Neoliberalismo – a ideologia que está nas raízes de todos os nossos problemas

Ronald Reagan and Margaret Thatcher. abcnews. Ron Edmonds/AP Photo

https://www.theguardian.com/books/2016/apr/15/neoliberalism-ideology-problem-george-monbiot

Colapso financeiro, desastre ambiental e mesmo a ascenção de Donald Trump – o neoliberalismo desempenhou seu papel em parte de todas estas realidades. Por que a esquerda falhou em trazer uma alternativa?

George Monbiot

Imaginemos como se o povo da União Soviética jamais tivesse ouvido falar sobre comunismo. A ideologia que domina nossas vidas, para a maioria de nós, não tem um nome. Mencionemos isso em uma conversação e ganharemos somente um encolher de ombros. Mesmo que os nossos ouvintes tenham ouvido este termo antes, terão dificuldades de defini-lo. Neoliberalismo: será que sabemos o que significa esta expressão?

Seu anonimato é sintoma e causa de seu poder. Ele desempenhou um papel importante em uma notável variedade de crises: no colapso financeiro de 2007‑8 (financial meltdown); na terceirização da riqueza e do poder, dos quais os Documentos do Panamá (Panama Papers) nos oferecem apenas um vislumbre; no lento colapso da saúde e da educação públicas; na ressurgente pobreza da infância; na epidemia de solidão (the epidemic of loneliness); no colapso dos ecossistemas; e também, na ascensão de Donald Trump (Donald Trump). Mas respondemos a essas crises como se elas emergissem isoladas, aparentemente inconscientes de que todas foram catalisadas ou exacerbadas pela mesma filosofia coerente; uma filosofia que tem – ou teve – um nome. Que poder maior pode haver do que ela operar sem ter nome?

A desigualdade é reformulada sendo vista como virtuosa. O mercado asseguraria de que todos tenham aquilo que são merecedores.

Estamos tratando então da visão sobre a chamado neoliberalismo que se torna tão invasivo que nós raramente até o reconhecemos como uma ideologia. Parece que aceitamos a proposição de que esta fé utópica e milenar, faz uma narrativa de uma força neutra; de um tipo de lei biológica, sendo do mesmo tipo que a teoria da evolução de Darwin. Mas a filosofia surgiu como uma tentativa consciente para remodelar a vida humana e alterar o locus do poder.

O neoliberalismo vê a competição como uma característica definidora das relações humanas. Redefine os cidadãos como consumidores cujas escolhas democráticas são melhores exercidas pelo ato da compra e da venda, um processo que recompensa o mérito e pune a ineficiência. Ela afirma que “o mercado” oferece benefícios que nunca poderiam ser alcançados pelo planejamento centralizado.

Tentativas de limitar a competitividade são tratadas como inimigas da liberdade. Os impostos e a regulamentação devem ser minimizados, os serviços públicos privatizados. A organização do trabalho e a negociação coletiva dos sindicatos (trade unions) são retratadas como distorções do mercado que impedem a formação de uma hierarquia natural de vencedores e perdedores. A desigualdade é reformulada como virtuosa: uma recompensa pela utilidade e um gerador de riqueza, que escorre para enriquecer a todos. Os esforços para criar uma sociedade mais igualitária são ao mesmo tempo contraproducentes e moralmente corrosivos. O mercado garante que todos obtenham o que merecem.

Internalizamos e reproduzimos estas crenças. Os ricos se auto persuadiram (the rich persuade themselves) de que eles adquiriram suas riquezas através do mérito (nt.: também conhecido nos últimos anos como um modelo da meritocracia), ignorando as desvantagens – tais como educação, heranças e classe social – que podem auxiliar a protegê-las. Os pobres começam a se auto responsabilizar por seus fracassos, mesmo quando eles pouco podem fazer para mudarem suas realidades.

Não importa o desemprego estrutural: se não se tem emprego, é porque não se é um empreendedor. Não importa os custos impossíveis de moradia: se o cartão de crédito estiver esgotado, você é impotente e negligente. Não importa que os filhos não tenham mais condições de brincar na escola: se engordarem, a culpa é de serem relapsos. Em um mundo governado pela competitividade, aqueles que ficam para trás se definem e se auto qualificam como perdedores.

 O neoliberalismo destacou o pior em cada um de nós

Paul Verhaeghe 

Entre os resultados, como Paul Verhaeghe ressalta em seu livro ‘What About Me?‘, estão as epidemias de auto mutilação, de desordens alimentares, depressão, solidão, ansiedade de desempenho e fobia social. Talvez  não seja surpreendente que a Inglaterra, na qual a ideologia neoliberal tenha sido aplicada com maior rigor, seja a capital da solidão na Europa (the loneliness capital of Europe). Somos todos neoliberais agora.

