Na quinta-feira, 06 de outubro, Naomi Klein compareceu, convidada, à Assembleia Geral de Nova York. A amplificação foi banida pela polícia. Não havia microfones. Num inesquecível gesto, a multidão mais próxima a Klein repetia suas frases, para que os mais distantes pudessem ouvir e, por sua vez, repeti-las também. Era o “microfone humano”. O memorável discurso de Klein foi assistido por dezenas de milhares de pessoas via internet.
9/10/2011
http://www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=48178
O sítio da revista Fórum, 07-09-2011 – com tradução de Idelber Avelar – reproduziu a fala da ativista..
Eis o pronunciamento.
Eu amo vocês.
E eu não digo isso só para que centenas de pessoas gritem de volta “eu também te amo”, apesar de que isso é, obviamente, um bônus do microfone humano. Diga aos outros o que você gostaria que eles dissessem a você, só que bem mais alto.
Ontem, um dos oradores na manifestação dos trabalhadores disse: “Nós nos encontramos uns aos outros”. Esse sentimento captura a beleza do que está sendo criado aqui. Um espaço aberto (e uma ideia tão grande que não pode ser contida por espaço nenhum) para que todas as pessoas que querem um mundo melhor se encontrem umas às outras. Sentimos muita gratidão.
Se há uma coisa que sei, é que o 1% adora uma crise. Quando as pessoas estão desesperadas e em pânico, e ninguém parece saber o que fazer: eis aí o momento ideal para nos empurrar goela abaixo a lista de políticas pró-corporações: privatizar a educação e a seguridade social, cortar os serviços públicos, livrar-se dos últimos controles sobre o poder corporativo. Com a crise econômica, isso está acontecendo no mundo todo.
Só existe uma coisa que pode bloquear essa tática e, felizmente, é algo bastante grande: os 99%. Esses 99% estão tomando as ruas, de Madison a Madri, para dizer: “Não. Nós não vamos pagar pela sua crise”.
Esse slogan começou na Itália em 2008. Ricocheteou para Grécia, França, Irlanda e finalmente chegou a esta milha quadrada onde a crise começou.
“Por que eles estão protestando?”, perguntam-se os confusos comentaristas da TV. Enquanto isso, o mundo pergunta: “por que vocês demoraram tanto? A gente estava querendo saber quando vocês iam aparecer.” E, acima de tudo, o mundo diz: “bem-vindos”.
Muitos já estabeleceram paralelos entre o Ocupar Wall Street e os assim chamados protestos anti-globalização que conquistaram a atenção do mundo em Seattle, em 1999. Foi a última vez que um movimento descentralizado, global e juvenil fez mira direta no poder das corporações. Tenho orgulho de ter sido parte do que chamamos “o movimento dos movimentos”.
Mas também há diferenças importantes. Por exemplo, nós escolhemos as cúpulas como alvos: a Organização Mundial do Comércio, o Fundo Monetário Internacional, o G-8. As cúpulas são transitórias por natureza, só duram uma semana. Isso fazia com que nós fôssemos transitórios também. Aparecíamos, éramos manchete no mundo todo, depois desaparecíamos. E na histeria hiper-patriótica e nacionalista que se seguiu aos ataques de 11 de setembro, foi fácil nos varrer completamente, pelo menos na América do Norte.
O Ocupar Wall Street, por outro lado, escolheu um alvo fixo. E vocês não estabeleceram nenhuma data final para sua presença aqui. Isso é sábio. Só quando permanecemos podemos assentar raízes. Isso é fundamental. É um fato da era da informação que muitos movimentos surgem como lindas flores e morrem rapidamente. E isso ocorre porque eles não têm raízes. Não têm planos de longo prazo para se sustentar. Quando vem a tempestade, eles são alagados.
Ser horizontal e democrático é maravilhoso. Mas esses princípios são compatíveis com o trabalho duro de construir e instituições que sejam sólidas o suficiente para aguentar as tempestades que virão. Tenho muita fé que isso acontecerá.
Há outra coisa que este movimento está fazendo certo. Vocês se comprometeram com a não-violência. Vocês se recusaram a entregar à mídia as imagens de vitrines quebradas e brigas de rua que ela, mídia, tão desesperadamente deseja. E essa tremenda disciplina significou, uma e outra vez, que a história foi a brutalidade desgraçada e gratuita da polícia, da qual vimos mais exemplos na noite passada. Enquanto isso, o apoio a este movimento só cresce. Mais sabedoria.
