A Ministra e o Coronel.

No dia 26 de agosto se comprovou mais uma vez o desastre da atuação de Gleisi Hoffman à frente da Casa Civil: veio à público o famigerado “laudo” que a Embrapa realizou a respeito dos Guarani que vivem no oeste do Paraná e sobre o qual a Ministra vem sustentando seus ataques aos direitos indígenas em geral e ao povo Guarani em particular.

 

http://www.ihu.unisinos.br/noticias/524076-a-ministra-e-o-coronel

 

A reportagem é de Ian Packer, publicada pelo portal Centro de Trabalho Indigenista, 24-09-2013.

Cabe lembrar que desde que Hoffman, valendo-se de seus poderes de forma soberana e unilateral, anunciou a suspensão dos procedimentos demarcatórios no Paraná e no Rio Grande do Sul, diversas lideranças e associações indígenas, organizações indigenistas, militantes de direitos humanos e parlamentares solicitaram cópia do documento, tendo o acesso a ele sistematicamente negado pela Embrapa e pela própria Casa Civil, num flagrante descumprimento da Lei da Informação. O “laudo” parece, contudo, não ter sido recusado aos ruralistas, que o publicaram em blog do agronegócio. Mas, afinal, por que esconder um documento de interesse público e que, segundo declarações de Gleisi Hoffman e do Ministro da Justiça, visa apenas “qualificar a tomada de decisões” no que diz respeito à demarcação de terras indígenas, tornando “o processo demarcatório mais transparente e mais dotado de informações”? Como dizia a Ministra em audiência no dia 8 de maio na Comissão de Agricultura, Pecuária e Desenvolvimento Rural, “vamos ouvir e considerar nos estudos, além da FUNAI, o Ministério da Agricultura, o Ministério do Desenvolvimento Agrário, o Ministério das Cidades, entre outros órgãos, para que tenhamos uma base consistente para os estudos e demarcações quando for o caso”.

Ora, são as próprias palavras da Ministra que nos dão a resposta, na medida em que ecoam, quase 30 anos depois, as palavras do Coronel Nobre da Veiga. Quando, durante o período militar, esteve à frente da (1979 -1981), o Coronel afirmou que “toda vez que é eleita uma área indígena, antes de ela ser decretada, de ser oficializada, procuramos encaminhar, como temos feito, aos Governos dos Estados, aos órgãos federais e estaduais que se interessam pela terra, tais como IBDF, CEMA, INCRA, o DNER, o DNPM, todos os institutos de terra do Estado, de maneira que não passamos à eleição da área sem que esses órgãos nos digam quais serão os problemas criados por essa eleição, para evitar os conflitos que hoje existem em quase todas as 250 reservas indígenas…” (Coronel Nobre da Veiga, Comissão da Câmara, 17/9/1980). Durante o regime militar, a subordinação da FUNAI ao INCRA, ao IBDF, etc, serviu assim para que fossem expedidas “certidões negativas” acerca da presença indígena em determinadas regiões, liberando-se as terras dos índios para a colonização e legitimando o esbulho e o massacre de populações inteiras. Coincidentemente (ou não), uma das regiões em que tais imposturas fizeram maior estrago foi justamente no Paraná, estado natal da Ministra. Depois de violentamente expropriados pelos colonos, pelo INCRA e pelo SPI de diversos tekoha em que viviam no oeste do estado, num processo que levou muitas famílias a fugirem para o Paraguai, os Guarani que resistiam em Oco’y-Jakutinga, próximo a Foz do Iguaçu, sofreram nova invasão de seus territórios. Com o beneplácito da FUNAI militarizada, que tomou a colonização como um dado e ignorou deliberadamente o histórico da presença Guarani na região, o INCRA em conjunto com o Instituto de Terra Estadual assentou colonos dentro das terras dos Guarani e a Itaipu inundou o restante.

