Globalização: Água – Por que o Reino Unido quer a reestatização

Foto publicada pelo site Bloomberg

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Marcos Helano Montenegro, Coordenador de comunicação do Observatório Nacional do Direito à Água e ao Saneamento (ONDAS)

21/06/2024

[NOTA DO WEBSITE: Realidade típica da Era Thatcher na Inglaterra e Reagan nos EUA. Esse foi o ápice da entrada no mundo, ‘empurrado’ dos dois ‘cabeças’ do Planeta, o tempo do Liberalismo, das privatizações, das chamadas ‘desregulamentações’ de tudo, da derrocada da sociedade como dona de seu destino para ser a partir de então, domada e subjugada ao Senhor Mercado! E tragicamente tudo o que era da população como suas instituições públicas onde o povo poderia ser o dono, passa a ser de alguns senhores donos planetários do capital mundial. E tivemos situações dramáticas como a da cidade boliviana de Sta.Cruz de la Sierra onde até a água da chuva não poderia ser coletada pela população. Todos tinham que beber e usar a água então privatizada. Mas numa demonstração da força do povo, essa situação foi literalmente derrubada e expulsa por movimentos populares. Belíssimo exemplo de cidadania e indignação pela ganância e arrogância do capitalismo indigno e cruel. Agora o mesmo acontece na Inglaterra de Thatcher, só com a ‘fleuma’ britânica. Revoltados, os inglês querem a reestatização das suas águas. Por que nós do Brasil precisamos passar por essa estúpida realidade e não aprendemos com os britânicos a não fazermos essa ‘imundície’ e deixemos nossas águas como um direito inalienável de todo o povo? Por que precisamos entegrar os nossos patrimônios para uns poucos se locupletarem de nossa sobrevivência?].

Após 35 anos de privatização, eis o resultado: infraestrutura sucateada, contaminação das águas e empresas com dívidas bilionárias. 70% da população defende reestatizá-lo.

Nas sondagens de opinião, os trabalhistas são os favoritos e devem conquistar maioria nas eleições legislativas para formar um governo. A se confirmar os prognósticos, depois de 14 anos os conservadores vão desocupar a 10 Downing Street, a famosa residencia oficial e o escritório do primeiro-ministro do Reino Unido.

Entre os problemas de curto prazo que qualquer novo governo enfrentará esta a profunda crise dos serviços de água e esgotos da Inglaterra e País de Gales.

As empresas privadas apresentam péssimo desempenho: elevadas perdas, poluição de rios e águas costeiras por lançamentos de esgoto bruto. A incapacidade de fazer face aos investimentos necessários para ampliar e modernizar a infraestrutura dos serviços que prestam e agravada por um endividamento monumental, cuja causa principal e a prioridade dada a remuneração dos acionistas das empresas.

A empresa que presta serviço na região de Londres e Vale do Tamisa atendendo 15 milhões de usuários está à beira da falência, afogada em uma dívida de 18 bilhões de libras esterlinas, equivalente a R$ 122 bilhões. Para comparar, o orçamento do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) em 2024 é de R$ 55 bilhões.

O regulador econômico, o Ofwat, adiou para depois da eleição seu pronunciamento sobre os planos de investimentos apresentados pelas empresas prestadoras e sobre os aumentos de tarifas que pleiteiam para financiá-los.

No momento em que no Brasil a privatização dos serviços de água e esgoto é vendida como a oitava maravilha, é preciso conhecer mais sobre o colapso da iniciativa de privatização pioneira no mundo levada a cabo, 35 anos atrás pelo governo neoliberal de Margareth Thatcher.

O Ondas esta disponibilizando a tradução de dois textos a respeito da crise: o editorial do jornal The Guardian que defende o fim da privatização como uma iniciativa que fracassou e a opinião do Unison, sindicato inglês de trabalhadores em serviços públicos, que classifica a situação da prestação privada como um escândalo nacional.

Será que, no Brasil, vamos precisar de 35 anos para apurar os prejuízos do atual processo de mercantilização dos serviços públicos de saneamento?