Mas a grande diferença que uma década faz é que, em 1999, encarávamos o capitalismo no cume de um boom econômico alucinado. O desemprego era baixo, as ações subiam. A mídia estava bêbada com o dinheiro fácil. Naquela época, tudo era empreendimento, não fechamento.
Nós apontávamos que a desregulamentação por trás da loucura cobraria um preço. Que ela danificava os padrões laborais. Que ela danificava os padrões ambientais. Que as corporações eram mais fortes que os governos e que isso danificava nossas democracias. Mas, para ser honesta com vocês, enquanto os bons tempos estavam rolando, a luta contra um sistema econômico baseado na ganância era algo difícil de se vender, pelo menos nos países ricos.
Dez anos depois, parece que já não há países ricos. Só há um bando de gente rica. Gente que ficou rica saqueando a riqueza pública e esgotando os recursos naturais ao redor do mundo.
A questão é que hoje todos são capazes de ver que o sistema é profundamente injusto e está cada vez mais fora de controle. A cobiça sem limites detona a economia global. E está detonando o mundo natural também. Estamos sobrepescando nos nossos oceanos, poluindo nossas águas com fraturas hidráulicas e perfuração profunda, adotando as formas mais sujas de energia do planeta, como as areias betuminosas de Alberta. A atmosfera não dá conta de absorver a quantidade de carbono que lançamos nela, o que cria um aquecimento perigoso. A nova normalidade são os desastres em série: econômicos e ecológicos.
Estes são os fatos da realidade. Eles são tão nítidos, tão óbvios, que é muito mais fácil conectar-se com o público agora do que era em 1999, e daí construir o movimento rapidamente.
Sabemos, ou pelo menos pressentimos, que o mundo está de cabeça para baixo: nós nos comportamos como se o finito – os combustíveis fósseis e o espaço atmosférico que absorve suas emissões – não tivesse fim. E nos comportamos como se existissem limites inamovíveis e estritos para o que é, na realidade, abundante – os recursos financeiros para construir o tipo de sociedade de que precisamos.
A tarefa de nosso tempo é dar a volta nesse parafuso: apresentar o desafio à falsa tese da escassez. Insistir que temos como construir uma sociedade decente, inclusiva – e ao mesmo tempo respeitar os limites do que a Terra consegue aguentar.
A mudança climática significa que temos um prazo para fazer isso. Desta vez nosso movimento não pode se distrair, se dividir, se queimar ou ser levado pelos acontecimentos. Desta vez temos que dar certo. E não estou falando de regular os bancos e taxar os ricos, embora isso seja importante.
Estou falando de mudar os valores que governam nossa sociedade. Essa mudança é difícil de encaixar numa única reivindicação digerível para a mídia, e é difícil descobrir como realizá-la. Mas ela não é menos urgente por ser difícil.
É isso o que vejo acontecendo nesta praça. Na forma em que vocês se alimentam uns aos outros, se aquecem uns aos outros, compartilham informação livremente e fornecem assistência médica, aulas de meditação e treinamento na militância. O meu cartaz favorito aqui é o que diz “eu me importo com você”. Numa cultura que treina as pessoas para que evitem o olhar das outras, para dizer “deixe que morram”, esse cartaz é uma afirmação profundamente radical.
Algumas ideias finais. Nesta grande luta, eis aqui algumas coisas que não importam:
Nossas roupas.
Se apertamos as mãos ou fazemos sinais de paz.
Se podemos encaixar nossos sonhos de um mundo melhor numa manchete da mídia.
E eis aqui algumas coisas que, sim, importam:
Nossa coragem.
Nossa bússola moral.
Como tratamos uns aos outros.
Estamos encarando uma luta contra as forças econômicas e políticas mais poderosas do planeta. Isso é assustador. E na medida em que este movimento crescer, de força em força, ficará mais assustador. Estejam sempre conscientes de que haverá a tentação de adotar alvos menores – como, digamos, a pessoa sentada ao seu lado nesta reunião. Afinal de contas, essa será uma batalha mais fácil de ser vencida.