Esse tipo de procedimento, não se limitou, contudo, ao caso de Oco’y-Jakutinga: foi prática corrente em todo o oeste do Paraná – e vemos que é nele em que a Ministra da Casa Civil parece se inspirar. Utilizando-se agora da Embrapa – que, no entanto, apressou-se em declarar publicamente que “não tem por atribuição recomendar, opinar, sugerir sobre aspectos antropológicos ou étnicos envolvendo a identificação, declaração ou demarcação de terras indígenas no Brasil” – Gleisi Hoffman busca repetir os procedimentos dos militares e a forma como eles trataram os Guarani, voltando-se agora contra os Guarani de Guaíra e Terra Roxa. Pretendendo atender à “demanda de analisar em curto prazo o caso da região de Guaíra (PR)”, o laudo da Embrapa fala apenas de bois, porcos, soja e milho e revela, por meio da abundância de fotos de silos, tratores e campos devastados, apenas sua paixão pelo agronegócio; pretendendo qualificar a presença Guarani na região, baseia-se somente em fotos de satélite e acusa-os de serem paraguaios ou migrantes vindos do Mato Grosso do Sul há pouco anos. Joga, assim, pra debaixo do tapete o violento esbulho que os Guarani sofreram ao longo de todo o século XX no oeste do Paraná, desde a exploração de sua mão-de-obra pela Companhia Mate Laranjeira na primeira metade do século XX e pelas companhias colonizadoras e fazendeiros dos anos 50 em diante, até a inundação de porções significativas de suas terras pela UHE de Itaipu nos anos 70. Esse histórico é denunciado de forma contundente pelos Guarani ainda hoje, como por Cláudio Barros, cacique de Tekoha Porã com 96 anos, todos eles vividos na região.

Mas o Ministério da Justiça e a Casa Civil não querem ouvir; ao contrário, preferem munir-se das desinformações produzidas pela EMBRAPA acerca da realidade e das origens dos conflitos que se instalam na região. A “desinformação” propagada pelo laudo atinge seu máximo quando, por meio de um esquema e sem explicitar nem mesmo seus próprios critérios e pressupostos, afirma que hoje não há índios nos Tekoha Porã, Karumbe’y, Marangatu (município de Guaíra) e Araguaju (município de Terra Roxa), sobre as quais a FUNAI já produziu alguns estudos antropológicos que atestam a presença e a tradicionalidade da ocupação Guarani nessas áreas. Não há, assim, outra forma de compreender esse tipo de afirmação, ao mesmo tempo categórica e infundada, do que como sendo motivada pelo propósito de invisibilizar as mais de 100 famílias Guarani que vivem ali, privando-as de maneira soberana de sua identidade étnica para assim privá-las do direito à terra. Julgando-se “técnico”, o laudo não faz mais do que replicar o racismo de que os Guarani são vítimas há décadas e repetir, uma vez mais, os militares e “os critérios de indianeidade” criados pelo Coronel Zanoni e por Célio Horst em 1979, contra os quais diversos intelectuais, antropólogos e defensores dos direitos humanos se sublevaram nos 80 e que julgávamos abandonados…

Depreende-se disso tudo que Gleisi Hoffman não apenas faz mal-uso das informações da Embrapa e das atribuições das diferentes instituições e organismos públicos, mas que seu intuito é de produzir uma fraude contra os Guarani, à exemplo dos coronéis e tenentes de outrora, e de legitimar o processo de expropriação territorial que sofrem os Guarani atualmente no oeste do Paraná. A política que ela vislumbra implantar é inteiramente contrária às conquistas obtidas pelos povos indígenas como resultado de suas lutas nos anos 80 e que foram um dos impulsos na luta pela redemocratização do país. E seu exemplo é seguido de perto pelos ruralistas e poderes locais, também eles sempre prontos a repetirem o passado e a reavivar velhas práticas autoritárias e violentas. No último dia 2 de agosto, uma jovem Guarani de cerca de 20 anos foi sequestrada em Guaíra por homens armados que abusaram sexualmente dela e pediram-lhe pra avisar a FUNAI e os índios “que os fazendeiros não vã permitir que eles fiquem por aqui” e que “nós vamos acabar com a FUNAI e com os índios”. O recado foi dado, mas na Casa Civil ele parece ter antes um cúmplice que um defensor das instituições e dos direitos constituídos. Ao querer atar as mãos da FUNAI e delegar à realização de estudos técnicos sobre uma população indígena a um organismo que não tem competência para isso, Hoffman assume um lado nos conflitos e dá carta branca para que se prolifere a violência contra os índios e contra o próprio Estado brasileiro. Subtrai, assim, uma vez mais aos Guarani seus direitos territoriais, reproduzindo uma lógica militar que há muito deveria ter sido superada mas que continua operando a todo vapor em suas mãos.

 

(NOTA DO SITE : O texto abaixo traz o fato que desencadeou o texto acima.)

