“Como criar a possibilidade de ouvir constantemente os povos indígenas num espaço como o Congresso? Se dependermos exclusivamente de uma disputa de votos em eleição direta, vai ficar difícil”, afirma o antropólogo.
http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/os-povos-indigenas-nao-sao-um-resquicio-do-passado-entrevista-com-spensy-pimentel/520128-os-povos-indigenas-nao-sao-um-resquicio-do-passado-entrevista-com-spensy-pimentel
Confira a entrevista.
Foto: www.pragmatismopolitico.com.br |
“A ida da ministra Gleisi Hoffman ao Congresso, na semana passada, anunciando a revisão da forma como são demarcadas as terras indígenas, assinala um agravamento da crise”, diz Spensy Pimentel à IHU On-Line, em entrevista concedida por e-mail. Para o antropólogo, transferir a responsabilidade do processo de demarcação das terras indígenas no Mato Grosso do Sul para a Embrapa não é uma solução. “Num momento como este, o que precisa ficar claro é que a Funai precisa ser, além de respaldada e apoiada, fortalecida. O que não pode ocorrer é que ela seja esvaziada. Não se trata de retirar poderes da Funai, trata-se de dar a ela condições de cumprir o papel que deveria cumprir e de colocar outros órgãos para ajudá-la”, assinala. E dispara: “Ainda que a Funai tivesse o orçamento e os recursos humanos para fazer o que tem que ser feito, ela precisaria de um respaldo político que está além do seu alcance. É preciso que a Presidência da República e o Ministério da Justiça assumam sua responsabilidade”.
Na avaliação de Pimentel, apesar de o Estado brasileiro, através da Comissão Nacional da Verdade, ter dado início a uma revisão da historiografia indígena, “no seu afã de promover o desenvolvimento, ainda há muita dificuldade de dialogar com os povos indígenas quando se trata de levar projetos a regiões onde eles estão presentes. É preciso olhar o passado para tentar fazer diferente. Não é possível que se construam usinas no Xingu ou no Tapajós como se construiu Itaipu, sem o menor respeito aos povos indígenas”.
Na entrevista a seguir, Spensy Pimentel também comenta os desdobramentos do Relatório Figueiredo, elaborado entre 1967 e 1968, que documenta casos de tortura e trabalho escravo entre os indígenas brasileiros durante a ditadura militar. “Documentos como o Relatório Figueiredo podem ser importantes para que o país se repense, para que nós façamos um exame de consciência em relação à forma como o Brasil tratou e ainda trata os povos indígenas”, aponta.
Spensy Pimentel é doutor e mestre em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo – USP, onde graduou-se em Jornalismo.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – O que é o Relatório Figueiredo e quais as principais denúncias feitas nele?
Foto: www.estradasecaminhos.blogspot.com.br |
Spensy Pimentel – Em síntese, poderíamos dizer que é um relatório feito entre 1967 e 1968 por um funcionário do Ministério do Interior, após encomenda do ministro à época a fim de apurar repetidas denúncias que eram feitas na imprensa e no meio político acerca de problemas no Serviço de Proteção ao Índio – SPI. A tal ponto esse conjunto de denúncias repercutiu que o SPI foi dissolvido, e em seu lugar se criou a Fundação Nacional do Índio – Funai.
Mas dizer isso é dizer muito pouco, na verdade. Creio que ainda estamos entendendo o que é o Relatório Figueiredo e quais são suas consequências. É preciso avançar numa compreensão mais ampla do que foi todo esse processo de investigação e denúncia dos abusos do antigo SPI ao longo dos anos 1960. Como tem refletido o pesquisador Marcelo Zelic, do Tortura Nunca Mais, que tem sido o divulgador dessa cópia do documento que foi encontrada, a coisa toda começou com uma CPI, ainda no governo Jango, mas depois o golpe de 1964 atrapalhou o andamento da discussão pública a respeito do que estava havendo. É hora de retomar essa conversa, encontrar as pessoas que participaram dela e que ainda estão vivas, para entender melhor tudo isso.
IHU On-Line – O que o Relatório Figueiredo aponta, especificamente, em relação ao Serviço de Proteção aos Índios – SPI?