Não cedam a essa tentação. Não estou dizendo que vocês não devam apontar quando o outro fizer algo errado. Mas, desta vez, vamos nos tratar uns aos outros como pessoas que planejam trabalhar lado a lado durante muitos anos. Porque a tarefa que se apresenta para nós exige nada menos que isso.
Tratemos este momento lindo como a coisa mais importante do mundo. Porque ele é. De verdade, ele é. Mesmo.
Para ler mais:
http://www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=48191
09.10.2011.
“Contra a ganância das grandes corporações”
“Este movimento começou porque as pessoas estão perdendo as esperanças de que os partidos políticos por si só vão fazer alguma coisa para frear o empobrecimento cada vez maior dos americanos e as injustiças geradas pelos interesses das grandes corporações”, afirma Jean Cohen, cientista político da Universidade de Columbia (EUA).
A entrevista é de Joana Neitsch e está publicada na Gazeta do Povo, 09-10-2011.
Eis a entrevista.
Por que o movimento começou agora, três anos depois do início da crise, em 2008?
Este movimento começou porque as pessoas estão perdendo as esperanças de que os partidos políticos por si só vão fazer alguma coisa para frear o empobrecimento cada vez maior dos americanos e as injustiças geradas pelos interesses das grandes corporações.
Por que os jovens estão sem esperança? Eles acham que não vão poder pagar a dívida da universidade, por exemplo?
Os jovens não estão sem esperanças. Caso contrário, eles não estariam dando início a um movimento social. Esse movimento indica que eles têm esperança de que podem ser ouvidos e influenciar mudanças que levem a uma sociedade mais justa, menos voltada aos interesses corporativos.
Você acha que esse movimento reflete o sentimento da maioria do povo americano diante da crise ou é somente um grupo limitado?
Isso reflete o sentimento da maioria. O movimento está tentando se desenvolver para expressar o sentimento daqueles que se sentem injustiçados diante do fracasso do governo em proteger o bem público, como infraestrutura e saúde. Eles também estão se voltando contra a ganância desenfreada das grandes corporações, dos bancos e de membros do partido Republicano que se dispõem a dar suporte a tudo isso.
Em um artigo publicado na revista Time, o Occupy Wall Street foi chamado de Tea Party da esquerda. Você concorda?
É em oposição ao Tea Party, sim. Este, todavia, é um movimento que conta com o apoio dos trabalhadores – já que trata das injustiças nas relações de trabalho – e a classe média apoia. Em resumo, os 99% que correm risco neste país. É diferente do Tea Party porque não é financiado ou patrocinado por membros endinheirados de qualquer partido político ou grupo de lobistas. É um movimento democrático e igualitário. O Tea Party é protofascista.
Este movimento pode crescer e gerar verdadeiras consequências para a realidade dos EUA?
Esse movimento vai crescer, já tem crescido. Organizações de trabalhadores estiveram na marcha de quarta-feira. Trabalhadores não estavam nas manifestações e nos movimentos dos anos 1960. Eles estão lá, agora, porque têm uma coisa em comum com os jovens: a preocupação com o futuro, com seus direitos e bem-estar econômico. Ambos buscam o desafio de fazer uma redistribuição radical da riqueza, que tem se concentrado no topo nos últimos 30 anos.
http://www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=48192
9/10/2011
Outono americano
A coisa começou morna no meio do mês passado quando algumas dezenas de estudantes brancos de universidades privadas se reuniram no coração financeiro de Nova York para protestar contra tudo aquilo que está lá: o desemprego a 9%, os despejos, a mão salvadora do governo estendida só aos bancos e a sensação, enfim, de que nada vai mudar tão cedo. Não propunham nada, nem queriam. Bastava estar. Nomearam o movimento de Ocupar Wall Street e ergueram cartazes de uma singeleza quase cafona: “Acorda, América” (nem exclamação tinha), “Outono Americano” (alusão à Primavera Árabe) e “Nós somos 99%” (os financistas incólumes às chicotadas da crise seriam o 1% restante).
