coabitação, em que a perspectiva krenakiana do habitar-existir é abordada: “Ele não é algo de que alguém possa apropriar; é uma parte da nossa construção como coletivo que habita um lugar específico, onde fomos gradualmente confinados pelo governo para podermos viver e reproduzir as nossas formas de organização (com toda essa pressão externa” (KRENAK, 2020, p. 40). De qualquer maneira, o que estaria em curso na história brasileira não seria outra coisa do que a não coabitação, ou dialogando abertamente com Krenak, a incapacidade de se acolher os seus habitantes originais.

O projeto colonialista está em curso, desdobrando-se pelas malhas do capitalismo neoliberal ao invisibilizar e impedir os povos originários do seu existir por não reificarem o mundo natural e planetário, mas o habitando-o e existindo com ele – por não se ampararem em sua lógica unidimensional e totalizadora, derivada duma lógica de mundo individualizada e não aberta à coabitação, posto que se move pela subjetividade concorrencial e libertarista. Esta é a tônica da história brasileira majoritária, de acordo com ele, através das suas seguidas atualizações: “sem recorrendo a práticas desumanas para promover mudanças em formas de vida que essas populações conseguiram manter por muito tempo, mesmo sob o ataque feroz das forças coloniais, que até hoje sobrevivem na mentalidade coletiva de muitos brasileiros” (KRENAK, 2020, 41). O ecocídio enfrentando pelo o avó dos Krenak, o rio Watu, que fora encoberto pela lama tóxica da Barragem do Fundão, apresenta-se como uma imagem síntese do perspectivismo ameríndio, que invoca uma ontologia do enraizamento relacional com o mundo: “Faz um ano e meio que esse crime – que não pode ser chamado de acidente – atingiu as nossas vidas de maneira radical, nos colocando na real condição de um mundo que acabou” (KRENAK, 2020, p. 42).

Ailton Krenak recobra, em um gesto decolonial, os horizontes modernos do significado de humanidade, percebida como história única ou singular coletivo. A colonização realizada pelos brancos europeus se amparou, em sua concepção, “na premissa de que havia uma humanidade esclarecida que precisava ir ao encontro da humanidade obscurecida, trazendo-a para essa luz incrível” (KRENAK, 2020, p. 11). É, em última medida, o processo civilizador, que implicou dois movimentos simultâneos: a implementação de uma lógica de como habitar a terra e, correlatamente, a instauração de modos de verdade, informados por uma dimensão de sujeito que perscruta o objetivo, algo que teria orientado as escolhas realizadas em diferentes momentos históricos. A questão para Krenak é esta: haveria uma humanidade no singular? Torna Krenak a mover um questionamento propositivo: “Por que insistimos tanto e durante tanto tempo em participar desse clube, que na maioria das vezes só limita a nossa capacidade de invenção, criação, existência e liberdade” (KRENAK, 2020, p. 13)?

A humanidade eurocentrada seria, para ele, uma espécie da liquidificador. Arrisca a dizer que 70% porcento das pessoas, hoje, estariam alienadas dos modos de ser em razão dos processos modernizadores, que retirou as pessoas do campo e das florestas para lançá-las em favelas e periferias, tornando-se mão de obra nas cidades. Seria pessoas desenraizadas, privadas dos seus modos de ser e de habitar o mundo. Um processo, dito de outra maneira, de esquecimento comandado: “Se as pessoas não tiverem vínculos profundos com sua memória ancestral, com as referências que dão sustentação a uma identidade, vão ficar loucas neste mundo do maluco que compartilhamos” (KRENAK, 2020, p. 14). O que Krenak aponta é para o esquecimento do planeta, derivado do singular coletivo humanidade e atualizado pelo “mito da sustentabilidade”, o que levou a alienação do organismo que fazemos parte, ou seja, a terra: “passamos a pensar que ele é uma coisa e nós, outra: a terra e a humanidade” (KRENAK, 2020, p. 16). Daí a sua ontologia do enraizamento, ou perspectivismo ameríndio, que se percebe tudo como natureza. Ele é taxativo: “Tudo em que eu consigo pensar é natureza” (KRENAK, 2020, p. 17).

Os povos originários, argumenta Krenak, estão enredados ao mundo – são parte integrante e constitutiva do mesmo. A terra e os seres também vivem. Montanhas são casais, tem família, trocam afetos, fazem trocas. Essas montanhas, como em regiões andinas, são reverenciadas pelas pessoas, dado que são sensíveis a sua alteridade. Mais um questionamento de Ailton Krenak: por qual motivo essas narrativas não entusiasmam mais, sendo esquecidas e apagadas? Por qual motivo elas são interditadas em favor de uma narrativa global, universalizante, unidimensional, superficial, única? É o abuso da razão, retomando a sua expressão. O conceito moderno de história, a história única, o eurocentrismo racionalista alienariam as pessoas de tudo, inclusive, as medicalizando. Há a crítica ao conceito de progresso, modulação temporal desta forma de história aludida, que em nome do dito bem-estar da humanidade imprime todo um movimento de desenraizamento e de deslocamento das pessoas do organismo terra. Esse movimento expande-se, ainda hoje, para as “bordas do planeta” – margens de rios, beiras de oceanos; na África, nas Ásia, na América Latina. São caiçaras, indígenas, quilombolas, aborígenes, em suma, a “sub-humanidade”. A humanidade moderna expulsa o outro, considerado sub-humano. Justamente aqueles que não esqueceram a terra, que estão enraizados, que convivem com as suas manifestações, que lhe emprestam dignidade para a sua alteridade.

