Quase à mesma hora em que era sepultado em São Paulo, há duas semanas, o corpo do professor Aziz Ab’Saber, uma das figuras mais importantes do pensamento científico e ambiental brasileiro, chegava às mãos do autor destas linhas o livro Espécies Nativas da Flora Brasileira de Valor Econômico Atual ou Potencial, editado pelo Ministério do Meio Ambiente, sob coordenação do gerente de Recursos Genéticos, Lídio Coradin – obra importante para o País na área em que o falecido professor da Universidade de São Paulo (USP) foi um expoente.
http://www.ecodebate.com.br/2012/04/02/ganhos-e-perdas-na-senda-da-inovacao-artigo-de-washington-novaes/
Considerado referência em geografia no mundo, mas também em geologia, geomorfologia, biologia evolutiva, ecologia, autor de mais de 300 trabalhos acadêmicos, ex-presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), condecorado pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) e outras instituições, o professor Ab’Saber era um homem simples e acessível, que aos 87 anos e com a saúde atingida não desistia da luta. A mais recente foi contra a versão de Código Florestal defendida pelos ruralistas – a seu ver, um forte retrocesso com graves consequências, principalmente por desprezar a variedade de cenários naturais no Brasil e a necessidade de regras diferenciadas para cada um.
O autor destas linhas conheceu-o pessoalmente em 1987, durante um debate promovido por este jornal sobre um dos programas da série Caminhos da Sobrevivência, que dirigia para a televisão. O debate era específico sobre um documentário a respeito da Bacia do Rio Tietê feito por Eduardo Coutinho. Havia muita confusão entre os debatedores, quando o professor Ab’Saber começou a falar. E a impressão de toda a plateia foi de que, a bordo da nacele de um balão, todos tinham subido ao céu e lá do alto haviam começado a enxergar a bacia do rio, hoje e na História: a ocupação humana, que começara pela planície, subira os morros e se estendera; os dramas causados pela ocupação desenfreada do solo e suas consequências na bacia hidrográfica, inclusive por causa do sepultamento sob o asfalto de dezenas de córregos e outros afluentes.
Pouco tempo depois, num debate em Mato Grosso do Sul sobre os dramas do Pantanal, quando se discutia a necessidade de desassorear o Rio Taquari, que já fora o grande leito da navegação no bioma e estava reduzido a um palmo d’água, o professor Ab’Saber, com seu saber, pôs a discussão no lugar: “Vocês podem planejar então desassorear o rio durante séculos, porque o desmatamento e a erosão que ele provoca, de fato, são problemáticos; mas a questão central está em que aquela região é de formação ainda recente, em evolução, e está no centro de um cone de terra com a base invertida para cima, milhares de quilômetros de diâmetro, que ejetam areia de baixo para cima; desassorear é útil, mas o problema mesmo durará séculos, milênios”.
Era assim o professor Aziz Ab’Saber, que antes de cursar a USP e nela ser professor foi, ali mesmo, jardineiro. E com essa simplicidade seguiu pela vida fora. Fará muita falta ao País.
Ele certamente gostaria de ler o livro sobre as espécies brasileiras, porque era um dos defensores exponenciais da nossa diversidade vegetal – 13% das espécies do planeta, segundo o texto, que tem como objetivo “promover o uso sustentável de espécies da flora brasileira de valor econômico atual e potencial, utilizadas local e regionalmente”. Isso significa, diz o livro, novas opções para a agricultura familiar, oportunidades de investimento industrial, contribuição para a segurança alimentar, redução da vulnerabilidade do sistema alimentar brasileiro e formatos de favorecimento de comunidades locais. E todos esses caminhos são importantes para a área medicinal, para a produção de cosméticos e aromáticos, para plantio e comercialização de alimentos, para seleção de espécies adequadas ao clima, etc.
No mundo já se conhecem 250 mil espécies vegetais, dizem muitos estudos (outros apontam números menores) e a maior diversidade está no Brasil. Mas, apesar dela – observa o livro -, a nossa dieta é “altamente simplificada e dependente de recursos genéticos externos”, enquanto poucas das nossas centenas de espécies comestíveis estão disponíveis no mercado. E tanto é assim que a nossa agricultura depende de espécies vindas de outras partes do mundo – café, arroz, soja, laranja, milho, trigo; na silvicultura, de eucaliptos e pinheiros; e mesmo fora das espécies vegetais, como na piscicultura (tilápias africanas e carpas asiáticas), na apicultura (polinizadores africanos), na pecuária (bovinos indianos, caprinos asiáticos, gramíneas africanas).
Então, o conhecimento das nossas espécies é vital, já que a produção mundial de alimentos, em grande parte cartelizada no comércio internacional, hoje depende basicamente de apenas 150 espécies; 15 espécies respondem por toda a energia de que depende o ser humano – e só quatro (arroz, batata, milho e trigo) respondem por metade dessa energia, segundo a ONU. Entre as pouco mais de 150 espécies mencionadas, só duas são brasileiras: mandioca e amendoim. E a própria evolução da biotecnologia entre nós dependerá do avanço no conhecimento nessa área. Até mesmo na área de medicamentos, em que os números do comércio mundial variam entre US$ 20 bilhões e US$ 250 bilhões anuais. Mas a produção interna não passa de US$ 500 milhões/ano. Só temos registrados 512 produtos fitoterapêuticos derivados de 162 espécies vegetais.
O conhecimento na área, portanto, é decisivo, até porque a perda da biodiversidade no mundo avança celeremente e já se perderam pelo menos 25% das espécies, diz o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma), que recomendou há dois anos ampliar para 17% as áreas terrestres protegidas e para 10% as áreas oceânicas.
Nas encruzilhadas que se apresentam para o Brasil em seu comércio exterior, em sua indústria, na política cambial, a inovação tecnológica será o fator preponderante nos próximos anos. Por isso são tão importantes os caminhos trilhados pelo livro.
Washington Novaes, jornalista. E-mail: [email protected]
Artigo originalmente publicado em O Estado de S.Paulo.