Mas no sábado 1º, como disse sarcasticamente Lawrence O’Donnell, da rede de TV MSNBC, uns baderneiros de uniforme, quepes, distintivos e sprays de pimenta resolveram, na base da força, interromper uma marcha pacífica sobre a Ponte do Brooklyn. Setecentos manifestantes foram presos. E desde então o Ocupar Wall Street cresceu – em número e diversidade. Desempregados, imigrantes, professores, profissionais liberais e principalmente sindicatos engrossaram o caldo. Eles se calculam em 20 mil. A turma do spray de pimenta diz que não passam da metade disso. Na quarta-feira, pelo menos 150 demonstrações parecidas se espalharam pelo país, incluindo Boston, Chicago, Seattle, Cleveland e Los Angeles.
E, agora, a absoluta falta de meias palavras, tanto em Wall Street quanto em Washington, talvez sugira que não seja bom negócio continuar ignorando os mais novos indignados do pedaço. Porque os cartazes endureceram. Apareceram placas gritando “Antes dos lucros, as pessoas”, “O mundo tem o suficiente para a necessidade de todos, mas não para a ganância de todos”, “Imposto para Wall Street”, “Eu não provoquei essa crise. Os responsáveis que paguem por ela”. Tudo isso, não custa lembrar, no seio da maior potência capitalista da história. Até o presidente Barack Obama achou por bem dizer algo: “A economia precisa de uma balançada imediatamente. Há pessoas demais sofrendo neste país para não fazermos nada”.
Mas quais serão os desdobramentos ou os efeitos práticos do Ocupar Wall Street? Aqueles jovens só estão bravos porque não veem mais perspectivas de fazerem seu primeiro milhão de dólares antes dos 30 anos? Ou também se compadecem dos mortos de fome da Somália, dos velhinhos gregos que levaram uma mordida na pensão para que seu governo recebesse uma boia do FMI? Eles influenciarão na sucessão de Obama?
O Aliás fez essas e outras perguntas a dois sociólogos, atentos (e críticos) analistas da vida americana: Richard Sennett, professor na Universidade de Nova York e na London School of Economics, e Todd Gitlin, que leciona na Universidade Colúmbia.
As entrevistas são de Christian Carvalho Cruz e estão publicadas no jornal O Estado de São Paulo, 09-10-2011.
Eis as esntrevistas.
Quem são as pessoas reunidas em Wall Street para protestar e o que elas querem?
Gitlin: O impulso veio dos leitores da revista alternativa canadense Adbusters, que enviou uma chamada inicial. Em 17 de setembro, um acampamento de manifestantes começou no Zuccotti Park, em Lower Manhattan. Desde então o número de participantes cresceu. O núcleo que começou os protestos é formado por anarquistas, gente da contracultura e gente que acredita na democracia direta. Mas os ataques brutais da polícia e as prisões intensificaram o espírito desafiador. Eles ganharam publicidade e conseguiram recrutar entusiastas. Grandes sindicatos e grupos comunitários se juntaram aos protestos, tornando-os mais bem organizados.
Sennett: Eu estive em Wall Street ontem (quarta-feira). O que me impressionou foi a mistura. Havia pessoas de classe média e da classe operária também. Isso é importante, porque nos Estados Unidos os protestos raramente incluem os trabalhadores. É importante notar, porém, que levamos três anos, desde que a crise financeira começou, para termos protestos desse tamanho no país. Os americanos não achavam que se tratasse de uma crise estrutural. Pensavam que era um fenômeno passageiro. Agora entenderam que se trata de uma crise do capitalismo, por isso os protestos emergiram e cresceram. Fomos tão ricos por tanto tempo que ficou difícil acreditar que poderíamos sofrer um golpe duro em nosso modo de vida. Culpa do nosso longo período como potência hegemônica. Por muito tempo houve uma paralisia na classe média. Nada aconteceu nos salários. Mesmo assim as pessoas continuaram a acreditar, por ideologia, que a ascensão social era possível, que cedo ou tarde escapariam da estagnação. Muitos americanos tentaram escapar tomando dinheiro emprestado nos bancos. Obviamente, não é possível construir um caminho de ascensão social por meio de empréstimos. Está claro agora, particularmente para os jovens, que eles não viverão o sonho americano, não haverá ascensão para eles.
Essas pessoas têm um desejo amplo de justiça social, se preocupam com os rumos do restante do mundo, ou saíram à rua porque a crise financeira as atingiu em cheio?
