Mercúrio preocupa comunidade Yanomami. Outro crime étnico! Elevados níveis de contaminação atinge comunidade desta população autóctone.
Além de provocar inúmeros danos ambientais, a presença do garimpo na Terra Indígena Yanomami traz graves consequências à saúde daquela população. Estudo inédito conduzido pela Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, da Fiocruz, com apoio do Instituto Socioambiental (ISA), do Laboratório de Química da PUC e da Hutukara Associação Yanomami (HAY), divulgado no final do mês de março, constatou elevado nível de
mercúrio (Hg) nos povos da TI Yanomami. A contaminação chegou a afetar todos os adultos examinados em uma das regiões analisadas.
O resultado da avaliação das amostras de cabelo de 239 indígenas, de 19 aldeias, gerou o relatório Avaliação da exposição ambiental ao mercúrio proveniente de atividade garimpeira de ouro na Terra Indígena Yanomami, Roraima, Amazônia, Brasil, apresentado em primeira mão à comunidade indígena no dia 3 de março de 2016, e entregue, em seguida, ao poder público, especificamente às Presidências da Funai e do Ibama, ao coordenador da Secretaria Especial de Saúde Indígena, ao Ministério Público Federal e à relatora especial sobre Direitos Indígenas da ONU, Victoria Tauli-Corpuz, que estava em visita ao Brasil.
O estudo foi realizado nas regiões de Papiú e Waikás, onde residem as etnias Yanomami e Ye’kwana, e a coleta priorizou os grupos mais vulneráveis à contaminação: crianças, mulheres em idade reprodutiva e adultos com algum histórico de contato direto com a atividade garimpeira. Também foram examinadas 35 amostras de peixes que são parte fundamental da dieta alimentar desses índios.
O garimpo ameaça a vida dos Yanomami e Ye’kwana desde a década de 1980. A invasão dos territórios por garimpeiros cresceu assustadoramente a partir de 2014. Hoje, estima-se que cinco mil garimpeiros atuam ilegalmente na Terra Indígena Yanomami, e os próprios indígenas promoveram uma série de denúncias da ocupação ilegal.
Coordenador da pesquisa, Paulo Basta concedeu entrevista ao Informe ENSP e destacou, além dos principais resultados, a importância do retorno dos dados da pesquisa ao povo Yanomami detalhando a reação deles diante da informação a respeito dos elevados níveis de contaminação. “Realizamos uma pesquisa que foi motivada por demanda da própria comunidade, e nossa principal missão foi devolver resultados conclusivos a eles”, enfatizou o pesquisador. As pesquisadoras Sandra Hacon (vice-coordenadora) e Claudia Vega, da ENSP, também integraram a equipe do estudo. Confira a entrevista.
Informe ENSP: Em outubro de 2015, o Informe ENSP noticiou o desenvolvimento da pesquisa que avaliou a contaminação ambiental e humana por mercúrio nas Terras Indígenas Yanomami. Naquela ocasião, a equipe de pesquisadores afirmou que os resultados do estudo seriam devolvidos à comunidade indígena. Já se sabe que as análises apontaram elevados níveis de contaminação na população daquela região, mas como os próprios indígenas receberam essa informação?
Paulo Basta: Antes da apresentação do relatório às instâncias do poder público, Marcos Wesley de Oliveira (ISA) e Claudia Maribel Vega Ruiz (ENSP) estiveram nas aldeias para apresentar os principais resultados à comunidade. Além de promovermos palestras com o propósito de divulgar os resultados e entregar laudos individuais aos participantes, preparamos banners e materiais informativos que foram traduzidos para a língua nativa deles, Yanomami e Ye’kwana, para total compreensão dos principais achados.
A presença do garimpo na região, lamentavelmente, perpetua-se desde a década de 1980, fato que causa inúmeros transtornos à população. Os indígenas tinham conhecimento acerca do despejo de mercúrio nos rios, da poluição das águas e do ambiente, mas esse assunto era difuso, pois os indígenas não dispunham de informações concretas. Ao chegarmos com os resultados e apresentarmos os laudos individuais que demonstravam elevados níveis de contaminação, pela primeira vez, a comunidade teve evidências da contaminação e despertou para o problema.
Pode-se dizer que foi uma experiência transformadora, porque os Yanomami receberam uma prova concreta de que a contaminação não estava apenas na água e no ambiente, mas sim que havia chegado às pessoas por meio da alimentação, do consumo de peixes contaminados. Houve um movimento de conscientização, e eles mesmos se municiaram de ferramentas para reivindicar a desintrusão da reserva e a retirada do garimpo. E, ainda, manifestaram a seguinte preocupação: E agora, como enfrentaremos o problema? Existe remédio para isso?
Informe ENSP: E há como enfrentar o problema da contaminação?
Paulo Basta: O mercúrio é um metal pesado altamente tóxico, e seus danos costumam ser graves e permanentes: pode causar alterações diretas no sistema nervoso central, gerando problemas de ordem cognitiva e motora, perda de visão; além de implicações renais, cardíacas, no sistema reprodutor – entre outras debilidades. Nas gestantes, os danos são ainda mais graves, pois o mercúrio atinge o feto, podendo causar mal formações, retardo no desenvolvimento, entre outras complicações que podem comprometer toda uma geração de indígenas.
