Por Lúcia Müzell
Publicado em 14-07-2016
Um perigo constante ronda o nosso dia a dia e não nos deixa em paz nem mesmo na hora de dormir. Os desreguladores (Nota do site: preferimos chamá-los de disruptores) endócrinos, poluentes presentes em milhares de produtos que fazem parte da vida moderna e até nos alimentos, são apontados pelos cientistas como um dos responsáveis pelo aumento dos casos de diversas doenças, como o câncer, ao perturbar o sistema hormonal.
A bióloga e endocrinogista Barbara Demeneix, autora de Cerveau endommagé (‘Cérebro danificado’, em tradução livre), é uma das maiores especialistas na ação dessas moléculas. Ela garante que os desreguladores já estão até afetando a nossa inteligência, ao prejudicarem a formação do cérebro, durante a gestação e a primeira infância.
Demeneix, diretora do laboratório de evolução das regulações endocrinológicas do Museu Nacional de História Natural de Paris, é mundialmente reconhecida pelos trabalhos sobre a tireoide, a glândula que desempenha um papel essencial para o equilíbrio do corpo humano. Ela concedeu a seguinte entrevista à RFI, por telefone.
O que são os desreguladores endócrinos?
Eles são encontrados em uma quantidade enorme de produtos químicos, como agrotóxicos, plásticos maleáveis usados para fabricar garrafas de água, brinquedos de criança e até em produtos para o corpo. Nos cosméticos, estão em ingredientes como fenol, bisfenol A. O fenol não é somente o conhecido BPA, usado no plástico, como também o triclosan, encontrado nos produtos de limpeza para matar as bactérias e até em cremes dentais e sabonetes. Além disso, os desreguladores estão nos retardadores de chamas usados na fabricação de móveis, cortinas e produtos eletrônicos, como os telefones. Os sprays usados para impermeabilizar tecidos também os contêm, assim como os plásticos filme que usamos para embalar os alimentos… Em resumo: tem em todo o lugar.
É impossível não estarmos em contato com eles, então?
Praticamente impossível. Até os ursos polares estão contaminados, porque há desreguladores endócrinos voláteis que estão na atmosfera, outros entram na água, alguns são muito resistentes à biodegradação e ao calor. Alguns tipos estão cada vez mais acumulados no meio ambiente.
Como eles agem no nosso cérebro?
Muitos desreguladores são moléculas que se parecem com as que encontramos no nosso corpo, por isso eles perturbam tanto. Eu trabalho especificamente sobre um grupo de produtos que podem “substituir” os hormônios produzidos pela tireoide, a glândula que fica na base do pescoço. Se uma criança não tem suficientemente hormônios tireoidianos, pode ter a doença cretinismo. Não sei se tem muitos casos no Brasil. Acho que lá não é muito conhecida. É muito estudada na Europa e na África, mas acho que na América Latina é menos. Sei que no Peru, nos Andes, houve casos de cretinismo.
Hoje, desde a segunda parte do século 20, são feitos testes em todos os bebês recém-nascidos para saber se eles têm suficientemente hormônios tireoidianos. Se ele não tiver, vai receber imediatamente uma dose e será assim por toda a sua vida. Os hormônios são necessários não apenas para o desenvolvimento do cérebro, como para o seu funcionamento. Até os idosos precisam: esse hormônio é essencial para mantermos a excelência das funções cerebrais e equilibrar as nossas necessidades energéticas. É por isso que quem tem demais, perde peso, e quem tem de menos, engorda.
Se os desreguladores endócrinos podem atrapalhar a formação do cérebro, as mulheres grávidas devem tomar cuidados redobrados quanto a exposição a esses elementos?
Sim, elas precisam prestar muita atenção, especialmente nos primeiros três meses de gestação, quando se forma o cérebro do bebê. Elas devem tomar reforços de iodo, vitaminas e minerais, ácido fólico antes e durante a gravidez. É muito importante porque, na primeira metade da gravidez, o bebê depende inteiramente dos hormônios tireoidianos da mãe. E se a mãe está com falta de iodo, não vai produzir hormônios tireoidianos o bastante.
Estudos citados no seu livro mostram que houve uma redução de quatro pontos do QI (quociente de inteligência) dos franceses em apenas 10 anos – de 1999 a 2009 -, os números sobre as crianças com autismo ou hiperativas estão em constante alta. Qual é o papel dos desreguladores endócrinos nessa situação?
É muito difícil fazermos uma associação direta. Fizemos estudos com mulheres grávidas e medimos a taxa de hormônios e de produtos químicos no sangue. Esperamos cinco, seis anos, e depois voltamos a verificar quais crianças têm QI elevado e quais têm o índice um pouco mais baixo. Pudemos, assim, fazer associações entre a taxa de hormônios tireoidianos da mãe, a taxa de iodo ou de produtos químicos, e os riscos de autismo, por exemplo.