Spensy Pimentel – É preciso observar que, independentemente de “fulanizar” a discussão, de pensar o relatório como um conjunto de acusações nominais, com finalidade administrativa, temos um relato de alguém que visitou mais de 130 postos indígenas na época, ao longo de uma viagem que percorreu diversas regiões do país. Isso é suficientemente representativo, me parece, para percebermos traços recorrentes, que definem, como um todo, um modo de agir do Estado brasileiro na época em relação aos povos indígenas.
Os funcionários não agiam como agiam por inclinação pessoal, simplesmente. Não se trata de problemas localizados, isolados. O que aconteceu naquela época foi que o país se olhou no espelho, percebeu o que tinha sido o resultado nefasto de um projeto que tinha começado com um tom humanista, com a figura do Marechal Rondon, e que tinha saído completamente do rumo.
E mais: as pessoas, talvez, tenham tido a oportunidade de perceber que o próprio impulso “humanista” que tinha fundado o SPI era um equívoco, porque, muitas vezes, estava ligado a um projeto de transformar o índio, de civilizá-lo, de “melhorá-lo” (o que queria dizer: torná-lo igual a nós), em vez de ser um projeto de chegar até esses outros que são os povos indígenas para conhecê-los e, por meio desse contato, nós mesmos nos alterarmos.
Além disso, claro, há nesse documento evidências importantes sobre vários casos de esbulho e de violência que poderão ajudar a entender melhor o tamanho da dívida que o país tem com vários povos indígenas.
IHU On-Line – Estudiosos da questão declararam que o Relatório Figueiredo pode servir para corrigir injustiças históricas. Em que sentido isso tende a acontecer e como, a partir dele, será rediscutida a historiografia em relação aos indígenas?
Spensy Pimentel – Em primeiro lugar, o relatório é uma oportunidade para rediscutir a historiografia do regime militar como um todo. Fica claro que a repressão no campo, na floresta, longe das cidades, foi a “outra face da moeda” da ditadura. Nas grandes cidades, os opositores eram calados. Mas, o que muitos desses opositores – muitas vezes, jornalistas, pesquisadores etc. – revelariam caso tivessem oportunidade? Justamente o tipo de barbárie que se vê no relatório: abusos que eram praticados em nome da civilização, do desenvolvimento, do progresso, tudo o que estava no cerne da ideologia aplicada pelos militares.
Há, evidentemente, diversos casos em que poderá ajudar não só esse documento, mas vários outros que certamente hão de vir à luz com os debates propiciados pela Comissão Nacional da Verdade. Por enquanto, é hora de estudar os relatos e procurar os grupos indígenas citados para entender melhor as denúncias, que, durante muito tempo, foram abafadas.
Por exemplo, como já tem vindo à tona, há as terras kadiweu, no Pantanal, que haviam sido concedidas por Dom Pedro II como recompensa pelo apoio dos indígenas na Guerra do Paraguai – boa parte delas foi tomada com a conivência de funcionários corruptos, e o documento talvez possa ajudar a provar isso na Justiça.
Guarani
Há questões como a dos Guarani que estão no litoral do Sudeste: o documento mostra muitas denúncias sobre torturas, humilhações e trabalho forçado nos postos indígenas do Paraná e da região Sul, de modo geral. Com esse tipo de informação, poderemos entender melhor qual foi o sentido de muitos desses indígenas se deslocarem para as matas da Serra do Mar: eles estavam fugindo de uma situação de opressão.
Temos até muitos casos de Guarani que tiveram de fugir do país, cruzar a fronteira para o Paraguai, ou a Argentina, a fim de escapar da perseguição que era movida por fazendeiros e por agentes públicos. Absurdamente, hoje, quando eles, ou seus filhos, retornam ao país para cobrar seus direitos, são acusados de serem estrangeiros.
No fim das contas, documentos como o Relatório Figueiredo podem ser importantes para que o país se repense, para que nós façamos um exame de consciência em relação à forma como o Brasil tratou e ainda trata os povos indígenas.
Nós já tivemos, nos últimos 25 anos, uma pequena revolução na forma de tratar a questão negra. A tese da “democracia racial”, de uma “escravidão cordial” é cada vez mais uma peça de museu. Os negros vêm conquistando cada vez mais espaços na sociedade brasileira.
