Chegamos ao século 21 numa situação curiosa: do ponto de vista internacional, nós somos reconhecidos e classificados como o País da megadiversidade, um dos campeões em termos de reserva de recursos naturais. Ao mesmo tempo, não temos uma cultura própria de olhar isso como uma riqueza. A opinião é da jornalista, escritora e consultora em gestão ambiental, Teresa Urban, em entrevista para o jornal Gazeta Mercantil, 11-06-2007. Para ela, essa situação se deve basicamente a dois fatores: a inexistência de um processo de produção de conhecimento sobre a biodiversidade para ser levado à sociedade, e à nossa condição de analfabetismo ambiental que reduz a educação ao “adestramento” dos cidadãos para poupar água, energia e cuidar do lixo.
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Eis a entrevista
Por que somos um país analfabeto na questão ambiental?
Teresa Urban – Uma premissa que vale a pena pensar é: o Brasil continua sendo o País do “em se plantando tudo dá”. A idéia de tirar da natureza aquilo que o Brasil precisa para se desenvolver, viver, produzir, é uma idéia dada pelos colonizadores que está consistentemente colada nas mais variadas manifestações da necessidade humana. É uma forma de se fazer política, economia, de se educar. A sociedade brasileira, de uma maneira geral, ao longo do tempo, vem sendo criada e se desenvolvendo sob essa ótica. É como se ainda estivéssemos numa fase extrativista da relação com o ambiente. Mas este é um olhar minimalista, não há nenhuma política no sentido de compreender a lógica do recurso natural que está sendo explorado para repor o que se tirou. É uma história e faz parte da cultura e economia e política brasileira.
Quais as conseqüências disso?
Teresa Urban – A gente se conforma com o papel de provedor de matéria-prima para o resto do mundo. Outra conseqüência é que não houve, ao longo da nossa história, nenhum investimento no sentido de pensar os bens da natureza como uma riqueza. A riqueza é sempre decorrente do que se tira e apenas isso, e não propriamente a natureza em si. Edward Wilson, biólogo americano que elaborou o conceito da biodiversidade, afirma que a sociedade humana reconhece facilmente a riqueza cultural, financeira e econômica, até mesmo o valor da paisagem natural, mas não reconhece a biodiversidade como uma riqueza. A sociedade humana tem muita dificuldade em definir a biodiversidade como um dos patrimônios da sociedade.
E o Brasil se encaixa nesse perfil?
Teresa Urban – Perfeitamente. O Brasil não consegue olhar para ele e se conformou sempre com o papel de fornecedor de matéria-prima. Ou seja, nunca existiu um esforço maior no sentido de pesquisar, estudar, de saber usar os nossos recursos naturais. Nem no sentido de produzir um conhecimento próprio e permitir políticas e propostas reconhecendo o valor da nossa biodiversidade. Chegamos ao século 21 numa situação curiosa: do ponto de vista internacional nós somos reconhecidos e classificados como o maior país da megadiversidade, um dos campeões da biodiversidade do planeta, e não temos uma cultura própria de olhar isso como uma riqueza.
Isso não está relacionado ao fato de que esse conhecimento, em sua maioria, ter sido feito fora do Brasil?
Teresa Urban – Duas coisas são importantes aqui: o conhecimento sobre essa riqueza natural sempre foi produzido de fora para dentro. Centenas ou milhares de naturalistas, entre os séculos 16 e 21, conheceram e produziram conhecimento sobre nossa fauna, flora. Nossos recursos naturais deslumbraram cientistas, naturalistas nos últimos seis séculos. E nós sempre recebendo puxão de orelha, vindos de fora para dentro, pelo fato de não produzirmos as informações e não fazermos o que deveria ser feito para não destruir esses recursos naturais. Sem entrar em detalhes, é bom registrar que isso também fazia parte da política de ocupação do território. No século 19, já tinha gente dizendo na Inglaterra que era preciso parar com a exportação de penas e beija-flores brasileiros para ornamentar as inglesas. Existia uma sociedade internacional que alertava para o risco imposto à nossa fauna silvestre. Os puxões de orelha vinham e continuaram vindo de fora porque o Brasil não conseguiu em nenhum momento se apropriar dessa riqueza.
O Brasil se consolidou como nação sob essa ideologia e isso certamente quer dizer alguma coisa.
Teresa Urban – Temos de um lado a formação da riqueza baseada no extrativismo e, portanto, todas as elites têm ou tiveram um pé no extrativismo. Isso se traduz em um olhar sobre a natureza que domina a academia, a política, os governos, o planejamento. Como querer que uma elite com essa origem, e cujos representantes no Parlamento, olhe para essas questões de outro jeito? A sociedade toda foi induzida a compreender o desenvolvimento como uma forma de explorar mais rapidamente, mais eficientemente esses recursos no velho modelo extrativista.
A produção foi modificada pela introdução de novas tecnologias. Isso não alterou esse modo de pensar e agir?
Teresa Urban – Nem com toda a tecnologia moderna isso se modificou. Entramos no século 21 — a década da constatação da existência de problemas ambientais globais que demandam uma solução global, e das descobertas do papel fundamental da biodiversidade. Esta é a década em que se formata uma nova interpretação do papel da natureza. E nós, enquanto país, não estamos preparados para responder minimamente a isso com um olhar moderno. Quando tudo isso vem à tona, o Brasil diz que pode produzir mais cana-de-açúcar, agrocombustível. Em nenhum momento paramos para dizer: se a biodiversidade tem um papel chave nessa história, como podemos lidar melhor com isso? Não fazemos isso porque não temos tradição, história, conhecimento, pesquisa, cultura.
Seria possível outra forma de reação neste momento em que se toma conhecimento da situação de risco do planeta?
