Os fantasmas perdidos de 1964

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Marcelo Pimentel Jorge de Souza *

31/03/2022

Um oficial do Exército aponta: a muralha entre Forças Armadas e política se esfacelou. Hoje, há militares que falseiam a história, louvam golpismos e levam comandar-obedecer à vida pública. Até quando o Brasil permitirá acintes à democracia?

Título original: 58 anos do Golpe – A “muralha”, as “ordens do dia” e o Brasil 

As Forças Armadas, integradas por militares na ativa e inatividade, devem ser politicamente neutras, ideologicamente imparciais, apartidárias em sentido amplo, funcionalmente isentas, essencialmente profissionais e estritamente constitucionais.

Esses princípios, presentes nas democracias liberais e consolidados pelas lições da História, funcionam como camadas de uma “muralha” que deve separar as Forças Armadas e os militares da política e de governos – quaisquer política e governos. A segregação dos espaços “institucionais” evita ou, ao menos, reduz os riscos de que características e dinâmicas essenciais e desejáveis em um possam degenerar-se quando impropriamente levadas para outro.

“Quando a política entra no quartel por uma porta, a disciplina sai pela outra”. A frase, celebrizada pelo general Peri Bevilacqua à época da imposição do Ato Institucional nº 5 em 1968 – ele mesmo compulsoriamente “aposentado” como ministro do Superior Tribunal Militar por criticar aquele instrumento ditatorial – resume com alguma precisão os efeitos negativos que o “ethos” político pode provocar ao penetrar e pautar o espaço militar, que é predominantemente rígido, verticalizado em sentido descendente – do líder para o liderado – e fundamentado na coesão, na obediência sem discussão e na unidade imposta, sintetizando-se na relação-função comandar-obedecer.

“É simples assim: um manda e o outro obedece”. A expressão, notabilizada por um general na ativa no desempenho do cargo político de Ministro da Saúde – com autorização ou consentimento do Comando do Exército e do Ministério da Defesa em 2020 – explicando o motivo de ter retroagido na celebração de um pré-contrato para aquisição de vacinas, resume com alguma precisão os efeitos que o “ethos” militar pode provocar ao invadir e guiar o espaço político, que é flexível, horizontalizado ou verticalizado em sentido ascendente – do liderado para o líder – e fundamentado no dissenso, na discussão entre “iguais” e no partidarismo, sintetizando-se na relação-função eleger-governar.

A ordem jurídica estabelecida pela Constituição Federal de 1988 define claramente o lugar social e institucional do militar e das Forças Armadas, onde devem atuar, funcional e politicamente, sempre de acordo com os princípios “organizacionais” da hierarquia e da disciplina.

Impróprio e anacrônico, o atual protagonismo político de cúpulas hierárquicas – generais e coronéis – acentua os evidentes processos de politização das Forças Armadas – de seus integrantes – e de militarização da política e da sociedade, exercendo sobre a “muralha” pressões que já parecem comprometê-la.

A História do Brasil, especialmente desde o término da Guerra da Tríplice Aliança no século XIX, apresenta inúmeros exemplos de revoltas, rebeliões, “quarteladas”, motins, “putsch”, golpes – tentados ou efetivados – e todo tipo de intervenção militar na política. Três décadas foram necessárias para a sociedade brasileira e suas Forças Armadas erguerem a “muralha” após os vinte e um anos do regime ditatorial inaugurado pelo Golpe iniciado em 31 de março de 1964.

Por tudo isso, é muito preocupante que, na segunda década do século XXI, generais comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica, em conjunto com o Ministro da Defesa, também general, publiquem “ordens do dia” versando sobre aqueles eventos – o golpe e a ditadura.

Documentos oficiais, as “ordens do dia” são uma comunicação do comandante com a tropa em situações especiais. Têm caráter de pauta, orientação, baliza, referência e, em sentido amplo, de ordem. Quando um comandante a assina e publica, todos os oficiais e praças devem tomar conhecimento. Muitas vezes, são lidas em formatura e referem-se, normalmente, a efemérides militares relacionadas a batalhas, guerras e personagens de atuação destacada e meritória “em combate”.

