Agência Nacional das Favelas/ANF, foto: Ramon Vellasco
30 Agosto 2021
Artigo de Eduardo Viveiros de Castro
“Os povos indígenas têm o direito de continuarem a ser indígenas, de continuarem a exprimir sua indigeneidade, exercendo os direitos originários que lhes são reconhecidos pela Constituição Federal de 1988″, afirma Eduardo Viveiros de Castro, professor titular de antropologia no Museu Nacional da UFRJ, em palestra proferida no II Encontro Virtual sobre Liberdade de Expressão, Seminário promovido pelo Conselho Nacional de Justiça com apoio da Comissão Arns, em 23 de agosto de 2021 e publicado originalmente no site da Editora n-1. A reprodução é do portal A Terra é Redonda, 29-08-2021.
Agência Nacional das Favelas/ANF, foto: Ramon Vellasco
Eis a conferência.
A questão da liberdade de expressão dos povos indígenas, para além das recentes e repugnantes iniciativas da FUNAI de atacar a liberdade de expressão de lideranças indígenas, diz respeito primeiro de tudo à liberdade dos povos indígenas de continuarem a ser indígenas, de continuarem a exprimir sua indigeneidade, exercendo os direitos originários que lhes são reconhecidos pela Constituição Federal de 1988 no caput do artigo 231.[i]
O nome da mobilização indígena que está acontecendo nestes dias em Brasília é eloquente.[ii] Pois se trata de fato de uma luta pela vida. Uma luta de resistência à verdadeira ofensiva final lançada contra os povos indígenas, que agora inclui a arma da pandemia, acionada pelo gatilho da incúria, da incompetência e – impossível não suspeitar – de um sinistro oportunismo genocida. Essa ofensiva tem múltiplos objetivos, desde o mais odiosamente supremacista, que é a consumação do projeto de extinção de todas as identidades coletivas infranacionais (ou supranacionais), em nome de uma homogeneização cultural e racial sob a tutela dos que se pretendem ser as encarnações da civilização ocidental, até o objetivo mais grosseiramente ganancioso, que é a redução da máxima extensão possível de terras públicas do país – de todos os bens públicos, de fato – com vistas a uma privatização idealmente integral do território nacional e de seus “recursos”, e aparentemente de todas as funções e deveres do Estado. Nada mais será público na república.
A Constituição Federal decerto não é perfeita (penso na porta deixada aberta pelo art. 142 a um golpe militar “constitucional”), mas representou um avanço histórico inédito e gigantesco no que concerne à garantia de direitos coletivos, como se constata na leitura do Título VII (Da Ordem Social), do qual cada um dos oito capítulos é hoje alvo de um processo de destruição sistemática por parte das forças no poder: a saúde; a previdência; a educação; a cultura; a ciência; o meio ambiente; e, por fim (sempre por fim), os povos indígenas.
A história dos últimos trinta anos foi marcada ao mesmo tempo pela efetivação das conquistas trazidas pela CF, que literalmente mudou o rosto do país, e pela determinação maligna e rancorosa, manifesta pela larga fração predatória da elite nacional e por diversas iniciativas na esfera dos Três Poderes, em neutralizar, reverter e liquidar tais conquistas. Essas iniciativas atingem hoje um máximo de intensidade, e uma licença governamental (mais que isso, um incentivo) parece ter sido concedida para invadir, devastar, matar ou deixar morrer a população indígena – e não só ela. O Haiti é aqui, como cantou Caetano Veloso. Eu acrescentaria: para os povos indígenas, a Faixa de Gaza também é aqui. Ou pior.
A campanha para desmontar os artigos mais progressistas da Constituição, na verdade, começou antes de sua promulgação. Em 1987, o jornal O Estado de São Paulo publicou durante uma semana reportagens de capa, com grandes manchetes caluniosas, contra o Conselho Indigenista Missionário e outras instituições, para atacar os direitos indígenas na Constituição em construção. A campanha do Estadão não perdeu nada, lamento dizer, de sua atualidade. Ontem, o mesmo jornal publicou duas páginas de matérias p(r)agas, prometendo o caos se a tese do marco temporal for rejeitada pelo STF. Como se o caos já não estivesse instalado.
Sabemos que a tese do marco temporal remonta ao casamento entre interesses contrariados do agronegócio e de alguns setores das forças armadas, por ocasião da criação de da TI Raposa Serra do Sol. Não surpreende que grandes empresários, alguns deles instalados na Amazônia nos tempos da ditadura com o estímulo de gordos subsídios, busquem a extinção de direitos que garantem que as terras de posse tradicional indígena permaneçam bens inalienáveis da União. Surpreende, porém, que membros de instituições que “se destinam à defesa da pátria” (CF, art 142) defendam na verdade coisa bem diferente, a saber, a entrega de terras públicas à grilagem, ao desmatamento, ao fogo, à especulação fundiária e a uma produção agropecuária que não visa e nunca visou garantir a segurança alimentar da população.[iii]
Ao congelar a situação das terras indígenas em 1988 (e recordemos que o prazo de cinco anos para finalizar as demarcações das terras indígenas não foi cumprido, como não o foi depois de 1973, como estipulado pelo morto-vivo Estatuto do Índio)[iv], a tese legaliza e legitima as violências a que os povos foram submetidos até a promulgação da Constituição, em especial durante a ditadura. Além disso, ela ignora o fato de que, até 1988, os povos indígenas não tinham autonomia para lutar judicialmente por seus direitos. Esses povos diziam, em manifestações e mobilizações após a promulgação da Constituição: “Nossa história não começa em 1988”. Pois bem, a tese do marco temporal quer que a história dos povos indígenas acabe em 1988. Pretende que a história pare ali.