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O termo neoliberalismo foi cunhado em uma reunião em Paris em 1938. Entre os delegados estavam dois homens que vieram a definir a ideologia, Ludwig von Mises e Friedrich Hayek. Ambos exilados da Áustria viram a social-democracia, exemplificada pelo New Deal de Franklin Roosevelt, e o desenvolvimento gradual do estado de bem-estar da Grã-Bretanha, como manifestações de um coletivismo que ocupava o mesmo espectro que o nazismo e o comunismo.

No livro Road to Serfdom (nt.: ‘O caminho da servidão’), publicado em 1944, o autor Friedrich Hayek argumentou de que o planejamento governamental, pelo esmagamento do individualismo, poderia levar inexoravelmente ao controle totalitário. Como o livro de Ludwig von Mises, Bureaucracy, the Road to Serfdom (nt.: Burocracia, o caminho para a servidão), foi amplamente lido. Chegou ao conhecimento de algumas pessoas muito ricas, que viam na filosofia uma oportunidade de uma auto libertação tanto da regulamentação como dos impostos. Quando, em 1947, Hayek fundou a primeira organização que divulgaria a doutrina do neoliberalismo – a Sociedade Mont Pelerin (Mont Pelerin Society)–, foi apoiada financeiramente tanto por milionários como por suas fundações.

Com esta ajuda, começa a criar o que Daniel Stedman Jones descreve em Masters of the Universe como “uma espécie de internacional neoliberal”: uma rede transatlântica de acadêmicos, empresários, jornalistas e ativistas. Os ricos apoiadores do movimento financiaram uma série de grupos de reflexão (series of thinktanks) que refinariam e promoveriam a ideologia. Entre eles estavam o American Enterprise Institute (American Enterprise Institute), a Heritage Foundation (Heritage Foundation), o Cato Institute (Cato Institute), o Institute of Economic Affairs (Institute of Economic Affairs), o Center for Policy Studies (Centre for Policy Studies) e o Adam Smith Institute (Adam Smith Institute). Eles também financiaram cargos e departamentos acadêmicos, particularmente nas universidades de Chicago e Virginia

À medida que evoluiu, o neoliberalismo se tornou mais ruidoso. A visão de Hayek de que os governos deveriam regulamentar a competição para impedir a formação de monopólios cedeu – entre apóstolos americanos como Milton Friedman (Milton Friedman) – à crença de que o poder de monopólio poderia ser visto como uma recompensa pela eficiência.

Algo mais aconteceu durante essa transição: o movimento perdeu o nome. Em 1951, Friedman ficou feliz em se descrever como um neoliberal (describe himself as a neoliberal). Mas logo depois disso, o termo começou a desaparecer. Ainda mais estranho, mesmo quando a ideologia se tornou mais nítida e o movimento mais coerente, o nome perdido não foi substituído por nenhuma alternativa comum.

A princípio, apesar de seu generoso financiamento, o neoliberalismo permaneceu à margem. O consenso do pós-guerra era quase universal: as prescrições econômicas de John Maynard Keynes (John Maynard Keynes) foram amplamente aplicadas, o pleno emprego e o alívio da pobreza eram objetivos comuns nos EUA e em grande parte da Europa Ocidental, as altas taxas de impostos eram elevadas e os governos buscavam resultados sociais sem constrangimento, desenvolvendo novos serviços públicos e redes de segurança.

Mas na década de 1970, quando as políticas keynesianas começaram a desmoronar e as crises econômicas atingiram os dois lados do Atlântico, as idéias neoliberais começaram a entrar no mundo corrente. Como observou Friedman, “quando chegou a hora de mudar, havia uma alternativa pronta para ser buscada”. Com a ajuda de jornalistas simpáticos à esta visão, bem como consultores políticos, elementos do neoliberalismo, especialmente suas prescrições para política monetária, foram adotados pelo governo de Jimmy Carter nos EUA e pelo governo de Jim Callaghan na Grã-Bretanha.

Pode parecer estranho que uma escolha de um doutrina promissora pode ter sido promovida com o slogan ‘não há alternativa’

Depois que Margaret Thatcher e Ronald Reagan assumiram o poder, o restante do pacote logo se seguiu: cortes maciços de impostos para os ricos, esmagamento dos sindicatos, desregulamentação, privatização, terceirização e concorrência em serviços públicos. Por meio do FMI, do Banco Mundial, do Tratado de Maastricht e da Organização Mundial do Comércio, políticas neoliberais foram impostas – muitas vezes sem consentimento democrático – em grande parte do mundo. O mais notável foi sua adoção entre partidos que pertenceriam à esquerda: trabalhista e democratas, por exemplo. Como observa Stedman Jones, “é difícil pensar em outra utopia que tenha sido tão plenamente realizada”.

