Onde os direitos indígenas à terra prevalecem no Brasil, o mesmo acontece com a natureza, segundo estudo

Uma trilha no território Pataxó que se sobrepõe ao Parque Nacional Monte Pascoal. Imagem cortesia de André Olmos.

https://news.mongabay.com/2023/04/where-indigenous-land-rights-prevail-in-brazil-so-does-nature-study-finds/

Luís Patriani – Traduzido por Matthew Rose

06 abril 2023

  • Um estudo que analisou as mudanças na cobertura florestal em 129 territórios indígenas na Mata Atlântica do Brasil entre 1995 e 2016 constatou que as taxas de desmatamento foram menores e as taxas de reflorestamento maiores naqueles onde a posse da terra foi formalizada.
  • Entre as razões para isso, sugerem os pesquisadores, está o fato de os povos indígenas se sentirem mais encorajados a reviver a floresta, seguros por saberem que serão protegidos pela lei.
  • No entanto, garantir a posse da terra, um processo conhecido como demarcação, tem se mostrado difícil para muitas comunidades indígenas, com o ex-presidente Jair Bolsonaro se recusando a assinar qualquer demarcação durante seu mandato de 2019-2022.
  • Sob o novo presidente, Luiz Inácio Lula da Silva, as lideranças indígenas se dizem mais otimistas em relação ao reconhecimento formal da posse de suas terras.

PERUÍBE, Brasil — Em 2 de outubro de 2020, o Supremo Tribunal Federal do Brasil anulou os critérios de corte temporal para demarcação de terras indígenas e manteve a homologação de 2016 do Território Indígena Piaçaguera. A decisão do tribunal foi um alívio para as famílias do último pedaço de terra Tupi-Guarani litorânea da região sudeste do Brasil, em plena Mata Atlântica.

O demorado processo de demarcação, finalizado com a homologação que reconhece oficialmente a terra como território indígena, começou em 2000. Foi nesse ano que as famílias indígenas retornaram a essa área no estado de São Paulo após serem despejadas por posseiros. Desde então, eles resistiram por duas décadas às tentativas de retomada e destruição de seu território, que abrange 2.795 hectares e hoje abriga 11 aldeias e 358 moradores.

Por oito desses anos, eles resistiram a uma campanha de assédio liderada pelo polêmico empresário Eike Batista, a certa altura a pessoa mais rica do Brasil e número 7 do mundo. Batista, que em 2018 foi condenado e sentenciado a 30 anos de prisão por subornar um funcionário público em troca de contratos com o Estado, tentou – e não conseguiu – convencer as famílias indígenas a vender parte de suas terras para ele construir o que teria sido o maior porto do Brasil.

Em 2011, as famílias bloquearam uma concessão que permitia a uma mineradora extrair areia da região. Essa operação havia deixado uma paisagem lunar esburacada após cinco décadas de exploração, e a empresa, que se dizia proprietária de quatro lotes de terra sobrepostos à Terra Indígena Piaçaguera, repetidamente levantou obstáculos legais para impedir a demarcação da terra.

Sete anos depois, as famílias lutaram contra os projetos de uma usina a carvão e porto no município de Peruíbe, além de um gasoduto e uma linha de transmissão que cortaria o litoral até o porto de Santos e a cidade de Cubatão, a cerca de 80 quilômetros de distância.

“Acontecia muita coisa ruim”, diz a líder indígena Catarina Delfina, uma das protagonistas da retomada do território na virada do milênio. “No entanto, isso mudou bastante depois que fundamos a primeira comunidade e depois da homologação mais tarde.”

Ela diz que se lembra da restinga melhorando e da mata crescendo. “Mas ainda há quem esteja de olho nas nossas terras ancestrais, que eram o ponto de encontro entre indígenas que vinham do norte e do sul do litoral antes da chegada dos portugueses”, diz Catarina. “Essa é a única área em que Peruíbe pode se expandir, e os não indígenas querem colocar as mãos nela porque é um ponto perto da praia, que vale mais dinheiro.”

Aos 73 anos, Catarina, ou Nimbopyruá como é chamada em sua língua nativa, diz estar satisfeita por ter preservado a mata e o patrimônio ancestral de seu povo. Mas ela diz que só poderá relaxar quando a odiosa perspectiva do marco temporal for declarada inconstitucional. De acordo com os critérios controversos, os povos indígenas só têm direito a reivindicar terras que ocupavam na época em que a atual Constituição do Brasil entrou em vigor em 1988.

“Os processos de demarcação e homologação são importantes porque nos permitem trabalhar o território, trazer projetos para cá e acrescentar coisas à aldeia, como a escola e os projetos de reflorestação. Você pode imaginar se [nossos direitos a] essas terras forem revogados novamente?” diz Catarina.

