“Claramente, havia ali um constrangimento no cumprimento da ordem judicial, na medida em que o apoio das populações das cidades vizinhas, e a exuberância da produção agroecológica daquelas famílias trabalhadoras desmentia, um por um, todos os rótulos pejorativos que a grande imprensa e os governos conservadoras costumam impor à luta dos trabalhadores rurais”. O comentário é de Rafael Villas Bôas, professor da UnB em artigo publicado pelo portal Racismo Ambiental, 06-03-2015.
http://www.ihu.unisinos.br/noticias/540588-depoimento-sobre-o-despejo-do-acampamento-dom-tomas-do-mst-a-luta-civilizatoria-da-reforma-agraria-contra-a-barbarie-do-latifundio
Eis o artigo.
O que testemunhei ontem, no primeiro dia da ação de despejo do Acampamento Dom Tomás Balduíno, merece ser compartilhado: um claro exemplo de que, na luta pela terra, nem sempre um passo atrás significa a derrota, mas apenas um impulso para consolidar a vitória vindoura.
O grupo da UnB, formado pelos professores Erlando Reses, da Faculdade de Educação, Luis Carlos Galetti, do Instituto de Ciências Sociais, Rafael Villas Bôas, da Educação do Campo, e pelo doutorando da Faculdade de Comunicação, Felipe Canova, saiu de Brasília de madrugada para acompanhar a ação de despejo. Pela magnitude da ação, que envolve mais de mil e quinhentos policiais para despejar três mil famílias sem terra, todos ali sabiam que o desenlace poderia acabar em tragédia. Na assembleia geral do acampamento, por unanimidade, todos concordaram que naquela conjuntura, após terem resistido por meses com ameaça constante de despejo, naquele momento não havia condição para resistência.
Todavia, muitos indícios indicavam que num horizonte mais amplo, o que se configura imediatamente como recuo guarda elementos de uma potencial vitória em médio prazo: o suposto dono das terras, o senador cearense peemedebista, ofertou a fazenda inteira ao Incra, por 400 milhões. Um preço absurdo, mas cabe aqui apontar o interesse mercantil do político, interessado em lucros astronômicos, sobretudo, se comparado ao modo suspeito como ele formou aquele latifúndio, bem documentado no vídeo de Camila Freitas, chamado Passarim.
Outro indício: o respeito de parte dos comandantes e soldados da Polícia Militar de Goiás pelas famílias e dirigentes do MST ali presentes, que podia ser notado pela definição de uma operação sem armamento ostensivo e letal por boa parte da guarda, e pela distância (fora da vista da entrada do acampamento) em que o grosso das tropas foi posicionado. Claramente, havia ali um constrangimento no cumprimento da ordem judicial, na medida em que o apoio das populações das cidades vizinhas, e a exuberância da produção agroecológica daquelas famílias trabalhadoras desmentia, um por um, todos os rótulos pejorativos que a grande imprensa e os governos conservadoras costumam impor à luta dos trabalhadores rurais.
Baderneiros? Como, se foram capazes de agir de forma tão organizada na escolha da área a ser ocupada e reinvindicada, por não cumprir a função social prevista constitucionalmente?
Vagabundos? Como, se cada palmo de terra foi cultivado com ao menos vinte e duas culturas agrícolas, sendo todas elas cultivadas sem uma gota de agrotóxico?
Violentos? O silêncio e a maturidade com que os acampados acataram a ação de despejo denotava exatamente o contrário, algo que é valorizado pelo meio militar: disciplina, e capacidade de seguir a voz de comando das lideranças, após as decisões coletivas das assembleias.
Logo, os militares ali presentes percebiam que não fazia o menor sentido tratar a reforma agrária como um caso de polícia. Num determinado momento, Valdir Misnerovicz, um dos dirigentes, convidou o Coronel Motta, comandante da operação, e a mim e Felipe Canova para darmos uma volta de carro pelo perímetro do acampamento, para ver a dimensão e variedade da produção agroecológica ali presente.