 

Ministra pede paralisação de demarcações de TIs em

dois estados com base em estudo inexistente.

 

Gleisi Hoffmann pediu ao Ministério da Justiça a suspensão indiscriminada das demarcações de Terras Indígenas no Paraná e Rio Grande do Sul sem basear-se em um estudo fundamentado já concluído ou mesmo pertinente ao tema.

 

http://www.ihu.unisinos.br/noticias/521986-ministra-pede-paralisacao-de-demarcacoes-de-tis-em-dois-estados-com-base-em-estudo-inexistente

 

A reportagem é do sítio do Instituto Socioambiental – ISA, 16-07-2013.

A ministra da Casa Civil, Gleisi Hoffmann, pediu ao Ministério da Justiça (MJ) a suspensão indiscriminada das demarcações de Terras Indígenas (TIs) em dois estados inteiros sem basear-se em um estudo fundamentado já concluído ou mesmo pertinente ao tema.

Hoffmann solicitou a paralisação dos processos no Rio Grande do Sul, segundo documento oficial da Casa Civil assinado por ela, endereçado ao MJ, intitulado “Aviso nº 400/2013” e ainda não divulgado pelo governo, mas a que o ISA teve acesso.

Em maio, já havia feito o mesmo em relação ao Paraná, onde é pré-candidata ao governo. Em audiência da Comissão de Agricultura da Câmara, anunciou que o pedido baseava-se em informações da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) (saiba mais). Na ocasião, usou ora a palavra “informações”, ora “dados” e “estudos”.

O ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, nega que as demarcações tenham sido paralisadas em qualquer estado. Em resposta datada de 3/7 a um requerimento feito sob a Lei de Acesso a Informação pelo ISA, a Embrapa informa que enviou ao Palácio do Planalto apenas “dados” e “um documento básico e preparatório, que compõe um amplo estudo em elaboração pela Casa Civil” (veja resposta da Embrapa).

A Casa Civil, por sua vez, rejeitou pedido feito pelo ISA, sob a mesma lei, para fornecer o documento. A justificativa apresentada foi de que ele ainda não foi usado para subsidiar qualquer decisão, razão pela qual preferiu não divulgá-lo por enquanto.

“Os estudos solicitados encontram-se em discussão no âmbito dos órgãos competentes e serão utilizados como fundamento de tomada de decisão”, diz o órgão, que não especificou qual o fundamento para a decisão já tomada de requisitar a paralisação das demarcações.
“Com base na resposta oferecida, só podemos concluir que a determinação de paralisar as demarcações foi arbitrária, pois não teve qualquer estudo técnico que a embasou. Nem mesmo o da Embrapa, por mais impertinente que possa ser em relação ao processo de reconhecimento de terras indígenas. Se houvesse, ele teria que ser público”, aponta Raul Silva Telles do Valle, coordenador de Política e Direito Socioambiental do ISA.

Segundo fontes do PT e do governo, Hoffmann foi responsável por articular, na semana passada, a inclusão na pauta de votações da Câmara de um requerimento para votar em regime de urgência um projeto que anula grande parte dos direitos dos índios sobre suas terras (veja aqui).

Imagens de satélite

Fontes da própria Embrapa confirmam que a empresa de pesquisa, subordinada ao Ministério da Agricultura, não realizou um estudo específico para contestar as demarcações e que o documento enviado ao Planalto seria constituído sobretudo de imagens de satélite, as quais, para a Casa Civil, comprovariam a inexistência da presença indígena em anos recentes.

Na audiência da Câmara, a ministra também não havia detalhado em quais dados teria baseado sua solicitação, mas informou que o governo trabalha na criação de um “sistema de informações para prevenção e gestão de conflitos em TIs” com apoio da Embrapa. Segundo a ministra, ele vai disponibilizar dados, entre outros, sobre tempo de ocupação não indígena, sobreposição com áreas urbanas, malha fundiária, produção, produtividade e crédito agrícolas.

O sistema subsidiaria o novo trâmite dos procedimentos demarcatórios, ainda em discussão no governo, que vai incluir mais órgãos, como a própria Embrapa e outros ministérios, além da Fundação Nacional do Índio (Funai) e do MJ, hoje responsáveis por eles.

A proposta atende a pressões ruralistas. Na prática, deve reduzir ainda mais o ritmo de demarcações do governo Dilma, o pior desde a redemocratização (veja aqui). Na mesma reunião na Câmara, a ministra informou que os “estudos” da Embrapa estariam sendo finalizados para Mato Grosso do Sul, Santa Catarina e Rio Grande do Sul.

