O Mecanismo de Desenvolvimento Limpo do Protocolo de Kyoto sobre mudança climática terminou gerando um incentivo perverso que ganhou proporções de fraude na Europa, financiada por corporações dos Estados Unidos.
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por Stefano Valentino*
Uma fábrica da Dow Chemical às margens do Lago Michigan, nos Estados Unidos. Foto: Domínio público
Bruxelas, Bélgica, 30 de abril de 2012 (Terramérica).- Grandes corporações dos Estados Unidos, como Dow Chemical, ConocoPhillips, Chevron e Cabot Corporation, se servem de um questionado negócio de créditos de carbono para compensar no papel sua contaminação climática na Europa, conforme mostra a seguinte investigação. A Dow foi a principal compradora. A empresa possui fábricas de produtos plásticos e químicos que emitem dióxido de carbono na Alemanha, Bélgica, Espanha, Holanda e Polônia.
Juntas ocupam o 21º lugar entre os cem principais compradores europeus de certificados de redução de emissões de carbono (CRE) originados em 19 projetos de duvidosa legitimidade.
As geradoras de energia estabelecidas na União Europeia (UE), algumas delas subsidiárias de empresas norte-americanas, estão obrigadas a reduzir sua contaminação com gases-estufa – que aquecem a atmosfera – adotando tecnologias mais limpas ou compensando suas emissões mediante a compra de CRE. Para as empresas sai mais barato compensar suas emissões do que reduzi-las realmente. E, pelas debilidades das normas europeias, podem fazê-lo. Os CRE se incluem no contexto do Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL), do Protocolo de Kyoto, único tratado internacional que obriga as nações industriais que o assinaram a reduzirem sua contaminação climática.
Cada CRE equivale a uma tonelada de dióxido de carbono que não foi lançada na atmosfera. E é entregue a favor do responsável por um projeto aprovado, após certificar que a redução realmente aconteceu. Depois, pode gerar instrumentos de comercialização, sujeitos às leis da oferta e da procura. O MDL foi criado pela Organização das Nações Unidas (ONU) para que os países industrializados subsidiassem a mitigação da mudança climática nas nações em desenvolvimento.
No entanto, acabou criando um incentivo perverso usado para maximizar os lucros de um punhado de manufaturas de gases industriais, a maioria localizada na Índia e na China, que obtiveram 19 desses projetos. A chinesa Jiangsu Meilan Chemical e a indiana Navin Fluorine International, entre outras, se comprometeram a capturar e destruir HFC-23, um resíduo da produção do gás refrigerador HFCF-22 (hidroclorofluorocarbono), proibido na União Europeia e nos Estados Unidos por esgotar a camada de ozônio.
O HCFC-22 também é um supergás-estufa, 1.810 vezes mais potente do que o dióxido de carbono, e seu subproduto HFC-23 o é 11.700 vezes mais. Contudo, as empresas indianas e chinesas acabaram produzindo mais desse gás e recebendo muito menos CRE do que os necessários, segundo uma pesquisa do painel de especialistas em metodologia do MDL. Em junho de 2010 as organizações não governamentais ambientalistas CDM Watch, com sede em Bonn, e Agência de Pesquisa Ambiental (EIA), de Londres, descobriram este flagrante mau uso do MDL e apresentaram provas.
“Os certificados de HFC-23 não representam verdadeiras reduções de gases-estufa”, disse via email Diego Martínez-Schuett, da CDM Watch. “E seus compradores usaram essas falsas reduções como permissões para contaminar mais na Europa”. Os 19 projetos de destruição de gás industrial aprovados pelo MDL acumularam quase 500 milhões de créditos no valor de US$ 3,3 bilhões. Cerca de 90% deles inundaram a UE, e constituem mais da metade do total de compensações de emissões do bloco.
Entre 2009 e 2010, as corporações norte-americanas adquiriram quase um milhão de créditos de HFC-23 ao preço médio de US$ 16 a unidade. Desde então “gastaram” pelo menos US$ 16 milhões em supostas reduções de emissões. A mesma conduta tiveram seus competidores europeus, como as britânicas BP e British Shell, a alemã RWE, a norueguesa Statoil, o grupo ítalo-espanhol Enel, e a francesa EDF.