Falta ainda, contudo, penso eu, que o país pare para repensar a questão indígena. Por exemplo, ainda é muito comum que as pessoas aprendam que a escravidão indígena não foi algo significativo na nossa história. Os povos indígenas foram, sim, vítimas do trabalho forçado – e, por sinal, em muitas regiões, têm sua força de trabalho explorada de forma terrível até hoje. Vide, por exemplo, as várias operações de fiscalização que flagraram indígenas trabalhando em condições análogas à escravidão em usinas de açúcar e álcool em Mato Grosso do Sul. Não é por acaso que no período colonial os indígenas foram chamados de “negros da terra” (em oposição aos negros que vinham da África).
Os povos indígenas não são um resquício do passado, eles são parte do nosso presente, e é junto com eles que o país poderá construir o seu futuro, que será tão mais brilhante quanto mais nós tenhamos capacidade de incluí-los, enquanto povos, nessa discussão sobre o futuro. Porque, ao prever um espaço para eles no futuro do país, estamos alargando nossa perspectiva de mundo, estamos criando um mundo onde podem caber muitos mundos, para usar uma imagem proposta pelo movimento indígena mexicano.
IHU On-Line – Qual a repercussão nacional e internacional da descoberta do Relatório Figueiredo? As informações são de que ele está quase intacto depois de 45 anos.
Spensy Pimentel – Por enquanto, como eu dizia, os estudiosos ainda estão acessando o documento para conferir melhor o que há de novidade. De qualquer modo, a descoberta do relatório, evidentemente, atrai atenção da imprensa, dos pesquisadores mais jovens, e isso pode ser positivo para que tenhamos um fôlego novo no estudo dessa temática. (São milhares de páginas, fazendo-se preciso muita dedicação.)
Isso é fundamental porque é preciso que não se perca a indignação com o que está retratado aí. Sobretudo, que não se perca a indignação em função de picuinhas, de questões menores. Não se pode descredenciar o documento por causa de uma acusação de corrupção que não possa ser provada, quando ele traz dezenas de acusações de tortura, violência sexual, escravidão que podem ser comprovadas facilmente pelo testemunho, a memória de centenas de indígenas espalhados país afora.
IHU On-Line – Quais são os elementos para uma teoria política kaiowá e guarani e em que ela consiste?
Spensy Pimentel – Esse é o tema de minha tese de doutorado. A ideia foi investigar como os Kaiowa e Guarani pensam e agem em relação àquilo que nós costumamos chamar de “política”. Eu busquei entender o sentido da ação das lideranças, dos xamãs – essa parte do estudo pode ser conferida no vídeo “Mbaraka – A Palavra que age” –, sobretudo no movimento Aty Guasu (grande reunião), que surge em torno da organização de grandes assembleias, desde os anos 1980.
Embora não tenham merecido muita atenção por aqui nas últimas décadas, as assembleias indígenas como as Aty Guasu são, desde os primeiros contatos com os europeus, uma fonte de imensa aprendizagem política. Para que se tenha ideia, as assembleias da Liga Iroquesa, no século XVIII, foram uma grande fonte de inspiração para o debate em torno da Constituição dos Estados Unidos.
Um olhar mais atento ao movimento indígena pode revigorar nossa reflexão e nossas práticas políticas – é o que tem acontecido no México desde os anos 1990, a partir do levante zapatista. As assembleias indígenas guardam importantes lições sobre democracia e autonomia. Os xamãs também nos convidam a olhar o meio ambiente de outra forma, questionando essa tendência ocidental de tratar terra, plantas e animais como “recursos naturais” – como algo de que se extrai proveito econômico meramente. Uma atenção à relação dos indígenas com suas lideranças também pode ser importante para que nos questionemos sobre a forma passiva, alienada, como nos comportamos, muitas vezes, em relação a nossos governantes.
IHU On-Line – Enquanto a Comissão Nacional da Verdade investiga os crimes cometidos contra indígenas no país, os parlamentares brasileiros sugerem várias Propostas de Emenda à Constituição, a exemplo da PEC 215, e o governo federal assume uma postura de garantir o desenvolvimento nacional desconsiderando a ocupação dos territórios indígenas. Como vê essa postura do Estado brasileiro em relação à questão indígena?
Spensy Pimentel – O momento é, evidentemente, gravíssimo, como muitos já têm dito. É um momento de crise profunda. Eu poderia fazer muitas críticas, mas isso não vai ajudar a resolver os problemas.
Estamos num momento novo, em que o Brasil não é mais aquele país pobre, subdesenvolvido, a quem os Estados Unidos ou a Europa podiam mandar “ajoelhar no milho” por conta de algum problema interno nosso.
