Globalização: O pânico sobre a Teologia do Domínio e a cegueira sobre a ganância laica.

Jair Bolsonaro e Michelle Bolsonaro orando, ainda quando presidente.

https://www.ihu.unisinos.br/637556-o-panico-sobre-a-teologia-do-dominio-e-a-cegueira-sobre-a-ganancia-laica

Christina Vital da Cunha, professora do PPG em Sociologia, coordenadora do Laboratório de Estudos em Política Arte e Religião (LePar) da Universidade Federal Fluminense (UFF)


22 Março 2024

[NOTA DO WEBSITE: Artigo escrito pela professora da UFF que atua na área das religiões e política, onde destaca aspectos mais parcimoniosos sobre a questão da teologia da dominação, contextualizando na história do mundo ocidental cristão, esse momento atual. Mostra que tem inclusive raízes históricas mais antigas do que os tempos de agora. Importante se ver como há uma influência profunda não do protestantismo, mas das variações que foram se moldando no tempo, principalmente na sociedade dos EUA. Vale a pena se confrontar todas as matérias que tratam desse momento histórico onde outras visões religiosas se misturando com a vida leiga da sociedade. Temos que reconhecer que a prática política, antes na Europa, sempre sofreu a influência direta da igreja católica. E temos a partir do século XIX, o sionismo, que não é cristão, mas está impregnado da mesma postura supremacista branca totalmente originária da visão de mundo europeia].

Depois da manifestação promovida por líderes evangélicos em apoio aos projetos da extrema-direita no dia 25 de fevereiro de 2024 na Avenida Paulista, vimos uma onda de jornalistas e estudiosos circunscrevendo os problemas nacionais em um grupo social, os evangélicos neopentecostais e seus líderes, e em uma teologia, a Teologia do Domínio. Qual a importância desses atores no cenário político atual? Em qual medida a Teologia do Domínio e formulações correlatas como a Batalha Espiritual e o Reconstrucionismo se manifestam na sociedade brasileira hoje? São perguntas cujas respostas não se esgotam nas linhas a seguir, mas aqui sugiro olhares que nos afastem do pânico e nos permitam pensar com mais serenidade e traçar estratégias coletivas de afirmação democrática e civilizatória no sentido da inclusão e justiça social.

O que se convencionou chamar de Teologia do Domínio tem raiz em interpretações bíblicas cujo livro de Gênesis é uma referência fundamental onde se lê: “E Deus os abençoou e lhes disse: Sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra e sujeitai-a; dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus e sobre todo animal que rasteja pela terra” (Gênesis 1:28). A característica central desta Teologia advoga a legítima e necessária dominação do mundo pelo cristianismo (seus fiéis e seus valores e sistemas de crença) e isso não é novo. Contudo, atualizações desta teologia acontecem de tempos em tempos (como ocorre em outras formas teológicas também) atendendo a necessidades espirituais/eclesiásticas e/ou a interesses institucionais/de poder. O contexto estadunidense de renovação e inspiração da Teologia do Domínio tal como nos chega na atualidade data dos anos 1970. E o que estava acontecendo nos Estados Unidos no período? Mudanças sociais profundas que tensionavam relações de poder e as instituições sociais e estatais que sustentavam o status quo ante. Sendo assim, naquele período, os direitos civis de pessoas negras se afirmavam, inclusive com integração escolar entre crianças negras e brancas imposta por força de lei, direitos sexuais e reprodutivos com, por exemplo, a legalização do aborto, mobilização social contra a participação estadunidense em guerras como a do Vietnã, nova fase do movimento feminista e, com tudo isso, observava-se uma mudança na correlação de forças desafiando a dominação/valorização da masculinidade viril e a supremacia branca, ambos elementos basilares da identidade nacional norte americana propagada na política, na economia e na cultura – e os filmes americanos foram muito importantes nesse processo. As teologias, formas de ver o mundo e viver a religião, estavam sendo remexidas naquele período por toda essa efervescência, assim como a Teologia da Libertação na América Latina reverberava as questões experimentadas pelos povos desta região.  

Sendo a Teologia do Domínio podemos dizer que ela tem uma matriz reformada também chamada Reconstrucionismo e uma pentecostal, mais conhecida como Batalha Espiritual cuja referência fundacional é o teólogo norte-americano Charles Peter Wagner. Simplificando as várias singularidades existentes em suas concepções e aplicações, podemos dizer que a Teologia do Domínio advoga a liderança de cristãos na sociedade em áreas como religião, família, educação, governo, economia, artes e entretenimento. A Opus Dei tem projeto similar tornado explícito nos anos 1930 por ação de um religioso católico espanhol. Mas continuemos entre evangélicos, alvos do principal pânico social recente.  A Teologia do Domínio se expressa também na chamada Doutrina dos Sete Montes, criada pelos norte-americanos Loren Cunningham e Bill Bright, fundadores respectivamente da Jovens com Uma Missão (Jocum) e da Cruzada Estudantil e Profissional para Cristo (Cru). Essa doutrina, segundo eles, surgiu de uma revelação divina ocorrida em 1975, uma profecia sobre a condição para o retorno de Cristo à Terra. 