Explicamos que não existe um tratamento padronizado, um medicamento que retire o mercúrio do organismo. Existem alguns quelantes que são agentes utilizados para capturar, transportar e/ou eliminar substâncias (principalmente metais) do organismo. Todavia, essas substâncias são usadaas em situações extremas, quando há contaminação aguda, com altos índices de mercúrio no organismo. Sua indicação principal é em situações de contaminação decorrente de exposição ocupacional. Ou seja, na queima do mercúrio pelos garimpeiros no momento da separação do ouro do amálgama. Na combustão, o mercúrio se volatiza e pode ser inalado e absorvido pelo organismo em altas doses. Não há recomendação de usar essas substâncias nas situações de contaminação crônica e arrastadas ao longo do tempo, assim como as detectadas em nosso estudo. Essas substâncias poderiam provocar efeitos adversos e ocasionar complicações. Isso foi cuidadosamente explicado à comunidade.
Nossas principais recomendações são a interrupção imediata da exposição por meio da retirada do garimpo da área e a avaliação clínico-neurológica dos indígenas que apresentaram os mais elevados níveis de contaminação por mercúrio.
Informe ENSP: Algum órgão regulador estabelece limite seguro para exposição ao Hg?
Paulo Basta: Não há limite seguro para exposição ao Hg. A Organização Mundial da Saúde (OMS) informa que níveis acima de 6 microgramas de mercúrio por grama de cabelo (μg.g-1 ) podem trazer sérias consequências à saúde, principalmente a grupos vulneráveis. Por sua vez, a agência de proteção ambiental norte-americana (EPA) assume uma posição mais conservadora e recomenda que não se ultrapasse o limite de 1 micrograma por mercúrio por grama de cabelo (μg.g-1 ). Em nossa pesquisa utilizamos o parâmetro da OMS como referência de contaminação.
Informe ENSP: Quais foram os principais resultados da pesquisa?
Paulo Basta: A equipe visitou 19 aldeias na TI Yanomami, sendo 15 na região de Paapiú e quatro na região de Waikás. Em Waikás, 3 aldeias era da etnia Ye’kwana e apenas uma era Yanomami, a aldeia Aracaça. Essas regiões foram selecionadas por indicação da Hutukara em razão da crescente invasão de garimpeiros. Ao todo, foram avaliados 239 indígenas no período de 16/11/2014 a 03/12/2014, e, após consentimento livre e esclarecido, foram coletadas amostras de cabelo de crianças e adultos, com enfoque em menores de 5 anos e mulheres em idade reprodutiva.
Observamos diferentes níveis de exposição ao Hg na comparação entre as duas regiões. Na região do Paapiú, a mediana foi 3,2 μg.g-1, enquanto na região de Waikás, foi 5,0 μg.g-1. Foram registradas concentrações alarmantes de mercúrio na aldeia de Aracaça, na região de Waikás, situada próximo à área de garimpo, onde a mediana foi 15,5 μg.g-1, sendo 6,8 μg.g-1 nas crianças menores de 5 anos e 16,0 μg.g-1 nas mulheres em idade reprodutiva.
Entre crianças menores de 5 anos, foram registradas prevalências de mercúrio no cabelo acima de 6 μg.g-1 de 4,9%, 25,0% e 66,6%, no Paapiú, entre os ye’kuana de Waikás e entre os Yanomami de Aracaça, respectivamente.
Já entre os adultos, a prevalência de níveis de mercúrio no cabelo maiores que nosso ponto de corte foi de 9,3% no Paapiú, 31,6% entre os Ye’kuana de Waikás e chegou a 100% entre os Yanomami de Aracaça. Nessa localidade, praticamente todos os indígenas adultos avaliados apresentaram níveis elevados de mercúrio no cabelo.
Os achados acima demonstram que os mais altos níveis de Hg foram encontrados na aldeia de Aracaça, no Polo Base de Waikás, onde havia grande número de balsas clandestinas de garimpo por ocasião da realização do trabalho de campo. Para ilustrar a situação, num trecho de aproximadamente 15 minutos sobrevoando a região, 47 balsas foram avistadas no entorno de Aracaça, que é uma aldeia isolada do conjunto das aldeias de Waikás e de dimensões geográficas e populacionais menores.
Informe ENSP: Além da interrupção imediata da atividade do garimpo, quais outras recomendações o estudo propõe?
Paulo Basta: O Brasil é um dos países signatários da Convenção de Minamata, e seu principal objetivo é proteger a saúde humana e o meio ambiente de emissões antropogênicas e da liberação de mercúrio e seus componentes na natureza. Diante disso, nossa recomendação é que as autoridades brasileiras cumpram os compromissos internacionais assumidos, assim como a legislação ambiental nacional, e façam a retirada imediata dos invasores da Terra Indígena Yanomami pela ameaça direta à saúde da população. Além disso, o trabalho sugere ações a serem realizadas no âmbito coletivo, individual e ambiental. Em relação a esse último, é necessário estabelecer um plano de monitoramento para identificar as principais fontes de exposição e aprofundar as análises nos corpos d’água a fim de produzir um mapa de risco para orientar a população.