Será cabível, então, referir-se ao Golpe de 1964 e à ditadura como “marcos para a democracia” diante de homens e mulheres imóveis, silenciados e obrigados a escutar texto laudatório a tais eventos? Foi o que ocorreu, por exemplo, em 2020, na “ordem do dia” que se iniciava com o seguinte período: “O Movimento de 1964 é um marco para a democracia brasileira. O Brasil reagiu com determinação às ameaças que se formavam àquela época”.

Naquela e em outras “ordens do dia” sobre a “Revolução” ou o “Movimento”, e como forma de “justificar” ou contemporizar sua inspiração, essência e dinâmica autoritárias, menciona-se realizações práticas do regime ditatorial julgadas “positivas” nos campos econômico e social, sem nenhuma referência à deterioração do campo político e às graves crises econômico-sociais de efeitos duradouros.

Expedir “ordem do dia” para os eventos relacionados à Ditadura 64-85 e à “Intentona Comunista de 1935” – outro exemplo de rebelião militar que tem sido motivo para a expedição do documento –, implicaria, por questões lógicas e isonômicas, a publicação de “ordens do dia” para todos os demais eventos de natureza política que, de alguma forma, tiveram o protagonismo das Forças Armadas, em especial de suas cúpulas hierárquicas. Por que não fazer uma “ordem do dia”, por exemplo, sobre o “Golpe do Estado Novo” ou sobre o primeiro e segundo 5 de julho (1922 e 1924)? Também foram “marcos históricos da evolução política brasileira”, título, aliás, da “ordem do dia” que rememora o Golpe de 1964 e a ditadura no presente ano.

Evidentemente, temas de tal categoria são absolutamente inapropriados para abordagens nesse tipo de comunicação oficial de caráter impositivo, elogioso e geral. Caso seja julgado necessário, as problematizações devem ser feitas nas esferas de natureza “escolar” e “acadêmica” – militar ou não – sujeitas a métodos específicos para tratamento de objetos como esse.

Entretanto, também nessas esferas observa-se algumas caracterizações superficiais e possivelmente enganosas ou distorcidas sobre o Golpe de 64 e o regime ditatorial que inaugurou. Na Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais, destinada à preparação do capitão para o prosseguimento da carreira até o posto de coronel, por exemplo, o plano da disciplina “História Militar” dedica oito horas ao estudo do “período dos Governos Militares”, estabelecendo como objetivos ao capitão-aluno: “descrever os antecedentes do Movimento de 31 de março de 1964, destacando as ações do Movimento Comunista Internacional”; “apresentar a atuação dos presidentes militares […] do período de 1964 a 1985”; e “apresentar o processo de abertura do Brasil, iniciada pelo Presidente Geisel” (sic). É dispensável realçar as imprecisões conceituais presentes nesses marcos didático-pedagógicos para se entender como pode estar sendo processada a “formação” da visão do oficial do Exército sobre a História do país e da própria Instituição.

Não é necessário, sequer, recorrer à farta produção intelectual – acadêmica ou não – para caracterização, categorização e definição daqueles fatos como marcos do autoritarismo – não como “marcos para a democracia” –, como Golpe – não como “Movimento” – e como Ditadura – não como “período de Governos Militares”.

Suficiente é ler os dezessete atos institucionais produzidos durante o período que, assim como as “ordens do dia”, estão assinados por generais. Na fria letra da lei, fonte histórica de valor indiscutível, mostra-se do que se tratava aquilo que os signatários da “ordem do dia” de 2020 chamavam de “marcos para a democracia”.

Em verdade, nem é necessário dar-se ao trabalho de ler os Atos, bastando a leitura do preâmbulo do Ato Institucional nº 1, redigido pelo mesmo autor da Constituição de 1937, que fundou a Ditadura do Estado Novo – Francisco Campos.