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Mas, como Hayek observou (as Hayek remarked) em uma visita ao Chile de Pinochet – uma das primeiras nações em que o programa foi aplicado de forma abrangente – “minha preferência pessoal se refere a uma ditadura liberal e não a um governo democrático sem liberalismo”. A liberdade que o neoliberalismo oferece, que soa tão sedutora quando expressa em termos gerais, acaba por significar liberdade para peixe grande não para o pequeno.

Liberdade de sindicatos e negociação coletiva significa liberdade para suprimir salários. Liberdade de regulamentação significa a liberdade de envenenar rios (freedom to poison rivers), pôr em risco os trabalhadores, cobrar taxas de juros perversos e projetar instrumentos financeiros exóticos. Liberdade de tributação significa liberdade de distribuição de riqueza que tira as pessoas da pobreza.

Naomi Klein
 Naomi Klein documentou que os neoliberais advogavam o uso de crises para impor políticas impopulares enquanto a população estava distraída. Photograph: Anya Chibis/The Guardian

A jornalista canadense Naomi Klein documenta em seu livro, The Shock Doctrine, de que os teóricos neoliberais defendiam o uso de crises para imporem políticas impopulares enquanto as pessoas se dispersavam: por exemplo, após o golpe de estado no Chile, comandado pelo ditador chileno Augusto Pinochet, a implantação pela guerra do Iraque e pelo furacão Katrina, permitiram a Milton Friedman descrever este momento como “uma oportunidade para reforma radical do sistema educacional” em Nova Orleans (New Orleans).

Onde as políticas neoliberais não puderam ser impostas internamente, foram por meios internacionais através de tratados comerciais que incorporam “solução controversas entre investidores e estados” (investor-state dispute settlement): tribunais ‘offshore‘ nos quais as empresas podiam pressionar pela remoção de proteções sociais e ambientais. Quando os parlamentos votaram para restringir as vendas de cigarros (cigarettes), proteger o suprimento de água das empresas de mineração, congelar as contas de energia ou impedir que as empresas farmacêuticas roubassem o estado, as empresas processaram, muitas vezes com sucesso. A democracia é reduzida a um teatro.

O neoliberalismo não foi concebido como um alavancador por si mesmo, mas rapidamente tornou-se como se fosse

Outro paradoxo do neoliberalismo é que a competição universal depende de quantificação e comparação universal. O resultado é que trabalhadores, candidatos a emprego e serviços públicos de todos os tipos estão sujeitos a um regime de avaliação e monitoramento restritivo e sufocante, destinado a identificar os vencedores e punir os perdedores. A doutrina que Von Mises propôs nos libertaria do pesadelo burocrático do planejamento central por ele criado.

O crescimento econômico foi marcadamente mais lento na era neoliberal (desde 1980 na Grã-Bretanha e nos EUA) do que nas décadas anteriores; mas não para os muito ricos. A desigualdade na distribuição de renda e riqueza, após 60 anos de declínio, aumentou rapidamente nesta época, devido ao esmagamento de sindicatos, reduções de impostos, aumento de aluguéis, privatização e desregulamentação.

A privatização ou comercialização de serviços públicos, como energia, água, trens, saúde, educação, estradas e prisões, permitiu que as empresas montassem pedágios ante ativos essenciais e cobrassem aluguel, aos cidadãos ou ao governo, pelo seu uso. O aluguel é outro termo para a renda não adquirida. Quando se paga um preço inflado por uma passagem de trem, apenas parte da tarifa compensa os operadores pelo dinheiro gasto em combustível, salários, material circulante e outros gastos. O resto reflete o fato de que se tem um gasto a mais.

Carlos Slim
No México, Carlos Slim recebeu a concessão de quase todos os serviços telefônicos e logo se tornou o homem mais rico do mundo. Photograph: Henry Romero/Reuters

Quem possui e administra os serviços privatizados ou semi-privatizados do Reino Unido, obtém fortunas estupendas investindo pouco e cobrando muito. Na Rússia e na Índia, os oligarcas adquiriram ativos estatais por meio de liquidações. No México, Carlos Slim (Carlos Slim) recebeu o controle de quase todos os serviços de telefonia fixa e celular e logo se tornou o homem mais rico do mundo.

