Stiglitz: a oportunidade do Green New Deal

Prêmio Nobel de e professor da Universidade de Columbia/USA.

Alexandria Ocasio-Cortez, deputada democrata, apresenta a resolução de seu Green New Deal no dia 7 de fevereiro de 2019, em coletiva nacional em frente ao Capitólio, na presença do senador Ed Markei e outros democratas

Por Joseph Stiglitz, no Project Syndicate

Tradução de Carta Maior

Publicado 02/10/2020

A crise abre uma brecha ao Comum. Governos têm interferido na economia em uma escala sem precedentes. Por que não direcioná-la para substituição dos combustíveis fósseis e geração de emprego focada em serviços de bens essenciais

Por um período no início da pandemia de covid-19, existiam grandes expectativas de uma recuperação econômica em V (nota deste website.: maneira como os economistas atribuem a uma recuperação em forma de V ser caracterizada por se dar de forma rápida e sustentada nas medidas de desempenho econômico após um declínio econômico acentuado).

Depois de um lockdown breve mas radical para conter a disseminação do vírus, a economia reabriria facilmente, e com cuidado e dinheiro suficientes, tudo voltaria ao que era no início do ano.

Isso era claramente uma fantasia. Meses depois do período inicial de lockdown, os EUA e muitos outros países ainda estavam alcançando novos picos de infecção e mortes por covid-19. E a pandemia expôs – e provavelmente exacerbou – problemas profundos que assolam a economia bem antes de a crise começar. Por exemplo, a economia dos EUA gerou desigualdades massivas não somente na renda e na riqueza, mas também na saúde e na assistência médica. E devido ao fato de essas disparidades perseguirem as pessoas de cor nos EUA, populações já marginalizadas ficaram ainda mais vulneráveis ao vírus.

Governos, enquanto isso, têm interferido em uma escala sem precedentes. Com níveis massivos de gastos públicos, os cidadãos têm todo direito de exigir que a economia pós-crise seja moldada de acordo com seus novos interesses, não com os dos “mercados” ou de acordo com quaisquer demandas capitalistas não visionárias.

Idealmente, uma “nova” economia seria bem mais verde do que a anterior. Os gastos e investimentos atuais facilitariam uma mudança ampla para longe de uma economia comandada pelos combustíveis fósseis que tem prevalecido nos últimos 200 anos. Setores especializados substituiriam a manufatura, o petróleo e o carvão. A crise seria abordada com políticas feitas para acelerar tendências positivas, como a queda dos custos de energia solar e eólica, enquanto reverte desenvolvimentos negativos, como a desigualdade crescente.

Um resultado como esse é possível. Gastos emergenciais recentes equiparam os legisladores com um pacote de instrumentos para remodelar a economia. Por exemplo, a assistência financeira estatal (seja uma concessão ou empréstimo) pode salvar vidas, e, por isso, deve ser alocada de maneira inteligente, visando sustentar esses setores que queremos ver emergir ainda mais fortes da crise. Infelizmente, nos EUA, enquanto as linhas aéreas receberam bilhões, setores especializados (incluindo universidades de pesquisas) não obtiveram a extensão do apoio financeiro que precisam. Isso sugere que a economia dos EUA está sendo empurrada na direção oposta de onde deveria estar indo.

Quando a assistência governamental é fornecida, precisa vir com condições elaboradas para conduzir a economia na direção certa. Quando os EUA resgataram suas companhias aéreas, poucos compromissos foram fixados. A França, ao contrário, exigiu que a Air France reduzisse suas emissões de dióxido de carbono e voos domésticos como condição do recebimento do auxílio governamental. A disparidade entre os dois países não deveria ser surpreendente. A liderança estadunidense atual não ofereceu visão para o futuro da economia. Quando a administração do presidente Donald Trump não está negando a crise diretamente, está agindo como se a economia fosse simplesmente recomeçar de onde parou.