Gitlin: Elas compartilham uma forte rejeição à plutocracia que há décadas se instalou no comando da política econômica americana. Essa rejeição foi reforçada pelo estouro da bolha imobiliária, pelos despejos, o desemprego, o crescimento da desigualdade e a impunidade dos grandes financistas. Alguns dos que se juntaram aos protestos em Nova York são desempregados, marginalizados, mas o círculo de apoio é bem maior. O público em geral apoia suas preocupações e, segundo as pesquisas, aprova o aumento dos impostos dos ricos em favor de atividades geradoras de emprego. Essa não é uma preocupação só da esquerda. É o sentimento dominante nos Estados Unidos atualmente.
Sennett: O curioso é que os americanos não são bons em organizar movimentos sociais. Quero dizer, a esquerda não é. A direita é ótima: o Tea Party é muito bem organizado e sustentado. A esquerda tende a ligar os movimentos sociais a suas vitórias eleitorais, mas, quando não ela consegue vencer, eles se desmancham.
E as tentativas de desmoralizar o movimento? Gente dizendo: ‘Os manifestantes são todos brancos de classe média que convocaram os protestos usando seus iPhones reluzentes’ ou ‘Eles nem têm objetivos definidos ou propostas claras’.
Gitlin: As queixas sobre a vagueza dos protestos são justificadas, e até compartilhadas pela esquerda. Claro que a mídia direitista fez escárnio disso. Mas, por causa da afluência dos sindicatos, o momento mudou em favor daqueles manifestantes que gostariam de trabalhar com propostas mais claras, como a tributação progressiva. Com isso, a direita vai continuar tentando desmoralizar o movimento, só que a direção dos ataques deve mudar. A carga não será mais sobre a imprecisão dos objetivos ou o “riponguismo” dos manifestantes, mas sobre o esquerdismo deles.
Sennett: Pode ser que as tentativas de desmoralizar o movimento se tornem até maiores. Em vez de minimizar os motivos dos manifestantes, as pessoas que querem desacreditá-los passarão a dizer que é impossível fazer alguma coisa, “para que se incomodar?” Acho que isso pode funcionar.
Entre os manifestantes há um grupo de enfermeiras pedindo a criação de um imposto sobre operações financeiras “destinado a reconstruir a vida do cidadão comum duramente afetada pela crise dos mercados”. Algo assim pode acontecer nos EUA?
Gitlin: A ideia é excelente, mas um imposto assim não passaria no Congresso neste momento. Em um ano, quem sabe, a atmosfera política esteja mais propícia.
Sennett: Em termos abstratos, os americanos podem até exigir menos governo e acreditar piamente nessa doutrina neoliberal. Mas quando são confrontados com a falta de policiais, enfermeiras e professores, se sentem ultrajados. Há um vácuo entre a ideologia e a realidade de precisar de um Estado de bem-estar social. Taxar o sistema financeiro é o único plano prático para conseguir restringi-lo – desacelera-se o capitalismo financeiro tornando-o mais caro. Os banqueiros odeiam disso.
Qual a chance de os gritos lançados em Wall Street ecoarem em Washington?
Sennett: Zero.
Gitlin – Em sua conferência de imprensa na manhã de quinta-feira, o presidente Obama pisou em ovos ao tratar do movimento. E estou certo de que os membros mais conservadores do governo o aconselham a manter distância. Seu chefe de gabinete, William Daley, por exemplo, que é um ex-banqueiro do JPMorgan Chase, disse: “Eu não sei se (o movimento) é útil. Eu não caracterizaria dessa forma”. Como os protestos cresceram, mais congressistas democratas deverão apoiar o imposto progressivo. Mas, dada a absoluta oposição republicana, não acho que algo concreto possa ser feito. Pelo menos não sob a atual configuração política.
Ben Bernanke, presidente do Banco Central americano, disse que entende os manifestantes. O que isso significa?
Sennett: O mesmo: zero.
Gitlin: Isso não tem nenhuma importância concreta, mas sugere que Bernanke entende que um monte de gente está com raiva das políticas do Banco Central.
Há pontos comuns entre os manifestantes de Wall Street e os do Cairo, Atenas, Londres, Santiago e Madri?