“É óbvio que, para suspender qualquer estudo ou qualquer ação, tenho de ter informação qualificada para tanto, para fazer esse procedimento. Não pode ser de maneira unilateral, por uma determinação ou um pedido”, afirmou Hoffmann. “Penso que não podemos politizar esse tema”, completou.

Ocupação tradicional

Nenhuma das informações fornecidas pela Embrapa tem relação com a questão da ocupação tradicional, que caracteriza o “direito originário” dos índios sobre suas terras, conforme determina a Constituição.

Em seus laudos, a Funai levanta dados e informações antropológicos, históricos e arqueológicos para apontar, através do tempo e do espaço, a presença das comunidades. Sua ausência em determinado período não significa necessariamente inexistência de ocupação porque, em muitos casos, essas populações foram expulsas de seus locais de origem por produtores rurais, garimpeiros, grileiros, madeireiros ou pelo próprio Estado. Há ainda grupos nômades ou áreas que são usadas apenas para coleta de recursos, caça, pesca ou têm valor religioso, mas não abrigam moradias ou plantações fixas.

Em nota, a Embrapa já havia esclarecido que “não tem por atribuição recomendar, opinar, sugerir sobre aspectos antropológicos ou étnicos envolvendo a identificação, declaração ou demarcação de terras indígenas” e que também “não emite laudos antropológicos e não dispõe de profissionais com esta formação”.

Veja também:

Conjuntura da Semana. Gigantesco retrocesso. Governo cede a ruralistas e “põe fim” à demarcação de terras indígenas

 

(NOTA DO SITE: Abaixo matéria onde expõe as ações no RS sobre a mesma questão)

Governo Tarso assume discurso contra indígenas e

acirra conflitos entre Kaingang e  agricultores.

Ontem (15), pela manhã, lideranças indígenas e entidades indigenistas que haviam se deslocado até a sede administrativa da Fundação Nacional do Índio (Funai) na cidade de Passo Fundo para participar de uma reunião chamada pela Secretaria de Desenvolvimento Rural do Rio Grande do Sul (SDR-RS) frustraram-se ao saber que a mesma nem sequer havia sido marcada. Segundo Adir Reginato, Coordenador Regional da Funai, o órgão não foi contatado em nenhum momento pela Secretaria.

 

http://www.ihu.unisinos.br/noticias/521991-governo-tarso-assume-discurso-contra-indigenas-e-acirra-conflitos-entre-kaingang-e-agricultores

 

A artigo é de Matias Benno Rempel, do Grupo de Apoio aos Povos Indígenas, e publicada pelo portal do Conselho Indigenista Missionário – CIMI -, 16-07-2013.

A reunião em questão tratava-se de um diálogo entre lideranças indígenas, representantes do governo do estado e da Federação dos Trabalhadores na Agricultura Familiar da Região Sul (Fetraf-Sul) e havia sido prometida aos indígenas pelo próprio secretário de Desenvolvimento Rural, Ivar Pavan. O secretário garantiu aos Kaingang no dia 13 de julho que tinha o compromisso de apaziguar os conflitos envolvendo a demarcação da Terra Indígena Kaingang do Passo da Forquilha e garantir a segurança da comunidade indígena que se encontrava acampada em uma fazenda em Sanaduva para pedir agilidade no processo demarcatório.

Na verdade, a reunião havia sido assegurada como forma de garantir o cumprimento de promessas feitas pelo próprio governador Tarso Genro em audiência com as lideranças indígenas e quilombolas do Rio Grande do Sul no último dia 04 de junho. Nesta audiência, em tom enfático, o governador garantiu a continuidade dos processos de demarcação, afirmou que os indígenas possuíam um inegável direito imemorial e originário sobre as terras reivindicadas, anunciou que buscaria formas de pagar indenização plena aos agricultores junto ao governo federal e comprometeu-se em enviar grupos governamentais para as zonas de conflito, assegurando a integridade dos indígenas.