Agora parece provável que a pandemia vai permanecer conosco tempo suficiente para nos dar tempo para pensar estrategicamente sobre como programas de recuperação podem ser elaborados para recuperar a saúde da economia e remodelá-la para o futuro. Antes da pandemia, sabíamos que a transição para uma economia neutra em carbono exigiria um esforço amplo da sociedade na escala do New Deal ou em nível de “mobilização de guerra”. Devido ao fato de que agora é claro que a própria recuperação exigirá investimentos massivos, é natural que combinemos esses imperativos em uma estratégia única.

A boa notícia é que investimentos verdes em energia renovável, infraestrutura sustentável, prédios com eficiência energética, e outros investimentos podem ser oportunos e flexíveis, o que é importante quando há tanta incerteza sobre o curso da pandemia. Investimentos verdes também tendem a demandar trabalho intenso, o que é ideal para reduzir o desemprego e subir os salários. E eles normalmente têm efeitos multiplicadores (entregando uma rentabilidade maior, em comparação com outras formas de gastos), o que importa quando tantos países estão lidando com déficits e dívidas.

A Nova Zelândia já está colocando essas ideias em ação, ao realocar trabalhadores do setor de hotelaria (que ficariam desempregados) para trabalhar em projetos de conservação em áreas de “turismo de natureza”. É provável que esse esquema compense bem no futuro. A Tropa Cívica de Conservação dos EUA, a Administração Works Progress, e outros programas do New Deal deixaram um legado cultural e físico que os estadunidenses ainda aproveitam quase 100 anos depois.

Ainda assim, implementar tais investimentos hoje exigirá inovação institucional, incluindo criar novos bancos “verdes” de desenvolvimento e expandir organizações existentes. Instituições de mercado frequentemente não possuem visão para perceber a inteligência de investimentos de longo prazo. Mas enquanto alguns bancos verdes existentes se provaram eficazes, outros não conseguiram. Precisaremos aprender com as lições recentes de sucesso e fracasso e nos adaptar de acordo.

Na nossa complexa economia, o investimento público é necessário, mas não é suficiente para conduzir uma recuperação verde. Também precisará haver incentivos que facilitem o investimento privado em setores verdes. Novamente, já existem múltiplas ferramentas para isso. Por exemplo, exigindo que grandes corporações, incluindo bancos, divulguem seus riscos climáticos, podemos empurrar o capital privado para longe dos investimentos marrons e em direção a projetos verdes.

Além disso, simplesmente promover pensamentos de longo prazo e desencorajar o curto prazo vai conduzir a economia para uma direção mais verde. Para isso, fiduciários terão que focar mais em riscos de longo prazo, e a governança corporativa deve ser reformada para dar a investidores de longo prazo mais voz nas decisões das empresas (por meio de incentivos concedidos a parceiros fiéis).

Finalmente, enquanto bancos verdes existentes e recém criados podem tornar disponíveis mais fundos de investimentos, regulações podem ser reforçadas para tornar a economia “mais verde”, por exemplo ao proibir energias à base de carvão e outras formas de energia suja. E é hora de começarmos a discutir um preço significativo para o carbono, o que também encorajaria o investimento verde.

Previsões do FMI e de outras organizações indicaram que seria um tanto difícil retornar ao pleno emprego tão rapidamente. Em muitos países, taxas de desemprego podem não voltar ao nível que estavam no final de 2019 até algum período em 2022. E esse é o cenário otimista: quanto mais a crise de covid-19 durar, mais profundas serão as cicatrizes econômicas.

Uma recuperação forte exigirá apoio governamental que não seja somente bem produzido, como também sustentável com o tempo. Uma situação desastrosa nos conduziu a uma rara oportunidade de perseguir os investimentos e reformas necessárias para um futuro mais prospero e sustentável. Não devemos desperdiçar.

Joseph E. Stiglitz
JOSEPH E. STIGLITZ, Escrevendo para PS desde 2001

Joseph E. Stiglitz, ganhador do Prêmio Nobel de economia e professor da Universidade de Columbia, é economista-chefe do Instituto Roosevelt e ex-vice-presidente sênior e economista-chefe do Banco Mundial. Seu livro mais recente é  People, Power and Profits: Progressive Capitalism for an Age of Discontent .