Uma organicidade que incomoda a dita humanidade, que cinde seus filhos de sua mãe. Que expulsa aqueles que querem “comer terra, mamar terra, dormir deitados sobre a terra, envoltos na terra” (KRENAK, 2020, p. 22). É a crítica radical ao esquecimento do mundo. ao seu descolamento da imanência em favor de uma abstração desfactizada. Um movimento que interdita a diversidade, nega a pluralidade de modos de coabitação e de existência – de modos de ser. No horizonte da humanidade eurocentrada, da história única, a qual deve-se ser crítico invocando a diferença, tornou-se majoritário um modo de existir que, amparado no desgarramento da terra a partir da lógica sujeito e objeto, que se move pelo consumo e interdita a cidadania. Deriva-se desse movimento, na perspectiva krenakiana, toda uma lógica de expulsão do outro e de veto às alteridades, disposição que acarreta, no limite, um estar no mundo alienante, desprovido de crítica e consciência de si, dos outros e do todo. “Essa ideia dispensa a experiência de viver numa terra cheia de sentido, numa plataforma para diferentes cosmovisões” (KRENAK, 2020, p. 25).

VI. Dialogando com Davi Kopenawa, e abrindo-se para a possibilidade de adiar o fim do mundo, Krenak move-se à contrapelo em busca dos sentidos ancestrais, dos sentidos das cosmovisões ameríndias, que seria um modo de coabitar o mundo. Tudo tem sentido na imanência radical krenakiana, o que lhe abre para imaginações pluralistas de mundo. “As pessoas podem viver com o espírito da floresta, viver com a floresta, estar na floresta” (KRENAK, 2020, p. 25). Em última instância, deseja-se recordar o mundo ante uma situação produtora de ausências. Esse retorno à imanência terrestre oferecia modos de viver em sociedade, num sentido de experiência e de tangibilidade com a vida. Na história única, no singular coletivo moderno, na humanidade singularizada, na identidade mesma essencializada, há a intolerância em “relação a quem ainda é capaz de experimentar o prazer de estar vivo, de dançar, de cantar” (KRENAK, 2020, p. 26). A “humanidade zumbi” expulsa os mundos de sentidos pluralistas, em que se invoca a “fruição de vida”. Chega-se ao ponto chave da reflexão: “Então, prega-se o fim do mundo como uma possibilidade de fazer a gente desistir dos nossos próprios sonhos” (KRENAK, 2020, p. 27). A resposta de Krenak a esse estado de coisas é o retorno aos modos de narração da experiência, de poder “contar mais história”. Se pudermos fazer isso, estaremos adiando o fim do mundo.A narração, os modos de imprimir sentido ao mundo para Ailton Krenak, amparando-se nas cosmovisões de sentido ameríndias, demostram a importância da facticidade concebida como experiência vertida narrativamente.

Narrações enredadas em experiência como modo de existir. Questiona, prepositivamente, Krenak: como os povos originários lidaram com a colonização, com o fim dos seus mundos? Como superaram esse pesadelo ainda desafiando a hegemonia da humanidade singularizada e excludente? Ele voltou-se às narrativas experienciais antigas, ativando um recordar de resistência pela criatividade, pela poesia, pela disposição de enfrentamento. Cosmovisões cheias de sentido e de experiência foram lidas, imprimindo um imaginar plural. “Muitas dessas pessoas não são indivíduos, mas ‘pessoas coletivas’, células que conseguem transmitir através do tempo suas visões de mundo” (KRENAK, 2020, p. 28). Krenak leu, recordou, aprendeu, institui sentidos, entendeu o virtual dos antepassados para resistir no presente – um alimento de “resistência continuada desses povos, que guardam a memória profunda da terra, aquilo que Eduardo Galeano chamou de Memória do fogo” (KRENAK, 2020, p. 29). A narração lhe parece importante ante uma sensação de queda. Ele invoca a capacidade crítica, criativa e pluralista ancestral para que essa queda seja impedida por “paraquedas coloridos”. Contar histórias, narrar histórias, aprender com histórias. “Há centenas de narrativas de povos que estão vivos, contam histórias, cantam, viajam, conversam e nos ensinam mais do que aprendemos nessa humanidade” (KRENAK, 2020, p. 30).


Bibliografia

BUTLER, Judith. Notes Toward a Performative Theory of Assembly. London: Harvard University Press, 2015.

CASTRO, Eduardo Viveiros de. Posfácio – Perguntas inquietantes. In: KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.

HAN, Byung-Chul. No enxame: perspectivas sobre o digital. Petrópolis: Vozes, 2018.

HEIDEGGER, Martin. Construir, habitar, pensar. In: HEIDEGGER, Martin. Ensaios e conferências. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2012.

KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.