Para além de uma alegada sobreposição de agendas, o motivo do descumprimento do compromisso com os indígenas por parte do governo do estado ganhou tons mais claros ainda na mesma manhã. Na cidade de Erechim, a menos de 100 Km de Passo Fundo, o governador Tarso Genro, conjuntamente com o ministro do Desenvolvimento Agrário (MDA), Pepe Vargas, secretários de estado e deputados estaduais e federais oficializaram a entrega de máquinas agrícolas para municípios da região. Recebidos por manifestantes que supostamente representavam os interesses dos pequenos agricultores da região, o governador garantiu – em discurso contraditório ao realizado frente as lideranças indígenas – que em seu governo nenhum agricultor deixaria suas terras e assegurou que: “se tivermos uma decisão da justiça para tirar as terras de vocês, irei para a cadeia e não cumprirei a determinação”.

A falta de firmeza do governador em honrar seu compromisso com os povos indígenas, o discurso conveniente e comprometido deste em relação aos agricultores e a negligência da Secretaria de Desenvolvimento Rural com a comunidade Kaingang produziram efeito imediato. Logo após o pronunciamento do governador, fazendeiros e agricultores intensificaram as investidas contra a comunidade Kaingang em Sananduva. Quando os indígenas já se retiravam da ocupação houve confusão com os agricultores e, com a total falta de proteção do estado, houve tiros e pancadaria em que dois indígenas e dois agricultores acabaram feridos e foram encaminhados ao hospital local.

A postura do governo do Rio Grande do Sul é a postura de quem aposta no conflito e, infelizmente, as palavras do governador acabaram por fazer coro ao discurso que vem sendo proferido já há bastante tempo pelo Partido dos Trabalhadores (PT) em esfera nacional, o discurso antiindígena. Enquanto ruralistas atropelam e atacam direitos constitucionalmente garantidos aos povos indígenas e quilombolas país afora, Tarso Genro alimenta a falsa problemática entre os pequenos agricultores e os , mesmo já tendo admitido em frente as lideranças indígenas que tem plena consciência de que são os interesses dos grandes fazendeiros que alimentam este conflito. Desta forma, o governo mais uma vez deixa de dar a mão ao povo para receber um fraterno abraço do agronegócio.

 

(NOTA SITE: Visão de profissional da área sobre visão do governo Dilma sobre a questão indígena)

Dilma cede à pressão dos ruralistas e rifa os direitos

indígenas, diz antropóloga da USP.

A antropóloga Manuela Carneiro da Cunha, uma das mais influentes estudiosas da questão indígena no país, acusa a gestão Dilma Rousseff de promover um desenvolvimentismo de “caráter selvagem”, sem “barreiras que atendam a imperativos de justiça, direitos humanos e conservação”. Para ela, Dilma “parece estar cada vez mais refém do PMDB e do agronegócio, que se aliou aos evangélicos”.

 

http://www.ihu.unisinos.br/noticias/521936-dilma-cede-a-pressao-dos-ruralistas-e-rifa-os-direitos-indigenas-diz-antropologa-da-usp

 

A reportagem é de Ricardo Mendonça e publicada pelo jornal Folha de S.Paulo, 14-07-2013.

Após citar “uma ofensiva sem precedentes no Congresso contra os índios”, ela chama a atenção para um projeto de lei –alçado ao status de urgência “com o beneplácito do líder do governo”– que permitiria o uso de terras indígenas para diversas finalidades, da construção de hidrelétricas à reforma agrária. “Se passar, será a destruição dos direitos territoriais indígenas”, diz.

Outro alerta é para a proposta que tenta tirar do Executivo a responsabilidade exclusiva pelas demarcações, passando atribuições ao Congresso. Isso, diz, fará com que a demarcação “deixe de ser uma atividade de caráter eminentemente técnico e passe a ser exclusivamente político”.

Professora titular aposentada da USP e emérita da Universidade de Chicago, Cunha também tem críticas ao Judiciário. Ela fala numa “tendência crescente e preocupante” de paralisar processos de demarcação em seu início. E estima que, hoje, 90% das terras em fase de demarcação estão judicializadas.

Eis a entrevista.

O que distingue o governo Dilma dos anteriores na questão indígena?

Já disse em outra ocasião que neste governo a mão direita e a mão esquerda parecem se ignorar. A esquerda promove uma maior justiça social; a direita promove um chamado desenvolvimento sem qualquer limite.

O problema não é o desenvolvimentismo em si, mas seu caráter selvagem: a ausência de barreiras que atendam a imperativos de justiça, de direitos humanos, de conservação. Custos humanos e ambientais não estão sendo considerados.