Trabalhistas: aprender com os Países Baixos, onde as empresas do setor público são financiadas por um banco estatal

[Editorial do The Guardian publicado em 12 de Junho de 2024]

A prestação de serviços de água e esgoto pelo setor privado como na Inglaterra é rara no mundo: 90% dos países administram operadores estatais. Mesmo na Europa, é o único país a ter vendido seus serviços de água e esgoto – incluindo tubulações, reservatórios, poços e estações de tratamento – para proprietários privados, agora em sua maioria um conjunto de fundos soberanos, fundos de pensão e fundos financeiros de infraestrutura. A decisão de colocar a água – um monopólio natural – em mãos privadas desafiou a lógica thatcherista de competição e eficiência. Nunca houve qualquer possibilidade de colocar empresas rivais competindo umas contra as outras para elevar os padrões. Nenhum prestador está competindo com outro pela oportunidade de abastecer uma família.

O resultado foi a criação de uma série de sinecuras resultantes das reivindicações que as grandes empresas e seus executivos vêm fazendo, protegidas da concorrência por direitos legais sobre recursos hídricos escassos. As centenas de milhares de libras pagas em bônus aos dirigentes da Severn Trent e da controladora da South West Water, apesar das empresas lançarem esgoto bruto nos rios da Grã-Bretanha, parece um exemplo de manipulação pelo capital oligopolista. Em vez de investir em infraestrutura para lidar com uma população crescente, os monopólios privados de água e esgoto do país, que começaram a vida sem dívidas, tomaram emprestado £ 64 bilhões nas últimas três décadas e pagaram mais de £ 78 bilhões em dividendos a seus proprietários.

Se isso não fosse escandaloso o suficiente, desde 1989 as empresas negligenciaram a modernização de suas redes de água e esgoto, preferindo em vez disso captar água de rios e aquíferos subterrâneos naturais. Houve pouco dinheiro para reparar tubulações que perdem um quinto da água que carregam; para construir um único reservatório novo; ou para lidar eficazmente com extravasões de esgoto bruto que comprometem as reservas de água limpa. Com alertas de que o aquecimento global pode provocar secas em regiões da Grã-Bretanha, não é surpresa que cerca de sete em 10 pessoas entendem que as companhias de água e esgoto deveriam estar em mãos públicas.

Uma semana após a chegada de um novo governo, o regulador do setor, Ofwat, decidirá autorizará os planos de investimento da indústria da água – e, crucialmente, como distribuir o custo estimado de £ 100 bilhões (desses investimentos) entre acionistas e usuários. Os trabalhistas gostariam de endurecer a regulamentação – mas o partido deveria ir além. Pode ser forçado a isso se a Thames Water, a maior empresa de água do Reino Unido, entrar em colapso. A Thames Water está buscando uma injeção de dinheiro de £ 750 milhões para ajudar a atender às taxas de juros crescentes de sua dívida de £ 18 bilhões. Já há planos de contingência para nacionalizar o negócio. O setor privado é alérgico ao controle estatal, argumentando que o contribuinte pode acabar pagando a conta.

No entanto, esse suposto risco é facilmente gerido pelo negócio da água com melhor desempenho na Europa: os prestadores públicos dos serviços de água e esgoto dos Países Baixos. O sistema holandês apresenta menos de um quarto das perdas deste país. Suas empresas estatais de água e esgoto são financiadas por um banco apoiado pelo Estado especificamente desenhado para emprestar a taxas equivalentes às oferecidas pelo governo. Especialistas dizem que a propriedade pública pode reduzir as contas dos usuários. A Welsh Water é uma organização sem fins lucrativos. Na Escócia, a água está em mãos públicas. A Inglaterra deveria imitar o sucesso europeu na gestão e propriedade de recursos escassos, em vez de persistir num sistema fracassado de privatização por razões que parecem ser ideológicas.


Opinião: O setor de água e esgoto é um escândalo nacional

A privatização significou danos na infraestrutura dos serviços, aumento dos vazamentos de esgoto e redução da confiança na segurança da água potável, enquanto os acionistas embolsam bilhões.

Por Donna Rowe-Merriman, diretora de meio ambiente do UNISON.