Teresa Urban – Como aconteceu sempre, mais uma vez não paramos para discutir que risco é esse do ponto de vista do país da megabiodiversidade. E que papel podíamos ter neste processo. Joga-se simplesmente para a população uma situação de temor e se reduz a participação da sociedade naqueles procedimentos mais tradicionais: poupem água e energia, cuidem do lixo. Mas não existe um esforço maior no sentido de uma discussão e proposta mais sérias. Posso estar equivocada, mas fala-se pouquíssimo em estimular e financiar pesquisas que permitam às universidades e órgãos públicos se apropriar desse conhecimento.
Então não está sendo produzido nada em termos de pesquisas no Brasil?
Teresa Urban – De maneira geral, as iniciativas de pesquisa seguem muito mais os modelos ainda tradicionais, voltados para o “extrativismo”, ou seja, como tirar mais da natureza. Chega a ser triste imaginar que uma universidade, como a federal do Paraná, que criou um setor de estudos florestais baseado na pesquisa para o desenvolvimento do pínus no Brasil. O pínus é uma planta exótica e inovadora, exclusivamente destinada à produção de celulose para a indústria de papel. Ou seja, uma universidade pública que formou gerações e gerações de profissionais, nunca se deteve em estudos sobre a biodiversidade. A Universidade Federal do Paraná é uma das escolas de florestas mais antigas do País e cujo papel foi esse. Se olharmos de maneira geral as instituições públicas, é esta a vocação. A origem do Ibama, por exemplo, resultou do antigo Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal. Como o próprio nome diz, o órgão tinha essa mesma direção: como tirar mais dessa abundância de madeira, seja na forma das florestas nativas. O Paraná é um bom exemplo. O que sobrou no final foi a constatação de que estamos reduzindo a um porcentual ínfimo as florestas naturais. Só restou 0,4% da floresta de araucária, que não existe em outro lugar a não ser no Paraná. E temo que ainda não temos conhecimento acumulado para recuperar essa floresta, embora tenhamos um acervo imenso de conhecimento sobre pínus.
Isso está acontecendo em outras regiões?
Teresa Urban – Este é um exemplo bem regional, mas que ilustra uma série de situações em outras partes do Brasil. Vale dizer ainda que durante muito tempo os setores ligados à proteção da biodiversidade pertenciam à estrutura do Ministério da Agricultura, o que foi um complicador a mais. Os interesses do setor produtivo, infelizmente, sempre se chocaram com os interesses da proteção dos recursos naturais. E isso se extrapola para outros segmentos. Na pesquisa sobre medicamentos, por exemplo, quase nada é produzido aqui. O conhecimento tradicional das populações indígenas e caboclas foi apropriado por setores empresariais, principalmente de fora. Mas aqui dentro pouco se produziu a respeito disso.
Então a população vai continuar paralisada perante as informações alarmantes que estão sendo difundidas?
Teresa Urban – Estamos hoje diante de uma situação em que o temor das catástrofes naturais está difundido e não há nenhum esforço organizado no sentido de estimular, desenvolver e sequer informar a sociedade sobre o que está acontecendo no planeta. É estranho porque não é nem por ausência de normas, à medida que a gente até tem uma legislação de educação ambiental extremamente moderna. A lei de política nacional de educação ambiental, de dez anos atrás, contempla a necessidade da multidisciplinaridade — no sentido de integrar conhecimentos de diferentes áreas. A lei recomenda que as questões de meio ambiente façam parte do desenvolvimento do conhecimento em todas as áreas e níveis de ensino — desde o fundamental até a universidade. Acontece que a lei não sai do papel. Algum esforço existe no país no âmbito do ensino fundamental, nas quatro primeiras séries. De forma geral, a questão ambiental é um adendo que às vezes aparece por esforços individuais. Sem exagero, podemos dizer que somos um País analfabeto na questão ambiental.
Essas iniciativas ainda de impacto localizado não podem ganhar fôlego?
Teresa Urban – Hoje, um caminho que produziria alguma mudança substancial seria introduzir a questão ecológica aplicada às diferentes ciências nas universidades. Ao mesmo tempo, formar quadros mais aptos para entender, produzir conhecimento e devolver esse saber ao ensino médio e fundamental, de uma forma mais conseqüente para toda a sociedade. A gente não tem esse conhecimento de fato e formulado por nós, a partir dessa nossa grande riqueza. Assim, também não temos como rebater, levar para o conjunto da sociedade as informações necessárias para a compreensão da realidade e muito menos para provocar uma atitude. As universidades teriam de se empenhar, se comprometer mais com a integração de conhecimentos que pudesse subsidiar a aplicação desse saber em outros níveis de ensino.
Diante disso tudo não se pode esperar uma mudança de atitude?
Teresa Urban – É difícil esperar uma mudança considerando que os detentores de poder de decisão são todos de alguma maneira oriundos do mesmo conceito inicial, o extrativismo. Qual governo ou Congresso vai ter uma política diferente da que está aí, à medida que não temos subsídios teóricos, científicos e culturais para isso? Recentemente, um líder sindical disse que ecologia até pouco tempo era coisa de viadinho. O planejamento embutida no Plano de Aceleração do Crescimento, o PAC, é uma proposta que passou batido pela questão ambiental. Ela tem a maior cara de Pero Vaz de Caminha, que escreveu ao rei de Portugal que esta era uma terra que, em se plantando, tudo dá. O governo optou por remendar futuramente eventuais prejuízos ambientais causados por algumas obras do plano. A prioridade é crescer de qualquer jeito e a questão ambiental que se ajuste, quando tínhamos tudo para virar o jogo e nos perguntar: Como podemos nos valer dessa riqueza, megabiodiversidade para construir um modelo diferente de desenvolvimento?