Onde tem índio, a floresta volta a crescer

As palavras da liderança tupi-guarani sobre a importância da regularização fundiária de suas terras ecoam as conclusões de um estudo publicado recentemente. O artigo demonstrou como os territórios totalmente demarcados e homologados na Mata Atlântica normalmente sofrem menos desmatamento e mais reflorestamento.

Ele analisou as mudanças na cobertura florestal em 129 territórios indígenas, incluindo Piaçaguera, entre 1995 e 2016. Os resultados mostraram que a mudança na cobertura florestal foi 0,77 pontos percentuais maior por ano em terras de posse do que em terras desocupadas. A Terra Indígena Piaçaguera, segundo dados preliminares não publicados compartilhados com a Mongabay, recuperou 55 hectares de floresta tropical no período, o equivalente a 2% de sua área total.

Em alguns territórios indígenas, o aumento da cobertura florestal ultrapassou 20% da superfície total do território. Foi o caso das Terras Indígenas Toldo Pinhal e Toldo Chimbangue , ambas localizadas no estado de Santa Catarina e onde vivem os índios Kaingang, que registraram aumentos de 27,8% e 21,1%, respectivamente, ao longo de o período de estudo.

“O estudo focou em tendências médias e não teve a intenção de olhar para casos específicos. Mas há possibilidades de explicar as circunstâncias”, diz a principal autora do estudo, Rayna Benzeev, pesquisadora de reflorestamento tropical da Universidade da Califórnia, em Berkeley.

“Um deles é a presença de não índios nos territórios antes do reconhecimento do direito à terra, pois após a regularização fundiária dos índios eles são proibidos de usar a terra. Outra possibilidade é que, uma vez ratificados, o governo federal tenha sido obrigado por lei a fazer valer os direitos dos Territórios Indígenas, e as comunidades indígenas possam investir mais nisso quando tiverem certeza de que serão protegidos.”

Segundo Benzeev, os processos de demarcação estão parados em muitos territórios indígenas do Brasil. O ex-presidente do país, Jair Bolsonaro, prometeu não demarcar “um centímetro” de terra indígena, e fez isso durante seu mandato de 2019 a 2022. O novo governo, de Luiz Inácio Lula da Silva, tem a oportunidade de reverter isso cumprindo a Constituição e concedendo aos povos indígenas seu direito à autodeterminação. “Nossas descobertas trouxeram à mesa um argumento ambiental para o reconhecimento dos direitos legais dos povos indígenas às suas terras na Mata Atlântica brasileira”, diz Benzeev.

O coautor do estudo, Marcelo Rauber, da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), destaca que a Mata Atlântica é o bioma mais degradado do Brasil, submetido há séculos à pressão da urbanização, do desenvolvimento econômico e da alta densidade populacional.

“Esta é a primeira análise rigorosa dos efeitos da apropriação de territórios indígenas neste bioma e preenche uma lacuna na maioria dos estudos anteriores que avaliaram essa relação em locais remotos”, diz Rauber, cuja pesquisa tem como foco políticas públicas para povos indígenas e conflitos de terra envolvendo o processo demarcatório no Brasil.

Ao contrário da Floresta Amazônica, onde o desmatamento começou a aumentar a partir da década de 1970 e onde ainda existe 80% da floresta tropical, a Mata Atlântica, um dos pontos de maior biodiversidade do planeta, vinha sendo atacada desde o século XVI. Ela experimentou as maiores taxas de desmatamento nos últimos dois séculos, que reduziram o tamanho da floresta a apenas 12% de sua área original.

Em terra Pataxó, a luta continua

“Grande parte dos conflitos relacionados à demarcação de terras ocorre na Mata Atlântica, nas regiões Sul, Sudeste e Nordeste, e não na Amazônia, onde grande parte das terras indígenas foram homologadas”, diz Rauber. “Lá eles sofrem com outros tipos de problemas, como saques e invasões de terras.”

Ele aponta os territórios Pataxó de Barra Velha e Comexatiba, no extremo sul da Bahia, como exemplos de áreas que ainda aguardam a conclusão da demarcação e onde persiste a pressão do desmatamento e conflitos fundiários.

“As terras são reivindicadas desde 1950 e, desde a década de 1980, ocorre um intenso desmatamento na área não demarcada para uso da terra para mineração de areia e criação de gado, principalmente gado”, diz Rauber. “A mata que sobrou só foi protegida pela existência do Parque Nacional do Monte Pascoal, que se sobrepõe à terra reivindicada [como território indígena].”

O parque nacional foi designado em 1961, cobrindo 22.383 hectares (55.310 acres), dos quais 8.500 hectares (21.000 acres) foram reservados para comunidades indígenas se estabelecerem, tornando-o o único território Pataxó legalmente consagrado no sul da Bahia.

No início de 2023, dois jovens pataxós que lideravam a ocupação de uma fazenda no território de Comexatiba foram baleados e mortos. Ativistas pelos direitos indígenas se reuniram com policiais e funcionários da Funai, agência federal de assuntos indígenas, para exigir uma investigação urgente e exigir maior segurança na área diante dos ataques contínuos à comunidade.