Naquele preâmbulo de 9 de abril de 1964, uma espécie de “ordem do dia” dos comandantes das Forças Armadas ao “povo”, o “movimento civil e militar […] que houve e continuará a haver […], não só no espírito e no comportamento das classes armadas, como na própria opinião pública nacional, é uma autêntica revolução”.

Inspirados pela revisão historiográfica da ditadura do Estado Novo, fundada, mantida e encerrada por cúpulas hierárquicas das Forças Armadas – transformou-se o Golpe Civil-Militar de 1930 em “Revolução de 1930” –, os golpistas de 1964 atribuíam-se, desde o início, a falsa categoria de “revolucionários”.

No preâmbulo, mais adiante, “a revolução vitoriosa […] se legitima a si mesma. […] Destitui o governo anterior […] e não procura legitimar-se através do Congresso. Este é que recebe deste Ato Institucional, […] a sua legitimação”. Em suma, estabelecia-se o caráter essencialmente ditatorial e antidemocrático que iria marcar os vinte e um anos seguintes. Isto não era e nunca será “marco para a democracia”. Dizê-lo, assim e agora, não parece preciso nem sensato.

A manutenção da prática de expedição de “ordens do dia” abordando tais eventos e períodos – o Golpe de 1964 e a ditadura –, além de demonstrar a impropriedade do ato em si no contexto nacional e internacional – não se conhece país democrático e livre em que chefias das Forças Armadas procedam de modo similar –, evidencia a passividade e a leniência de autoridades e da sociedade brasileiras, deficiências que não devem confundir-se com tolerância e consenso. Chefes de organizações de Estado não devem elevar opinião ou visão pessoal sobre temas de natureza sócio-histórica a posição ou postura “institucional”, sempre generalizante, vinculadora e uniforme, menos ainda em corporações militares baseadas na hierarquia e disciplina.

“O passado nunca foi, o passado continua”. Esta frase do sociólogo e então deputado Gilberto Freyre no plenário da Constituinte de 1946 é criticada pela antropóloga e escritora Lilia Moritz Schwarcz que, em seu último livro – “Sobre o Autoritarismo Brasileiro” –, expõe uma síntese muito pertinente a partir desse passado que não passa: “[…] mas é esse passado que vira e mexe vem nos assombrar, não como mérito e sim tal qual fantasma perdido, sem rumo certo. O nosso passado escravocrata, o espectro do colonialismo, as estruturas de mandonismo e patriarcalismo, a da corrupção renitente, a discriminação racial, as manifestações de intolerância de gênero, sexo e religião, todos esses elementos juntos tendem a reaparecer, de maneira ainda mais incisiva, sob a forma de novos governos autoritários, os quais, de tempos em tempos, comparecem na cena política brasileira” (2019, p. 224).

Numa época de exacerbação de extremismos políticos e sociais frequentemente fantasiados de nacionalismo ou sentimento de amor à Pátria, em que se “partidarizam” símbolos e significados pertencentes a todos os brasileiros, é imprescindível elaborar duas questões, com as quais se encerra essa construtiva reflexão crítica em defesa da consolidação do Estado Democrático de Direito no Brasil e em respeito às suas Forças Armadas, a que pertenço com muito orgulho:

– o Brasil vai continuar ignorando o esfacelamento da “muralha” que deve separar as Forças Armadas e os militares da política e de governos – quaisquer política e governos?

– o Brasil vai continuar permitindo que as chefias de suas Forças Armadas e de seu Ministério da Defesa publiquem “ordens do dia” sobre o Golpe de 64 e a Ditadura, a eles se referindo como “marcos para a democracia brasileira”?

* Oficial do Exército, na inatividade. Mestre em Ciências Militares, stricto sensu, pela Escola de Comando e Estado-Maior do Exército.