A financeirização, como observa Andrew Sayer em ‘Porque não podemos pagar pelos ricos‘, teve um impacto semelhante. “Como o aluguel”, ele argumenta, “o juro é … a renda não obtida que é acumulada sem nenhum esforço”. À medida que os pobres se tornam mais pobres e os ricos mais ricos, estes adquirem um crescente controle sobre outro ativo crucial: o dinheiro. O pagamento de juros, predominantemente, é uma transferência de dinheiro dos pobres para os ricos. À medida que os preços dos imóveis e a retirada de financiamento do estado acabam recaindo sobre as pessoas (pensemos na alteração das bolsas de estudo para empréstimos a estudantes), os bancos e seus executivos lucram.

Sayer argumenta de que as últimas quatro décadas caracterizaram-se por uma transferência de riqueza não apenas dos pobres para os ricos, mas dentro do âmago dos próprios ricos: daqueles que ganham dinheiro produzindo novos bens ou serviços para aqueles que ganham dinheiro controlando os ativos existentes e coletaram alugueis, juros ou ganhos de capital. Os rendimentos auferidos foram suplantados pelos rendimentos não adquiridos ou especulativos.

As políticas neoliberais estão em toda parte assoladas pelos fracassos do mercado. Não são apenas os bancos grandes demais para falir, mas também as empresas agora encarregadas de prestar serviços públicos. Como Tony Judt apontou em Ill Fares the Land (nt.: ‘O Mal Ronda da Terra‘), Hayek esqueceu de que os serviços vitais nacionais não podem entrar em colapso, o que significa que a competição não pode ser colocada em curso. As empresas assumem os lucros, o estado mantém o risco.

Quanto maior o fracasso, mais extrema a ideologia se torna. Os governos usam as crises do neoliberalismo tanto como desculpa como oportunidade para cortar impostos, privatizar os serviços públicos que restaram, bem como abrirem fossos na rede de segurança social, além de desregulamentarem as corporações e recalcarem as regras sobre os cidadãos. O estado de ódio agora crava seus dentes em todos os órgãos do setor público .

Talvez o impacto mais perigoso do neoliberalismo não seja a crise econômica que gerou, mas sim a política. À medida que o domínio do estado é reduzido, nossa capacidade de mudar o curso de nossas vidas, através do voto, também se contrai. Em vez disso, afirma a teoria neoliberal, as pessoas podem exercer sua escolha por meio de seus gastos de consumo. Mas alguns têm mais para gastar do que outros: na grande democracia de consumidores ou acionistas, os votos não são igualmente distribuídos. O resultado é um desempoderamento dos pobres e do meio. Como os partidos da direita e da antiga esquerda (former left) vêm adotando políticas neoliberais semelhantes, o desempoderamento se transforma em privação de direitos. Um grande número de pessoas foi excluída da vida política.

Donald Trump
 Slogans, símbolos e sensações … Donald Trump. Photograph: Aaron Josefczyk/Reuters

Chris Hedges observa (remarks) que “os movimentos fascistas constroem sua base não com os politicamente ativos, mas os politicamente inativos, dos ‘perdedores’ que sentem, freqüentemente de forma correta, que não têm voz ou papel a desempenhar no establishment político”. Quando o debate político não fala mais conosco, respondemos mais a slogans, símbolos e sensações (instead to slogans, symbols and sensation). Para os admiradores de Trump, por exemplo, fatos e argumentos parecem irrelevantes.

Judt explicou que, quando a espessa malha de interações entre as pessoas e o estado é reduzida a nada além da autoridade e da obediência, a única força restante que nos une é o poder do estado. O totalitarismo que Hayek temia é mais provável que surja quando os governos, perdendo a autoridade moral que resulta da prestação de serviços públicos, são reduzidos a “persuadir, ameaçar e, finalmente, coagir as pessoas a obedecê-los”.

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Como o comunismo, o neoliberalismo é o Deus que falhou. Mas a doutrina dos zumbis permanece, e uma das razões é o seu anonimato. Ou melhor, um aglomerado de anonimatos.

A doutrina invisível da mão invisível é promovida pelos investidores invisíveis. Lentamente, mas muito lentamente, nós começamos a descobrir os nomes de somente alguns deles. Descobrimos que o Institure of Economic Affairs (nt.: Instituto de Assuntos Econômicos) que argumentou fortemente na mídia contra a regulamentação adicional da indústria do tabaco, havia sido secretamente apoiada economicamente (has been secretly funded) pela Britsh American Tobacco (nt.: no Brasil conhecida como Companhia de Cigarros Souza Cruz) desde 1963. Descobrimos também que Charles e David Koch (Charles and David Koch), irmãos e dois dos homens mais ricos do mundo, financiaram o instituto que criou o movimento The Tea Party (Tea Party movement). Detectamos de que Charles Koch, na criação de um dos seus ‘thinktanks‘, observou que (noted that) “para evitar críticas indesejáveis, de como a organização é dirigida e controlada, não devemos de maneira nenhuma fazer qualquer divulgação”.