Aruã Pataxó, cacique indígena e presidente da Federação Indígena das Nações Pataxó e Tupinambá do Extremo Sul da Bahia (FINPAT), diz que é importante ter uma demarcação efetiva para conter essas ondas de violência.

“Estamos lutando muito pela formalização da posse de nossas terras. Já nas Terras Indígenas Barra Velha e Comexatiba estamos passando por um processo de autodemarcação”, afirma. “Vidas foram perdidas nessa luta. Quatro jovens indígenas foram assassinados pelas mãos armadas do estado da Bahia. Policiais militares estão servindo como pistoleiros para fazendeiros. Cinco policiais foram presos e acusados ​​desses assassinatos e até agora ninguém que ordenou esses assassinatos foi preso”.

Aruã Pataxó diz que a falta de segurança em Comexatiba está muito longe da situação em uma porção de 9.000 hectares (22.200 acres) da Terra Indígena Barra Velha, localizada dentro do Parque Nacional Monte Pascoal e já homologada. Nesta última área, diz ele, a comunidade tem acesso a políticas públicas e programas de ação afirmativa. Os Pataxó buscam a demarcação total de 44.000 hectares (109.000 acres) de seu território.

“Existem exemplos bem-sucedidos de projetos agroflorestais e de agricultura familiar, como no povoado Meio da Mata, em Porto Seguro”, diz Aruã. “Também temos um projeto de reflorestamento da Cooperativa de Florestamento e Reflorestamento da aldeia Pataxó de Boca da Mata [Cooplanjé], que tem acesso a recursos por meio de esquemas de financiamento público.”

A espera pela regularização fundiária em territórios Guarani continua

Assim como os Pataxó, os índios Guarani também estão cansados ​​de esperar o reconhecimento de seus direitos e cobram providências do novo governo. Em fevereiro, uma comissão formada por comunidades Guarani dos estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Espírito Santo, Paraná, Rio Grande do Sul e Santa Catarina enviou uma carta contundente às autoridades.

Endereçada ao presidente Lula e à ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara, diz: “A única razão pela qual essas terras ainda não foram demarcadas foi porque a pena do governo anterior [de Jair Bolsonaro] trabalhou contra os povos indígenas do Brasil – trazendo ilegalmente as demarcações pararam quando tudo já estava em andamento.”

A carta informa que 12 territórios indígenas localizados na região da Mata Atlântica não têm pendências e estão prontos para serem demarcados. Oito aguardam decreto declaratório do Ministério dos Povos Indígenas, que os habilitaria para homologação do presidente, e quatro já podem ser homologados.

Entre elas está a Terra Indígena Tenondé Porã , localizada no extremo sul do estado de São Paulo, distribuída pelos municípios de Mongaguá, São Bernardo do Campo e São Vicente, com 1.500 habitantes.

Com 15.969 hectares (39.460 acres), esse território Guarani teve seu decreto declaratório assinado em 2016. Esse decreto garante à comunidade indígena a posse permanente de suas terras e abre caminho para que sejam realizadas as etapas finais do processo de demarcação: a colocação de marcos físicos nas fronteiras do território, a remoção e indenização dos não indígenas da área e, por fim, a homologação, assinada pelo presidente e formalizando o registro definitivo do território indígena. Desde 2016, porém, o território Tenondé Porã aguarda a assinatura do presidente.

As esperanças são grandes para que a homologação finalmente chegue sob Lula, e há planos para restaurar 90 hectares (222 acres) de floresta dentro do território. Enquanto aguardam, as comunidades Guarani já começaram a trabalhar para restaurar as áreas degradadas com o plantio de árvores nativas, inclusive frutíferas.

“O decreto declaratório de 2016 tornou a vida mais tranquila para todos nós. [Deu] segurança física, alimentar, cultural e espiritual”, diz a liderança local Jera Guarani, que nasceu na aldeia Tenondé Porã em 1987, quando ela tinha apenas 26 hectares de terra demarcada. “Já temos um sucesso que nos deixa muito felizes, que é o plantio de árvores nativas em risco de extinção , como o cambuci [ Campomanesia phaea ], o jaracatiá [ Jacaratia spinosa ] e o palmito jussara [ Euterpe edulis ].

“Passei toda a minha vida nesta pequena área de terra, onde pude ver as pessoas perdendo tudo o que tinham”, diz Jera. “E agora temos 14 aldeias, e nas áreas de mata agora tem animais para caça, matéria-prima, ervas medicinais e todo tipo de animal da Mata Atlântica. Estamos todos muito felizes com isso.”

Citação:

Benzeev, R., Zhang, S., Rauber, MA, Vance, EA e Newton, P. (2023). A formalização da posse das terras indígenas melhorou os resultados florestais na Mata Atlântica do Brasil. PNAS Nexus, 2(1), pgac287. doi:10.1093/pnasnexus/pgac287