Assiste-se agora a uma ofensiva sem precedentes no Congresso contra os índios. São vários projetos que destroem garantias que a Constituição de 1988 assegurou. E a União, que é a tutora, portanto a protetora dos direitos indígenas, não se ergue contra isso.

A própria AGU (Advocacia-Geral da União), que se pautava por uma tradição de defesa dos direitos indígenas, se aliou à bancada ruralista quando editou a infeliz portaria 303 (norma que estende para todas as demarcações as 19 condicionantes criadas pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do caso Raposa Serra do Sol, de Roraima).

Como interpretar as recentes ações do governo?

Adotando uma interpretação caridosa, eu diria que o governo cede a pressões dos ruralistas, e rifa os direitos indígenas em troca de apoio.

Assim, na última quarta deu-se uma manobra escandalosa na Câmara: aprovou-se colocar em votação por acordo de líderes, e com o beneplácito do líder do governo, o regime de urgência para o Projeto de Lei Complementar 227/2012, que regulamentaria o parágrafo 6 do artigo 231 da Constituição, aquele que trata das terras indígenas.

O que significa?

Esse parágrafo abre uma exceção nos direitos de posse e usufruto exclusivo dos índios quando se tratar de relevante interesse da União.

O projeto, de autoria do vice-presidente da Confederação Nacional da Agricultura, pretende definir o que seria relevante interesse público da União. É assombrosa essa definição: praticamente tudo nela cabe. Permitiria que em terras indígenas passassem estradas, oleodutos, linhas de transmissão, hidrelétricas, ferrovias.

Permitiria que se concedessem áreas a terceiros em faixas de fronteira, que se mantivessem posseiros, agrupamentos urbanos, assentamentos de reforma agrária e até novos assentamentos.

Permitiria que se mantivessem todas as terras sob domínio privado quando da promulgação da Constituição de 1988.

Permitiria tudo?

Esta cláusula seria o equivalente da anistia que os ruralistas conseguiram no Código Florestal. Mas dessa vez não se trataria de escapar de multas e de ter de recompor paisagens degradadas. Seria legalizar e perpetuar o esbulho. Se uma lei como essa passar, será a destruição dos direitos territoriais indígenas.

As condicionantes do STF e a portaria da AGU que a senhora citou foram muito criticadas por indígenas e antropólogos. Quais são os problemas?

Várias dessas condicionantes surgiram como uma forma de permitir um consenso entre os ministros do STF em relação ao caso Raposa Serra do Sol. Quando a Advocacia-Geral da União quis estender a outros casos essas condicionantes, que ainda dependem de uma análise mais aprofundada do próprio Supremo, e que foram estabelecidas para aquele caso concreto, ela tentou consolidar abusivamente uma interpretação desfavorável aos índios.

Cite um exemplo.

Um exemplo é a alegada proibição de ampliação de terras indígenas. Essa condicionante se referia ao caso da Raposa, cuja demarcação havia sido validada pelo tribunal: não caberia ampliação de uma área recém demarcada. Quando se aplica essa mesma condição às terras guaranis, demarcadas em outro contexto, décadas atrás, fica evidente o absurdo. Nesse sentido, a portaria 303 é muito grave, pois denota uma intenção evidente de prejudicar os direitos indígenas em favor de interesses econômicos, contrariando toda a história da própria AGU, que sempre se destacou na defesa desses direitos.

O governo quer envolver a Embrapa, entre outros órgãos, nos processos de demarcação. Para alguns, há uma tentativa de enfraquecer a Funai. Qual a opinião da senhora?

A presidenta parece estar cada vez mais refém do PMDB e do agronegócio, que se aliou aos evangélicos. Esse bloco se opõe ferozmente à demarcação e à desintrusão (retirada de invasores) das áreas indígenas.

Marta Azevedo (presidente da Funai que deixou o cargo em junho) anunciou desde sua posse que daria prioridade à situação nas regiões onde se concentram os interesses dos fazendeiros. Foi um feito no ano passado conseguir a desintrusão, após 20 anos, da área Xavante Marãiwatsede. Com isso, cutucou-se a onça com vara curta.

Há vários modos da mão direita do governo enfraquecer a causa dos índios. Uma é retirando atribuições da Funai. Outra é deixando-a sem dinheiro. E outra ainda é colocando como presidente alguém a serviço de outras agendas.

Corre o boato de que o senador Romero Jucá (PMDB-RR), que firmou sua carreira política como presidente da Funai e cuja atuação foi muito criticada, gostaria de colocar no posto uma pessoa sua.