[Artigo publicado no The Public Service Union em em 20 de maio de 2024]

O atual modelo de propriedade e operação dos serviços de água e esgotos da Inglaterra é notícia quase todos os dias – e quase sempre por péssimos motivos. A privatização dos serviços de água e esgotos fracassou. Desastrosamente. Foi uma aposta do governo conservador que não valeu a pena – a menos que você seja um presidente-executivo ou acionista de uma empresa de água.

Os consumidores não viram melhores resultados. Na verdade, estamos vendo lucros sendo extraídos para os acionistas e algumas empresas de água sendo oneradas com dívidas, apesar do significativo subinvestimento em infraestrutura.

As empresas têm se mostrado inadequadas – com suas atuações resultando em contas mais altas, padrões de desempenho mais baixos e danos crescentes ao meio ambiente natural e à saúde pública.

Este modelo resultou na priorização do lucro em detrimento do investimento e na ocorrência de níveis insustentáveis de endividamento para sustentá-lo, sendo o resultado inevitável para o público e para os clientes.

Desde a privatização, os consumidores pagaram bilhões pelos serviços. Apesar disso, nosso ambiente está em ponto crítico e não há nenhum desejo real deste governo de virar a maré e forçar as empresas a realizar os investimentos em infraestrutura tão necessários.

Recentemente, foi revelado que 2023 houve um enorme aumento nas extravasões de esgoto bruto em cursos d’água na Inglaterra, de 301.091 vazamentos em 2022 para 464.056 em 2023 – um aumento de mais de 54% em um único ano, tornando-se o pior ano para lançamentos de esgoto não tratados já registrado.

Relatos recentes da mídia também confirmaram que as nove companhias de água na Inglaterra despejaram esgoto em rios próximos à sua própria sede por mais de 56.000 horas em 2023, realçando ainda mais essas falhas.

Isso afeta a vida selvagem do Reino Unido e milhões de pessoas que usam os rios e as costas para recreação, de pescadores a surfistas. Campanhas crescentes destacam não apenas tubos quebrados – mas um sistema fundamentalmente quebrado.

Além disso, um recente e grave incidente de contaminação de água potável em Devon, e a admissão pelos chefes da South West Water da inadequação da resposta da empresa, demonstraram como até mesmo a confiança na segurança da água potável das residências foi afetada pelas falhas das empresas de água na Inglaterra.

No entanto, em vez de investimentos e melhorias na infraestrutura, as empresas privadas de água e esgoto – que estavam sem dívidas na época da privatização – contraíram mais de £ 60 bilhões de dívida, enquanto ao mesmo tempo os investidores retiraram £ 85 bilhões em dividendos aos acionistas e outros pagamentos.

Os dirigentes das empresas de água também teriam recebido mais de £ 25 milhões em bônus e incentivos desde 2019, de acordo com a análise.

A única solução para esta crise

Ao mesmo tempo, empresas como Southern Water e Thames Water estão relatando problemas financeiros significativos, com os proprietários da Thames Water insistindo em aumentos significativos nas contas dos usuários e uma anulação de multas antes de concordar em apoiar financeiramente a empresa.

O resultado disso é a infraestrutura deficiente dos serviços de água e esgoto, o aumento das extravasões de esgoto, a redução da confiança do público na segurança da água potável, e ao mesmo tempo recompensas excessivas aos acionistas e uma situação financeira cada vez mais precária das próprias empresas de água.

Isto demonstra que o atual modelo de propriedade e de exploração não é adequado à sua finalidade, e a posição de longa data da UNISON ao apelar a uma renacionalização do setor da água e esgoto, que volte a ser propriedade pública e devidamente responsável publicamente, em vez de ser entregue aos acionistas, é a solução para as deficiências do modelo fracassado de propriedade privada.

As empresas de água vem lucrando com a privatização há décadas tendo extraído para os acionistas da ordem de dezenas de bilhões de libras às custas dos usuários e do meio ambiente.

Essas empresas estão deixando a nós todos com décadas de problemas para as gerações futuras – seja no nosso meio ambiente, nossas fauna e flora ou nossa saúde pública.

Este é um escândalo nacional de proporções épicas impactando o direito de todos à água potável nas nossas torneiras e rios e costas limpos para nossas comunidades.

A única opção real é trazer essas empresas de água falidas de volta à supervisão pública, torná-las publicamente responsáveis e, acima de tudo, de propriedade pública.