Há diferenças em como as igrejas Anglicana, Presbiteriana e outras identificadas como reformadas ou protestantes vivenciam a Teologia do Domínio e como este conteúdo teológico é formulado em igrejas pentecostais e neopentecostais. É perceptível a diferença de postura pública e estratégia de líderes como o Ministro e pastor André Mendonça e o ex-Ministro da Educação Milton Ribeiro, presbiterianos, e pastores como Silas Malafaia, bispo Edir MacedoValdemiro Santiago e o deputado federal Nikolas Ferreira, por exemplo, todos ligados a denominações pentecostais, neopentecostais ou igrejas renovadas. Enquanto o projeto de poder silencioso, contínuo e exercido por influência é mais característico do primeiro grupo, um modo comum ao exercício de poder exercido pelo conservadorismo católico durante a República, o enfrentamento público, a valorização da visibilidade e a perseguição ostensiva aos identificados como inimigos é característica do segundo grupo. Na prática política é possível que esses atores reúnam forças, mas têm origens sociais e estilos distintos.   

O ato realizado em 25 de fevereiro por segmentos sectários evangélicos e políticos identificados como extremistas revela um comportamento religioso que não é novo, embora venha se fortalecendo na esteira do crescimento da extremadireita como fenômeno político. É um movimento encabeçado por alguns líderes evangélicos como Malafaia e empresariais e funcionários e funcionárias de partidos, pessoas que representam interesses institucionais como a própria Michelle Bolsonaro, também evangélica. A face de movimento religioso naquele ato buscava tanto blindar a manifestação na medida em que qualquer tentativa de deslegitima-la ou impedi-la seria tomada como intolerante, como perseguição religiosa, como uma afronta à liberdade religiosa, ao mesmo tempo em que tinha o objetivo de conduzir emocionalmente as pessoas como se estivessem todos envolvidos em uma guerra do bem contra o mal na qual a dominação religiosa da política se justificaria nessa medida.

Ou seja, como ficou claro na fala inicial da ex-primeira dama e assalariada do Partido Liberal, Michelle Bolsonaro, “misturar” religião com política é a saída para a dominação do “bem” nesta esfera, pois o mal estaria à espreita. Nesses discursos, observamos bastante como põem em curso um conjunto de gramaticas e emoções, ou seja, uma retórica baseada na Batalha Espiritual na qual espíritos malignos disputariam com Deus a condução. Mas a Batalha Espiritual se manifestaria não só no espírito e nos sofrimentos ali verificados, mas também na “carne” = corpo e instituições sociais como família, escola. As forças malignas estariam dispostas a destruir todas elas e aos cristãos caberia dominá-las com vistas a fazer valer o bem. A questão é que esse “bem” exclui qualquer diferença em relação ao que é estabelecido como paradigma único do correto. E está aí a semente da perseguição aos grupos que defendem a diversidade de estilos de vida, de pensamento.

Não resta dúvidas de que a Teologia do Domínio como orientação espiritual animou a cúpula do poder Executivo no governo passado e se mantém animando a prática de um conjunto de políticos no Brasil, mas não é somente esta forma teológica um desafio à democracia, à diversidade, à superação das desigualdades sociais, mas a ganância econômica e de dominação de classe de muitos poderosos que não são somente religiosos.

Outro ponto importante para finalizar é que vem crescendo no Brasil aqueles evangélicos críticos desta extrema direita, da politização das igrejas. Esses evangélicos críticos não defendem todas as bandeiras progressistas, mas são mais afinados com a defesa da justiça social, missão deixada por Jesus Cristo, do que com os interesses dos chamados “coronéis da fé”. Há ainda uma esquerda evangélica diversificada internamente e que se reúne em algumas denominações e comunidades, afastados da vida eclesiástica, mas com vigor na fé. Dado o crescimento evangélico na sociedade como um todo, em especial em suas bases, observaremos cada vez mais essa face evangélica na esquerda popular, engajada ou não em partidos, mas sempre em defesa da democracia e diversidade. As forças democráticas liberais ou de esquerda, acadêmicos em suas pesquisas, partidos em suas convenções, vão precisar considerar cada vez mais esses atores sociais em suas investigações e/ou ações políticas.