Temos de passar, aqui mesmo, no Brasil, por um processo de discussão mais séria a respeito da relação do país com os povos indígenas. As coisas ainda são muito mal resolvidas.
O Estado brasileiro, no seu afã de promover o desenvolvimento, ainda tem muita dificuldade de dialogar com os povos indígenas quando se trata de levar projetos a regiões onde eles estão presentes. É preciso olhar o passado para tentar fazer diferente. Não é possível que se construam usinas no Xingu ou no Tapajós como se construiu Itaipu, sem o menor respeito aos povos indígenas.
Também há muitos esqueletos no armário, quando se trata da questão fundiária. Injustiças horríveis foram cometidas ao longo do século XX, isso precisa ser reconhecido. Em lugares como o Mato Grosso do Sul -MS, a fronteira agrícola avançou literalmente atropelando povos como os Guarani-Kaiowá.
Não é só o poder público que precisa ser cobrado, há o empresariado também. Nosso agronegócio é um destaque mundial hoje, e não é possível que as empresas do setor – frequentemente, multinacionais enormes – sejam tão insensíveis à necessidade de resolver a questão fundiária em lugares como MS. O clima de insegurança não é bom para ninguém, mas não adianta os ruralistas ficarem tratando os indígenas como idiotas, como se eles fossem manipulados por antropólogos e indigenistas “alinhados com interesses estrangeiros” (quando falam isso, me sinto como na época da Guerra Fria, sendo acusado de “agente comunista”).
Diálogo
A democracia é um processo em permanente construção. As pessoas precisam aprender a conversar. O sinal mais evidente de que precisamos aprimorar nossa forma de diálogo com os povos indígenas veio daquela cena da ocupação do plenário do Congresso por centenas de lideranças, algumas semanas atrás. Nós vamos nos assustar e correr, como aqueles deputados fizeram, num primeiro momento?
É preciso incluir esse tipo de desafio quando se discute, por exemplo, uma reforma política para o país. Como criar a possibilidade de ouvir constantemente os povos indígenas num espaço como o Congresso? Se dependermos exclusivamente de uma disputa de votos, em eleição direta, vai ficar difícil. Até hoje, só um indígena, o xavante Mario Juruna, conseguiu ser eleito deputado, nos anos 1980 – e foi para um só mandato, e ainda por cima, pelo Rio de Janeiro, graças à proximidade dele com o Darcy Ribeiro, não pelo Mato Grosso, estado natal dele.
IHU On-Line – Além de reconhecer as injustiças históricas, quais medidas deveriam se esperar do Estado brasileiro?
Spensy Pimentel – O mais urgente seria encarar as situações críticas, em termos fundiários, como a de Mato Grosso do Sul, criando mesas de negociações, incluindo fazendeiros e indígenas. Estamos todos lidando com situações que não foram construídas no tempo de um governo; elas são resultado de décadas de erros, omissões e violências.
Além disso, em relação aos empreendimentos que afetam terras indígenas – na Amazônia, sobretudo –, é urgente que se estabeleça diálogo quanto ao que está previsto na Convenção 169 da OIT, que exige consultas prévias às populações afetadas por projetos como as usinas hidrelétricas. Não há um acordo sobre como devem ser realizadas essas consultas, e isso dificulta muito a situação. Não adianta fazer de conta que a convenção não existe – ela foi ratificada pelo Congresso brasileiro em 2002 e, depois, promulgada por decreto presidencial em 2004!
Também, é preciso mais seriedade na fiscalização das condicionantes que as empresas assumem nesses projetos. A falta de compromisso em relação a essa questão está desmoralizando o processo e gerando posturas cada vez mais radicais, porque desesperadas, diante da falta de diálogo, da indiferença.
IHU On-Line – Como avalia os últimos acontecimentos em torno da questão indígena no país, especialmente a possibilidade de a Embrapa ser responsável por demarcar as terras indígenas no MS, e a tentativa de esvaziar a Funai?
Spensy Pimentel – A ida da ministra Gleisi Hoffman ao Congresso, na semana passada, anunciando a revisão da forma como são demarcadas as terras indígenas, assinala um agravamento da crise que eu apontava numa das respostas acima.
