“Não tinha como deferir” o pedido de licença prévia da hidrelétrica de Pai Querê no rio Pelotas, porque “a área era contígua à montante daquela perdida pela hidrelétrica de Barra Grande, em 2005, que teve suas licenças com base em um estudo fraudulento, que o Ibama deixou passar, há cerca de 10 anos”, diz Paulo Brack à IHU On-Line. Segundo ele, o parecer do Ibama também “recomenda que sejam suspensos todos os processos de inventário, concessão de aproveitamento e licenciamento ambiental de outras hidrelétricas, incluindo as Pequenas Centrais Hidrelétricas – PCHs na bacia do rio Pelotas, a montante da UHE Barra Grande”.
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“Se fossem construídos todos os barramentos previstos pelo setor elétrico e pelo governo, o rio Pelotas-Uruguai desapareceria. Isto é desenvolvimento sustentável?”, pergunta o biólogo.
Foto: http://bit.ly/1bG6U5h |
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, Brack explica que a área destinada para a construção da hidrelétrica de Pai Querê é “insubstituível”, pois “está inserida no mapa das Áreas Prioritárias para a Conservação da Biodiversidade” do Ministério de Meio Ambiente, incluída na categoria de “extrema importância”. Além disso, a área “faz parte da Zona Núcleo da Reserva da Biosfera da Mata Atlântica, gravada como mundial (Unesco). Apresenta dezenas de espécies da flora e da fauna ameaçadas, raras e endêmicas. Os rios e seus ecossistemas associados, como as matas ciliares, estão sendo transformados em lagos, com águas paradas e poluídas”.
Paulo Brack (foto abaixo) é mestre em Botânica pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e doutor em Ecologia e Recursos Naturais pela Universidade Federal de São Carlos. Desde 2006 faz parte da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança – CTNBio e representa o Instituto Gaúcho de Estudos Ambientais – InGá, no Conselho Estadual do Meio Ambiente do RS – Consema/RS.
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Confira a entrevista.
IHU On-Line – Como avalia a posição do Ibama ao indeferir o pedido de licença prévia da hidrelétrica de Pai Querê no rio Pelotas? Quais as razões da decisão?
Paulo Brack – O parecer técnico final da equipe do Ibama, que analisou o EIA-RIMA, era de 26 de outubro de 2012, e contém 267 páginas. Só agora a coordenação de licenciamento e a presidência se acharam em condições de publicá-lo. O ofício do presidente do Ibama, Volney Zanardi, era do dia 10 de setembro de 2013. Realmente, não tinha como deferir, pois a área era contígua à montante daquela perdida pela hidrelétrica de Barra Grande, em 2005, que teve suas licenças com base em um estudo fraudulento, que o Ibama deixou passar, há cerca de 10 anos.
O parecer não foi apenas pelo indeferimento do projeto, mas também recomenda que sejam suspensos todos os processos de inventário, concessão de aproveitamento e licenciamento ambiental de outras hidrelétricas, incluindo as Pequenas Centrais Hidrelétricas – PCHs na bacia do rio Pelotas, a montante da UHE Barra Grande. Vamos cobrar isso dos órgãos ambientais estaduais FEPAM/RS e FATMA/SC.
O deferimento era praticamente indefensável. Imagino que o setor elétrico e o núcleo do governo não devem estar acostumados a ter que respeitar os pareceres técnicos de coisas que são óbvias para nós. Um dia esta truculência do Ministério de Minas e Energia – MME — que redundou recentemente, lá no Norte, no absurdo da licença para a UHE Belo Monte, PA, entre tantas na bacia amazônica e na bacia do rio Uruguai — tem que topar com a realidade. O rio Pelotas (entre SC e RS) é praticamente o início do rio Uruguai e, no seu conjunto, a bacia já possui sete grandes barramentos, e estão previstos outros três ou quatro, sem contar as dezenas de PCHs. Na realidade, se fossem construídos todos os barramentos previstos pelo setor elétrico e pelo governo, o rio Pelotas-Uruguai desapareceria como rio. Isto é desenvolvimento sustentável?
IHU On-Line – Segundo o parecer do Ibama, a região do rio Pelotas é uma das mais importantes para a conservação da biodiversidade existente no RS e em SC. Qual a peculiaridade ambiental dessa região?
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Paulo Brack – A área prevista para a UHE Pai Querê era insubstituível. Está inserida no mapa das Áreas Prioritárias para a Conservação da Biodiversidade (MMA, 2007), na categoria de “extrema importância”. Também faz parte da Zona Núcleo da Reserva da Biosfera da Mata Atlântica, gravada como mundial (Unesco). Apresenta dezenas de espécies da flora e da fauna ameaçadas, raras e endêmicas. Os rios e seus ecossistemas associados, como as matas ciliares, estão sendo transformados em lagos, com águas paradas e poluídas.
IHU On-Line – Como avalia o EIA-RIMA dessa hidrelétrica?