Constatamos que, quando há a exposição a alguns agrotóxicos, não apenas há uma queda do QI da criança como há um aumento do risco de autismo. Também verificamos isso no caso de alguns retardadores de chamas e, de uma maneira muito clara, quando falta de iodo no organismo da mãe.
E não só isso. O Brasil tem o maior índice de cesarianas, conforme a vontade do médico ou da mãe. Isso causa muitos problemas. Está comprovado que o risco de autismo é maior nas cesarianas programadas com antecedência porque, com frequência, elas são feitas duas semanas antes da data normal do parto e cortam, assim, uma parte final muito importante para a conclusão da maturação do cérebro do bebê.
Os desreguladores endócrinos representam um risco para o QI das próximas gerações?
Sim, com certeza. Por isso que escrevi o livro. Ao testar a atividade de tantas substâncias nos hormônios tireoidianos, percebemos que dois terços deles têm efeitos perturbadores da tireoide. Quando vemos o nível de exposição da população em geral, percebi que temos um problema, inclusive porque encontramos essas moléculas no líquido amniótico, dentro da placenta.
Em quais as regiões do mundo o problema é mais grave?
É difícil dizer. Na Europa, existe uma legislação sobre a regulação, a avaliação e a autorização dos produtos químicos. Os Estados Unidos estão revendo totalmente a maneira pela qual os produtos químicos são inseridos no mercado, mas tudo isso está sendo feito tarde demais, porque temos mais de 85 mil produtos potencialmente tóxicos nos Estados Unido, e muito poucos foram testados quanto à ação potencial de desregulação endócrina.
O problema ainda é pouco estudado ao ponto de não ser levado suficientemente a sério ou as autoridades se recusam a fazê-lo porque, hoje, ele é vasto demais e está por todos os lugares?
É uma ótima questão. As pessoas começam a se dar conta, o grande público começa a perceber os riscos e há cada vez mais associações pedindo ações das autoridades. Mas o fato é que as autoridades estão submersas em um imenso problema. Na Europa, existe uma regulamentação, que ainda é insuficiente, e outros países começam a seguir o exemplo. Mas é um problema global, portanto deve ser controlado em nível internacional.
A OCDE (Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico), por exemplo, faz testes e tenta contribuir para a adoção de regulamentações internacionais, assim como a ONU. Mas cada país, ou grupo de países, deve adotar o quanto antes legislações específicas.
Não é apenas o QI que é afetado, como outras perturbações já foram confirmadas, em relação à fertilidade, ao risco de desenvolver câncer ou diabetes. O aumento dos casos dessas doenças pode ser atribuído aos desreguladores endócrinos?
Sim, sem dúvida. Já publicamos artigos sobre esse risco. É claro que não podemos dizer que esses problemas são causados só por uma razão ou por outra, mas temos dados experimentais e epidemiológicos mostrando uma forte associação entre esses elementos.
As pesquisas científicas se concentram demais nas causas genéticas das doenças e não o bastante nas que estão ligadas ao meio ambiente?
Com certeza, e obrigada por abordar isso. 95% do financiamento das pesquisas sobre o autismo vão para as questões genéticas, e isso por muitas razões. É claro que algumas doenças têm um componente genético e, talvez no caso do autismo, existam suscetibilidades genéticas. Mas nós pensamos que elas são exacerbadas, na comparação com os componentes do meio ambiente.
Não significa que não devamos fazer pesquisas genéticas, mas é preciso verificar as interações entre os genes e o ambiente. Hoje, devemos sobretudo pensar em termos de epigenética, ou seja, regulações que não impliquem em modificações dos genes ou de sequências genéticas, e sim a maneira como esses genes vão se manifestar. Essa é uma área muito recente de pesquisas, na qual precisamos investir mais.
Enquanto não há leis mais severas, como podemos nos proteger?
Há muitas coisas que podemos fazer para limitar a contaminação. Se pudermos comprar produtos orgânicos, é melhor. Vamos gastar mais, vamos ter mais trabalho, preparar as refeições nós mesmos e evitar comida pronta e congelada. Temos que evitar alimentos embalados e preparar o máximo possível em casa. Não se deve aquecer alimentos em embalagens plásticas no micro-ondas. É melhor usar potes de vidro ou cerâmica. Alguns plásticos podem ir no micro-ondas, mas para não correr riscos, é melhor evitar.
É preciso arejar a casa, para dispersar os perturbadores que vêm da televisão ligada, dos computadores e da poeira dos móveis, que podem conter retardadores de chamas. O cuidado é redobrado com o quarto das crianças. Onde tiver carpete, cortinas e muitos móveis, é preciso passar o aspirador com frequência porque toda a poeira da casa pode conter esses retardadores de chamas, e as crianças pequenas, que adoram colocar tudo na boca, são particularmente expostas. Há pequenas coisas que podemos fazer, mas o importante mesmo é criar leis.