Ganha força no Congresso a ideia de tirar do Executivo a responsabilidade exclusiva pelas demarcações. Que tal?

Se a PEC 215 (Proposta de Emenda à Constituição) for aprovada, acabarão os processos de demarcação de terras indígenas, pois os direitos dessas minorias serão submetidos aos jogos de poder de todos os grupos de interesse representados no Congresso Nacional, sobretudo à poderosa bancada ruralista.

Seria colocar a raposa para cuidar do galinheiro. A demarcação deixa de ser uma atividade de caráter eminentemente técnico, como é hoje, e passa ser exclusivamente política.

Mas o Projeto de Lei Complementar 227/2012 (que define bens de interesse da União para fins de demarcação) é muito mais grave. É um rolo compressor esmagando a Constituição Federal.

Em que medida o Poder Judiciário é corresponsável pela demora nas demarcações e pelos conflitos?

Estima-se que que pelo menos 90% das terras em processo de demarcação estão judicializadas. As demoras são às vezes absurdas. No sul da Bahia, o caso Pataxó levou quase 100 anos para ser julgado pelo STF. No Mato Grosso do Sul existem casos que estão há mais de 30 anos em processos judiciais.

Há uma tendência crescente e preocupante do Judiciário de paralisar processos de demarcação administrativa logo em seu início, com base na simples apresentação de títulos de propriedade dos fazendeiros. Teses que há alguns anos atrás não vingavam, por não serem condizentes com a Constituição, começam a ganhar espaço no Judiciário.

Isso tem atrasado muitos processos demarcatórios, em todas as regiões do país, e contribuído para aumentar o grau de conflito em muitos casos. É o que vem ocorrendo no Mato Grosso do Sul.

Justiça que tarda não é justiça. No caso dos guaranis e caiovás do Mato Grosso do Sul, há gerações inteiras que nunca puderam viver sua cultura. A organização social tradicional não tinha como ser mantida, costumes e rituais ligados à cultura do milho não puderam ser realizados. Isso não seria etnocídio?

Há relação entre a morte de um terena no Mato Grosso do Sul por forças policiais numa reintegração de posse de uma área já declarada indígena e os protestos de mundurucus em Belo Monte, no Pará?

Nos dois casos, a Polícia Federal atuou contra os índios, e isso é inédito. Mas a relação é mais profunda.

No Mato Grosso do Sul consumou-se um esbulho de terras que vitimou em particular os terenas e os caiovás. Estes, aliás, em situação muito pior do que a dos terenas. Esse mesmo processo, que já estava em vigor no chamado arco do desmatamento, no norte de Mato Grosso e sudeste do Pará, está agora atingindo o sudoeste do Pará e do Amazonas, ou seja, o Tapajós, onde vivem os mundurucus.

Em suma: os mundurucus podem bem ser os caiovás e terenas de amanhã. E os caiovás têm uma média de 0,5 hectare por família (índice considerado abaixo do mínimo necessário para a própria subsistência).

O governo anunciou que vai indenizar fazendeiros em Sidrolândia (MS) que estão em área já declarada de terenas. Antes, as autoridades diziam que não havia respaldo legal para esse tipo de solução. O que mudou?

Não se trata de comprar terras, mas de indenizar os detentores de títulos de propriedade que, décadas atrás, foram irregularmente emitidos pela União.

Os títulos eram irregulares na medida em que incidiam sobre terras indígenas. Portanto, não se aplica a todas as áreas onde exista conflito com particulares, mas só naquelas onde a União está na origem do conflito, repassando terras indígenas a terceiros.

Para isso não é necessário mudar uma vírgula da legislação vigente. Depende apenas da consolidação de um entendimento jurídico pela AGU e de vontade política de desembolsar os recursos.

O que o ministro Gilberto Carvalho (Secretaria Geral) anunciou é a possibilidade de usar recursos do Tesouro para compensar por títulos de boa fé que alguns fazendeiros possuem em terras que estão judicializadas no Mato Grosso do Sul.

Os Estados também emitiram títulos sobre terras indígenas, e muito. No Mato Grosso do Sul, a Assembleia Legislativa aprovou por unanimidade a criação de um fundo para compensar em dinheiro títulos de boa fé em terras indígenas. É uma solução semelhante à que o governo federal está propondo. Mas o fundo do Mato Grosso do Sul não tem um tostão. No caso da União, já há uma emenda parlamentar aprovada que destina R$ 50 milhões para acordos.