Paulo Brack – O primeiro estudo, realizado em 2001 pela Engevix, a mesma empresa que foi multada em 10 milhões de reais pelo Ibama pela fraude da Barra Grande, era uma vergonha e foi negado. O segundo, mais exaustivo, entregue em 2010, coordenado pela empresa Bourscheid Engenharia e Meio Ambiente, contratada pelo consórcio CEPAQ (com Alcoa, Votorantim e DME) tinha sido realizado em somente duas estações do ano (outono e inverno), e quase nada da primavera e nada do verão. Teve vários pedidos de complementação por parte do Ibama. Mas o que mais impressionou foram as conclusões finais, obviamente favoráveis, por parte das empresas, e totalmente contraditórias com a riqueza, praticamente única, constituída por tantas espécies raras encontradas, mesmo que em tempo parcial, no diagnóstico feito por biólogos e outros especialistas. Estes, geralmente, não são chamados para as conclusões destes trabalhos, por motivos óbvios e inconfessáveis. O RIMA era ridículo, e muito mais uma propaganda pró-empreendimento do início ao fim, do que um estudo sério. Não deveria ter sido aceito. Isso também tem que mudar na maioria dos relatórios, que se tornam verdadeiras propagandas enganosas.
IHU On-Line – Caso a hidrelétrica de Pai Querê fosse construída, quais são os ônus e os bônus ambientais e sociais? Quais as características ambientais da área afetada pela hidrelétrica?
Paulo Brack – Caso fosse! Apesar da geração temporária de dois ou três mil empregos, de gente que em geral vem de outros estados, seriam perdidos quatro mil hectares de floresta com araucária, o que corresponderia a três vezes a arborização de Porto Alegre, além de mais de 1,2 mil hectares de campos riquíssimos em espécies vegetais. Plantas raras de leitos dos rios desapareceriam. Na fauna, dezenas de peixes se extinguiriam, e tornar-se-iam ainda mais ameaçados animais como veados-campeiros, queixada, algumas espécies de grandes felinos, como o puma, e grandes gaviões. Vale a pena conhecer a região.
O rio Pelotas apresenta verdadeiros monumentos naturais, formados por canyons, corredeiras, paredões recheados de plantas belíssimas e raras, rios tributários com cascatas, araucárias centenárias e muita natureza. Isso tudo também é riqueza, não só a eventual energia gerada, que deve ser conservada e aproveitada de forma sustentável, via turismo rarefeito, com grande potencial para o rafting, por exemplo.
A hidrelétrica, depois de construída, não geraria mais de 20 ou 30 empregos diretos. E cabe lembrar que o potencial de 292 MW gerados é equivalente ao gerado pelo parque eólico de Osório, no Litoral do RS.
Podem dizer que os ventos não sopram sempre, mas também é bom lembrar que no verão as hidrelétricas também param de funcionar pelas estiagens cada vez mais frequentes no sul do Brasil.
IHU On-Line – O que muda no projeto de construção das hidrelétricas com a negação da licença prévia?
Paulo Brack – O caso do licenciamento da UHE Pai Querê deve ser considerado como um exemplo a ser seguido: sem subsídio técnico que ateste a viabilidade de qualquer empreendimento, este não pode e não deve ser deferido. Infelizmente, vimos por muito tempo a naturalização da aprovação quase que automática a todo empreendimento de interesse dos governos, sem as necessárias avaliações ambientais estratégicas, prévias aos EIA-RIMAs.
E, também lamentavelmente, via os costumeiros assédios morais em cima de técnicos que analisam estas licenças e a criação de um clima hostil, quase um regime de exceção, para favorecer setores que só pensam em lucro. É bom lembrar que um terço da energia de nossas hidrelétricas é praticamente exportado em matérias-primas, sem valor agregado algum, via commodities, como minério de ferro e alumínio. A Agência Nacional de Energia Elétrica – ANEEL e o Ministério de Minas e Energia – MME, antes de se preocuparem em ampliar mais e mais projetos de geração de energia com alto impacto ambiental, deveriam implantar os programas de eficiência energética, tão necessários ao país. Falando nisso, o Ministério Público Federal também está acionando a ANEEL para que implante estes programas, já que parte de nossa conta de luz deveria ir para isso. Mas tal demanda é cada vez mais difícil em um modelo de geração, transmissão e distribuição em grande parte privatizado.
Mas a luta não termina aqui. Temos que cobrar, além da recomendação do Ibama pelo cancelamento de todos os empreendimentos a montante e a criação do Corredor Ecológico rio Pelotas-Aparados da Serra (obrigação de um termo de compromisso com o Ministério Público), uma reavaliação do projeto Garabi-Panambi, no trecho internacional rio Uruguai, que não ameace ou comprometa os milhares de ribeirinhos, pescadores e agricultores e também outros tantos milhares de hectares de florestas, inclusive no Parque Estadual do Turvo.