O ‘nouveau riche’ já foi desprezado por aqueles que herdaram seu dinheiro. Hoje a relação foi revertida

As palavras usadas pelo neoliberalismo muitas vezes escondem mais do que mostram. “O mercado” soa como um sistema natural que pode nos nutrir todos igualmente, como a gravidade ou a pressão atmosférica. Mas está prenhe de relações de poder. O que “o mercado quer” tende a significar, na verdade, é o que as empresas e seus chefes querem. “Investimento”, como observa Sayer, significa duas coisas bem diferentes. Uma é o financiamento de atividades produtivas e socialmente úteis, a outra é a compra de ativos existentes para ordenhá-los para aluguel, juros, dividendos e ganhos de capital. Usar a mesma palavra para diferentes atividades “camufla as fontes de riqueza”, levando-nos a confundir extração de riqueza com criação de riqueza.

Há um século, o chamado ‘nouveau riche‘ era desprezado por aqueles que herdaram seu dinheiro. Os empreendedores buscavam a aceitação social, passando por investidores. Hoje, o relacionamento vem sendo revertido: os investidores e os herdeiros se classificam como empreendedores. Afirmam ter merecido seus lucros especulativos.

Estes anonimatos e confusões enredam-se com a falta de nomes e pela ausência de locus do capitalismo moderno: o modelo de concessão que garanta que os trabalhadores não saibam para quem trabalham (do not know for whom they toil); as empresas registradas por meio de uma rede de regimes de sigilo velados tão complexos que nem a polícia consegue descobrir os proprietários beneficiários (even the police cannot discover the beneficial owners); acordos tributários que enganam os governos; produtos financeiros que ninguém entende.

O anonimato do neoliberalismo é ferozmente guardado. Aqueles que são influenciados por Hayek, von Mises e Friedman tendem a rejeitar o termo, mantendo – com alguma justiça – que ele é usado hoje apenas pejorativamente (only pejoratively). Mas eles não nos oferecem substituto. Alguns se descrevem como liberais clássicos ou libertários, mas estas descrições são enganosas e curiosamente egoístas, pois sugerem que não há nada novo sobre The Road to Servfdom (nt.: trabalho de Hayes, acima citado), Bureaucracy (nt.: de von Mises, também citado acima) ou o trabalho clássico de Friedman, Capitalism and Freedom.

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Por tudo isso, há algo admirável no projeto neoliberal, pelo menos em seus estágios iniciais. Era uma filosofia distinta e inovadora promovida por uma rede coerente de pensadores e ativistas com um plano de ação claro. Foi paciente e persistente. O livro ‘ The Road to Serfdom‘ tornou-se a trilha para o poder.

O triunfo do neoliberalismo também reflete o fracasso da esquerda. Quando a economia do laissez-faire levou à catástrofe em 1929, Keynes desenvolveu uma teoria econômica abrangente para substituí-la. Quando o gerenciamento da demanda keynesiana começou a fraquejar nos anos 70, havia uma alternativa pronta. Mas quando o neoliberalismo se desfez em 2008, não havia … nada. É por isso que o zumbi ainda perambula por aí. Tanto a esquerda como o centro não produzem nenhuma nova estrutura geral de pensamento econômico há 80 anos.

Toda invocação de Lorde Keynes é uma admissão de fracasso. Propor soluções keynesianas para as crises do século XXI é ignorar três problemas óbvios. É difícil mobilizar as pessoas em torno de idéias antigas; as falhas expostas nos anos 70 não desapareceram; e, o mais importante, elas não têm nada a dizer sobre nossa situação mais grave: a crise ambiental. O keynesianismo funciona estimulando a demanda do consumidor para promover o crescimento econômico. A demanda do consumidor e o crescimento econômico são os motores da destruição ambiental.

O que a história tanto do keynesianismo como do neoliberalismo mostra que não basta se opor a um sistema quebrado. Uma alternativa coerente deve ser proposta. Para os que são dos partidos ingleses Labour, Democrats e para os esquerdistas em geral, a tarefa central deve ser o desenvolvimento de um programa econômico de alta estipe, ou seja, uma tentativa consciente de projetar um novo sistema, adaptado às demandas do século XXI.

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Tradução livre de Luiz Jacques Saldanha, setembro de 2019.