No momento, estamos todos ansiosos para conhecer as propostas que o governo fará. Creio que muitos de nós – sobretudo os que, como eu, têm visto de perto situações graves como a de MS – reconhecerão que o governo precisa, mesmo, agir, porque deixar toda a responsabilidade pela mediação dos conflitos com a Funai é algo temerário.
Agora, num momento como este, o que precisa ficar claro é que a Funai precisa ser, além de respaldada e apoiada, fortalecida. O que não pode ocorrer é que ela seja esvaziada. Não se trata de retirar poderes da Funai; trata-se, isto sim, de dar a ela condições de cumprir o papel que deveria cumprir e de colocar outros órgãos para ajudá-la. Em alguns casos, seria até necessário organizar um mutirão de diversos órgãos do governo federal. Por exemplo, o caso guarani-kaiowá é extremamente complexo, uma verdadeira crise humanitária, envolve assassinatos, suicídios, mortes por desnutrição infantil (fome), todas as mazelas imagináveis.
A Funai jamais será capaz de cuidar disso sozinha. Embora o movimento indígena por lá sempre enfatize que a demarcação de terras é condição sine qua non para enfrentar a crise, isso precisa ficar claro. Ainda que a Funai tivesse o orçamento e os recursos humanos para fazer o que tem que ser feito, ela precisaria de um respaldo político que está além do seu alcance. É preciso que a Presidência da República e o Ministério da Justiça assumam sua responsabilidade.
Sei que os marqueteiros que hoje guiam os passos de nossos governantes jamais os aconselhariam a enfrentar esse tipo de situação. Sejamos claros: usando o jargão, é algo que “não dá voto”, um tema espinhoso, com grandes chances de abalar imagens de incautos. Falar bobagem quando se está tratando de povos indígenas é muito fácil.
Realpolitik
Num país como o Brasil, o bom trato com a questão indígena ajuda a definir o grau de nobreza de um governo. Porque os indígenas, aqui, não são expressivos, em termos eleitorais, mas eles são um componente da mais alta relevância no que se refere a nossa história e nossa identidade como brasileiros.
É preciso que exijamos do governo algo além de uma atitude pragmática, de uma realpolitik que ignora um passado de altos ideais de toda a militância de esquerda deste país. Chico Mendes, por exemplo, foi um petista de primeira hora! O que ele diria sobre o que se passa hoje com a Amazônia, com os povos indígenas?
Oxalá o Relatório Figueiredo ajude as pessoas que têm um passado de luta contra a ditadura a perceber que elas e os indígenas estiveram juntos, do mesmo lado, naquele período, e que, hoje, seus representantes neste governo estão se aliando, muitas vezes, com os antigos inimigos.
IHU On-Line – A partir das suas pesquisas, quais são as dificuldades para entender os povos indígenas?
Spensy Pimentel – A dificuldade principal vem do fato de que quem inventou o “índio” fomos nós, não foram eles. Quem chegou aqui e, por sinal, de forma equivocada, chamou as pessoas de “índios”, em alusão à Índia, foram os europeus. Nós é que temos na cabeça uma espécie de índio imaginário que atrapalha muito nossas conversas, porque, o tempo todo, pensamos que eles devam ser aquilo que aprendemos desde pequenos: que devam andar nus, morar “na oca”, fazer a “dança da chuva”, falar “tupi-guarani”, ter “pajé e cacique” etc. O mais absurdo é que, se eles não correspondem a essa nossa ideia de índio, parecem ser “menos índios” aos nossos olhos. É preciso fazer uma espécie de faxina mental para retirar essas ideias, esses fantasmas, e começar a construir novas imagens a partir de um diálogo real com os povos indígenas.
Estamos falando de 305 grupos indígenas, com 274 línguas diferentes, vivendo em 688 terras indígenas, espalhados por lugares tão distintos como a Serra do Mar, o Alto Rio Negro, o Pantanal, a Caatinga e em cidades grandes e pequenas, de todas as regiões do país. Já está mais que na hora de o brasileiro deixar de lado algumas ideias simplórias sobre os povos indígenas.
O caminho para isso passa, sobretudo, pela escola. Os professores têm de ser convocados a essa tarefa. Já temos o instrumento legal, a lei 11.645, de 2008, que institui a obrigatoriedade do ensino sobre a história e as culturas indígenas. Agora, a população tem que cobrar nos estados e municípios a aplicação da lei.