Por pouco mais de quinze minutos, estiveram juntos representantes do MST, da PM de Goiás, e da Universidade, circulando uma área densamente cultivada, ladeada pelas famílias empenhadas, naquele momento, em desconstruir os barracos de madeirite e lona, enquanto algumas crianças colhiam o que podiam das lavouras maduras, para levar para o próximo local de destino da luta.
Que projeto de país pode desmontar o esforço coletivo de famílias sem posses em nome da ação de um político empenhado em fazer daquele latifúndio reserva de valor e terreno de influência política, para seus negócios? Porque o governo federal não se empenha em fazer um gesto emblemático e tornar aquela área um projeto exemplar de reforma agrária, na medida em que o MST prevê um assentamento com 100% de produção agroecológica e um centro de formação na atual sede de lazer, em possível parceria com as universidades públicas UFG, UEG e UnB?
Se, na disputa territorial, a vitória foi do latifúndio arcaico e sua forma de atuação espúria, que expõe o quanto a política do favor continua comprando funcionários da justiça, e calando poderes, no âmbito da disputa simbólica, a vitória foi da classe trabalhadora, ao expor para todos os agentes envolvidos a justeza da causa.
Cabe notar, inclusive, curiosa coincidente posição entre policiais e sem terra, nos motivos para querer evitar a aproximação das empresas privadas de televisão. Ambos os lados acusavam os interesses da mídia privada com o despejo: na expectativa do derramamento de sangue, queriam lucrar com o espetáculo. Segundo dirigentes estaduais do MST de Goiás em seis meses, mesmo após varias tentativas de contato do MST, as televisões e a grande maioria dos jornais manteve forte bloqueio à questão. No entanto, no momento de uma tragédia eminente, deslocaram grande aparato para cobrir o despejo. “Onde estavam para filmar a greve de fome do ano passado, a escola, as lavouras, a pamonhada?”, questionam os dirigentes.
Já argumentei em outro texto as razões pelas quais esse acampamento é um marco simbólico da luta pela reforma agrária. Acrescento mais um elemento: a força civilizatória e a dimensão da luta do Acampamento Dom Tomás Balduíno tensiona ao máximo todas as organizações e instituições nela envolvidas, expondo os limites de cada qual, e instigando a superação dos mesmos, a saber:
- – Das universidades públicas, a luta dos acampados tem exigido a capacidade da demonstração de solidariedade efetiva, e não apenas gestos retóricos evasivos e distantes, ou o ato complacente de tomar a luta como objeto de pesquisa. Mais que isso, a luta daquele acampamento questiona as universidades sobre qual projeto de democracia e país essas instituições representam, e sobre qual modelo de parceria entre universidade e movimentos sociais é possível construir. Professores, estudantes, técnicos e motoristas da UFG, UEG, UnB e de institutos técnicos federais tem se encontrado ali, se reconhecendo em outras dinâmicas, construindo outras possibilidades de atuação conjunta;
- – Das polícias, a luta coletiva das famílias tem exigido a revisão da doutrina arcaica imposta pelo latifúndio da época dos coronéis, em que o aparato policial estava somente à serviço dos arbítrios dos grandes proprietários em defesa de suas posses. Não quero, com isso, idealizar uma mudança abruta do aparato policial dentro da lógica do Estado vigente. Cabe, contudo, reconhecer e destacar contradições, que apontam para outras formas de lidar com a luta pela terra, que não as tradicionais, truculentas, que assolam os trabalhadores rurais sem terra por décadas;
- – Do MST, a luta do acampamento tem acelerado a construção de uma organicidade consistente e aberta para a entrada de novas famílias, deserdadas do meio urbano. E tem permitido a construção de experiências do maior valor científico, no âmbito da organização social, da produção cultural, e das formas simbólicas de resistência para reconstruir laços de sociabilidade.
O legado moral e ético dessa luta surge na linha do horizonte como perspectiva estratégica de fortalecimento do projeto de reforma agrária popular, capaz de articular diversos segmentos da classe trabalhadora, comprometido com a retomada de um projeto de nação para o Brasil.