As dez companhias transatlânticas mais conhecidas entre as cotadas na principal bolsa de valores mundial, a Nyse-Euronext, ingressaram US$ 254 milhões em falsos créditos, sem contar os dados de 2011, ainda não divulgados. Em junho do ano passado, os reguladores europeus decidiram proibir estes CRE, mas a medida só será efetiva a partir de maio do ano que vem. “A UE recebeu pressões dos investidores para adiar a proibição, inicialmente prevista para 1º de janeiro de 2013”, disse a ativista Natasha Hurley, da EIA.
No entanto, a porta continua aberta para que Dow, Shell e demais empresas contaminadoras adquiram outro 53 milhões de falsos CRE. As empresas norte-americanas asseguram que ignoravam a natureza ilegítima dos créditos de HFC-23 antes que a UE os descartasse. O que importa agora é “o que farão os compradores desses CRE para legitimar suas medidas de compensação”, advertiu Rob Elsworth, da Sandbag, uma organização não governamental que investiga a integridade do comércio de emissões e que somou as cifras usadas neste artigo para mostrar a implicação das empresa.
A pergunta foi feita a várias dessas companhias. “Nos últimos anos usamos esses CRE para cumprir”, respondeu o responsável de comunicação da filial da Dow na Bélgica, Holanda e Luxemburgo, Drea Berghorst. “Continuaremos cumprindo as normas, o que significa que deixaremos de usar os CRE de gás industrial em abril de 2013”, acrescentou. Chevron e Cabot responderam de modo semelhante, sem descartar a opção de comprar mais créditos de HFC-23 enquanto estiverem em circulação.
“A Chevron respeitou e continuará respeitando todos os aspectos exigidos pelas normas europeias de comércio de emissões”, disse Sean Comey, assessor de comunicação na sede mundial da empresa, na Califórnia. A companhia se valeu destes créditos para compensar emissões nos poços marinhos de petróleo que explora na Grã- Bretanha. “Trabalhamos com um agente financeiro de prestígio, a JP Morgan, para comprar esses CRE e ordenamos que todos fossem certificados e válidos”, respondeu Vanessa Apicerno, especialista em relações com a mídia da sede central da Cabot, em Boston. Esta empresa usou os CRE para compensar a contaminação que geram suas manufaturas de negro-de-fumo e termoplásticos na França e na Itália.
A ConocoPhillips, que empregou os créditos para suas refinarias na Grã-Bretanha e na Noruega, não quis fazer comentários. Agora, mais do que nunca, as empresas têm boas razões para usar dinheiro de acionistas em investimentos que agravam a mudança climática. De fato, os intermediários tentam vender apressadamente os remanescentes destes CRE antes que se tornem lixo em 2013, e empurram os preços para baixo. Em fevereiro, as cotações eram de apenas US$ 6 a tonelada, depois de ter atingido um pico de US$ 33.
“As empresas buscam a forma mais barata de cumprir as normas. Os atores do mercado são livres para terem suas considerações éticas sobre como agir diante da mudança climática, mas o sistema é regido pela economia”, afirmou Richard Chatterton, analista dessa área da Bloomberg New Energy Finance. As estatísticas mostram que a diferença de preços importa mais do que a qualidade do certificado.
“Os CRE comuns (como os de HFC-23) ainda constituem mais de 95% dos volumes comercializados a futuro”, afirmou Sara Ståhl, diretora de mercados globais da Green Exchange, uma operadora da bolsa dedicada a derivados ambientais. “E são apenas US$ 0,46 mais baratos do que nossos CRE plus futuros (não HFC-23)”, acrescentou.
Considerando a quantidade adicional de CRE inflados admitida pela UE até o próximo ano, pode-se estimar que a economia para o mundo empresarial será de US$ 24 milhões.
A verdadeira discussão é se salvar estas moedas vale mais para as empresas do que salvar o mundo real do aquecimento.
* Publicado sob acordo com a Freereporter www.freereporter.info. Esta pesquisa contou com apoio do Fund for Investigative Journalism e da Society of Environmental Journalists.