Considerem o absurdo de um direito originário que só vale até uma certa data. A tese do marco temporal congela uma situação multissecular de expoliação territorial, transformando-a em “direito” (inclusive com insinuação solerte de “privilégio”). Ela equivale a recusar aos povos indígenas seu futuro; a expulsá-los da história como agentes, relegando-os ao passado. A intenção mal oculta de tudo isso é fazer com que os povos originários desapareçam aos poucos como povos. Aos poucos ou rapidamente, porque há pressa: é preciso acabar com tudo antes que tudo acabe.
“Nem um centímetro a mais”, disse o presidente eleito em sua campanha: nem um centímetro a mais para as terras indígenas, para terras quilombolas, para unidades de conservação. A tese do marco temporal coincide espantosamente com os objetivos e valores professados pelo atual mandatário supremo da nação. Guardemos bem isso.
A anulação de terras indígenas com base em um marco temporal de 05/10/88, como observou a advogada Juliana de Paula Batista, torna regularizáveis todas as invasões recentes. Isto é uma distorção radical do direito originário, anulando o D 6° do artigo 231. Extingue-se a tese do indigenato? Reedita-se o Requerimento, a infame ordem de despejo lida pelos conquistadores espanhóis diante dos povos indígenas?[v] Com que direito moral (se me permitem a expressão) se recusa aos povos indígenas os seus direitos constitucionais? Como ousam?
E cabe perguntar: quantos brasileiros não-indígenas têm sua vida melhorada a cada centímetro de terra que se recusa aos povos indígenas? A vida de quais brasileiros? Ou, aliás, e também, a vida de quais estrangeiros? Quem lucra com o esbulho das terras indígenas? A preocupação dos autodesignados tutores da nacionalidade com a “internacionalização da Amazônia” parece sempre mirar nos povos originários. Enquanto isso, há mais de 28 mil propriedades de terra em nome de estrangeiros. Juntas, essas áreas somam 3,617 milhões de hectares, uma área do território nacional quase equivalente à do Estado do Rio de Janeiro.Pela lei, estrangeiros podem adquirir ou arrendar até 25% da área territorial de cada município, e estão presentes em 60% dos municípios brasileiros. Mas o perigo são os indígenas, isto é, os menos estrangeiros de todos os habitantes do território nacional.
E por fim… Enquanto se discute a validade da tese do marco temporal, os “marcos temporais” do processo de legalização da grilagem das terras da União só fazem andar para a frente. O PL 2.633/2020, o “PL da Grilagem”, estabelece que as terras ocupadas até 2008 (por que não só até 05/10/1988?) podem ser regularizadas, mas prevê que áreas de ocupação posterior possam ser legalizadas por licitação, com regras definidas por decreto do Poder Executivo![vi]
Sabemos todos o que isso pode significar do ponto de vista de uma explosão da invasão de terras públicas na Amazônia e do consequente aumento do desmatamento, com os efeitos, agora impossíveis de ignorar, sobre a estabilidade climática do país. Sabemos todos o papel fundamental que as terras e os povos indígenas desempenham na manutenção do equilíbrio dinâmico do ambiente amazônico. A tese do marco temporal não leva em conta o tempo em que vivemos – ela trabalha contra a corrida contra o tempo, contra o escasso tempo que temos para garantir que o planeta continue habitável para a espécie humana.
Notas:
[i] “São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam”
[ii] Acampamento Luta pela Vida
[iii] 41% dos brasileiros (84 milhões) convive com algum grau de insegurança alimentar, 9% destes com afome pura e simples.
[iv] Disposições Transitórias da CF 1988, art. 67. “A União concluirá a demarcação das terras indígenas no prazo de cinco anos a partir da promulgação da Constituição.” Em 1973, o Estatuto do Índio determinava o mesmo prazo. Em 1988, repete-se o prazo, já que ele não fora cumprido nos 15 anos que separa o Estatuto da Constituição. Esse “marco temporal” não é respeitado.
[v] Paulo Brabo. Acesse aqui.
[vi] Imaginem o barulho que faria a proposta de marco temporal com a mesma data da promulgação da CF, congelando todas as terras públicas que não eram então propriedade privada devidamente legalizada e registrada nos cartórios e cadastros competentes (CAR, CIR, verificação de APP etc).