O importante agora é priorizar os casos mais dramáticos que envolvem os caiovás. E impedir o favorecimento de grandes fazendeiros e a abertura de uma nova indústria de indenizações, que já sangrou o Tesouro na década de 80.

Gilberto Carvalho também disse que o Brasil está prestes a deixar a lista dos países acusados de desrespeitar a Convenção 169 da OIT, documento que prevê consulta prévia aos indígenas antes de decisões que possam afetar seus direitos, como a construção de hidrelétricas. Há motivo para comemorar?

A Secretaria Geral da Presidência vem fazendo um trabalho admirável dentro do governo, tentando promover a regulamentação da consulta prévia aos povos indígenas, como determina a Convenção 169. Mas falta combinar com o restante do governo, que age em sentido contrário.

Veja o caso da implantação de hidrelétricas goela abaixo dos povos indígenas no Tapajós: o governo diz que quer consultá-los sobre o complexo de hidrelétricas, mas ao mesmo tempo já marca data para o leilão e inclusive para a emissão da licença ambiental das que ele considera principais. Que consulta é essa?

Uma verdadeira consulta se dá nas comunidades – e não só com as lideranças ou organizações indígenas -, no tempo delas e em língua que elas entendam e possam se expressar. E não pode ser uma atividade pontual, e sim um processo que acompanhe todas as fases do projeto.
Se está tudo decidido de antemão, vai-se consultar os índios sobre o que? Se querem bolsa-pescado ou tanques de piscicultura depois que os peixes do rio sumirem? A cor da parede da barragem?

Houve um aumento significativo da população indígena entre 1991 e 2000, conforme os Censos desses anos. Mas de 2000 a 2010, o crescimento foi proporcionalmente menor do que na população em geral. Alguma hipótese para essa “volatilidade demográfica”?

Os demógrafos explicam esse fenômeno. A categoria “indígena” surgiu no Censo de 1991. Até então a maioria dos índios se declaravam pardos, e muitas vezes também negros ou brancos. Em 1991 e em 2000, houve uma grande migração: muitos que se declaravam anteriormente pardos passaram a se declarar indígenas.

Isso provavelmente incluía o que (o antropólogo) Darcy Ribeiro chamou de “índios genéricos”, aqueles que, sendo descendentes de índios, não viviam em aldeias nem conheciam os povos a que pertenciam seus pais ou avós. É o que explicaria 60 mil pessoas que se declararam indígenas em São Paulo no Censo de 2000.

Já no Censo de 2010, é possível que o fato de se perguntar também a etnia e a língua indígena que se falava tenha inibido a auto-declaração desses descendentes de índios. Uma parte da variação resultou, portanto, do próprio Censo.

Mas, desde 1991, observa-se um crescimento demográfico maior da população indígena do que aquele da população não indígena.

O crescimento entre 1991 e 2000 foi da ordem de 3,5% ao ano em média, e o ocorrido entre 2000 e 2010 foi também dessa mesma ordem. Mas mantem-se um diferencial na mortalidade infantil: os indígenas ainda possuem uma taxa de mortalidade infantil muito maior do que aquela verificada entre os negros e brancos e amarelos.

A ideia, como princípio, de que o índio tem direito à terra nunca foi muito questionada no Brasil, conforme a senhora mesmo já disse. A Constituição não só consolidou esse entendimento como estabeleceu prazo de cinco anos para todas as demarcações. Por que isso não foi resolvido até hoje?

A legislação colonial e todas as constituições do Brasil sempre reconheceram os direitos dos índios a suas terras. Mas uma coisa é o princípio, outra sua aplicação. Na fábula clássica, o lobo encontra justificações sucessivas para devorar o carneiro. É que, como diz La Fontaine (escritor francês do século XVII), “a razão do mais forte é sempre a melhor”.

Estamos assistindo a um remake do Brasil passado, como se o século XX nunca houvesse existido. Voltamos a ser exportadores de commodities, voltamos a explorar riquezas sem consideração pelos custos humanos e ambientais. E voltamos também ao expediente dos séculos XVI e XVII: afirma-se o princípio, mas abrem-se exceções que o tornam inócuo.

É o que tenta fazer o Projeto de Lei 227/2012: define o relevante interesse da União com tal latitude que as garantias constitucionais dos índios se tornam letra morta.

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