Gitlin: Há um sentimento crescente em todo o mundo de que a classe política não conseguiu resistir às depredações da plutocracia. O colapso do comunismo e a fraqueza da democracia social arrasaram a imaginação da esquerda. Os movimentos de tons anárquicos como o Ocupar Wall Street podem ser valiosos, na medida em que funcionam como faíscas. Mas eles não geram alternativas sérias ao modo de vida predominante. A maioria dos americanos quer ser da classe média, e está irritada porque está sendo excluída pela plutocracia. Eles não querem uma alternativa ao consumismo – eles querem ser os consumidores! O futuro da esquerda reside na sua capacidade de mostrar às pessoas comuns que elas podem viver decentemente em um mundo menos envenenado.
Sennett: Os movimentos em Atenas são liderados por pessoas mais velhas que estão realmente perdendo pensões ou emprego. Em Wall Street, são trabalhadores e estudantes bastante jovens protestando pelo futuro. Mas há um aspecto que une essas manifestações. Todo mundo que não é rico entendeu que o capitalismo financeiro é destrutivo para a sociedade. Algumas versões do capitalismo não são, mas o capitalismo movido pelos mercados destrói a vida de pessoas comuns. Temos o capitalismo financeiro desde os anos 80 e agora nasce uma grande revolta contra suas consequências terríveis. Se você precisa ser um capitalista, essa é a pior maneira de sê-lo, pois o sistema financeiro se torna a base da riqueza da sociedade. É um desastre. No Brasil vocês já tiveram uma discussão sobre esse tipo de capitalismo movido por bancos?
Eu acho que não. Depois do forte crescimento econômico dos últimos anos, nós ainda estamos nos empanturrando com a possibilidade de consumir.
Sennett: É… Quando se pode consumir os problemas ficam esquecidos, guardados. Enquanto isso a Europa e os Estados Unidos estão em decadência…
Nos Estados Unidos a indignação se torna maior porque vem acompanhada de uma frustração com Obama? Como isso deve se refletir nas eleições de 2012?
Gitlin: O movimento atual é composto de pessoas desiludidas com o presidente Obama e cansadas de lhe dar o benefício da dúvida. Propostas de maior tributação para quem ganha mais são populares. Obama estará cometendo um grande erro se não continuar se movendo em uma direção progressista. Ele precisará da energia dos progressistas em 2012. Se não encoraja-los, pode perder a eleição.
Sennett: O mundo teve uma percepção errada do Obama, achou que se tratava de um reformista. Ele tem o desejo de reformar os vícios sociais americanos, mas não os vícios econômicos. As pessoas olharam para a cor da pele dele e tiveram uma leitura errada de quem ele é. Pensaram que, por ser negro, era de esquerda. Mas se esqueceram de sua classe: Obama é uma pessoa de classe média alta, vem da classe dos privilegiados. Sua política reflete isso. Tem coisas que eu gosto nele. Por exemplo, o fato de este ser um governo livre de corrupção. Completamente. O governo Bush foi muito corrupto, particularmente na defesa. Obama mudou isso. Ele também é um meritocrata, só recruta pessoas de muita qualidade para trabalhar no governo. Minha grande divergência com Obama é que, por causa da sua classe social, ele foi muito complacente na área econômica. Acreditou que se os mercados fossem restaurados a sociedade sairia da crise. Ingenuidade. Ele nunca poderia imaginar que aquela sociedade e aquela economia nas quais cresceu poderiam ter defeitos fundamentais de estrutura. Provavelmente será reeleito, por falta de opções, mas a crise estrutural é tão profunda que os americanos ainda estarão vivendo com enormes taxas de desemprego e desigualdade daqui a sete anos. A crise se enraizou no american way of life. Nenhuma medida simples será capaz de arrancar essa erva daninha. Apesar de muita gente mais à esquerda tê-lo aconselhado a agir de maneira diferente, Obama não deu ouvido, pois tinha fé no sistema pelo qual foi privilegiado a vida toda. O que ele provou com a sua falta de ação nos primeiros anos de governo e de crise é que nós seremos como os japoneses: eles não fizeram nada nos anos 90 e levaram quase 20 anos para se recuperar. Estamos numa situação similar, demos início a nossa década perdida. As intenções de Obama são boas. Ele não é um vilão, mas está fora de sintonia. É uma figura trágica e uma tragédia para os Estados Unidos.