O Centro de Pesquisa e Apoio aos Trabalhadores – CEPAT, parceiro estratégico do Instituto Humanitas Unisinos – IHU e Cesar Sanson, professor na Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN, colaborador do IHU, ao longo de 2011 produziram análises da conjuntura semanais a partir da (re)leitura das “Notícias do Dia‘ publicadas, diariamente, no sítio do IHU e da revista IHU On-Line publicada semanalmente. Como fecho do trabalho desse ano, apresentamos uma Conjuntura Especial que retoma os grandes conteúdos abordados pelas conjunturas semanais no ano de 2012.
http://www.ihu.unisinos.br/noticias/516623-conjuntura-da-semana-02-01-2013
Sumário:
Balanço socioambiental
Agendas ambiental e indígena sofrem retrocessos
Código Florestal: feito sob medida do agronegócio
Transposição do São Francisco: obra boa para a indústria da seca
Matriz energética: de costas para o futuro
Brasil e a nova “corrida do ouro”
Indígenas: estorvo ou nova concepção de mundo?
Reforma Agrária agoniza
Balanço socioeconômico
Os dilemas da economia mundial e as respostas do governo brasileiro
O rastro da crise econômica mundial e o abalo nos governos nacionais
A postura da América Latina frente à crise econômica
A opção brasileira. A cara do Brasil no contexto mundial
O modelo neodesenvolvimentista do governo Dilma
A abertura do governo Dilma ao setor privado
A inclusão social via mercado
Balanço político
Caráter conservador do governo
Governo de coalizão. Indispensável?
Crise na esquerda
A esquerda que não tem medo de se nomear esquerda
Eis a análise.
O ano de 2012 foi regressivo quando olhado sob a perspectiva dos movimentos sociais. Na área socioambiental, econômica e política a agenda se fez mais de permanências e retrocessos do que avanços.
Balanço socioambiental
Agendas ambiental e indígena sofrem retrocessos em 2012
O descaso com que o governo tratou, em 2012, a agenda socioambiental, é prova contundente de que o país se coloca de costas para a problemática e caminha na contramão do debate mundial. Aos poucos vai se sedimentando a percepção de que o governo brasileiro, apesar da retórica quando fala de temas relacionados ao meio ambiente, não percebe – ou não quer perceber – que é um dos poucos países que poderia oferecer uma alternativa à crise civilizacional, que tem na mudança climática um dos seus fatores preponderantes.
No debate ambiental o governo não pecou por omissão. Foi ainda mais grave. Foi conivente, negligente e leniente com o retalhamento dos temas que envolvem a agenda ambiental e indígena. O governo tratou o tema como um aborrecimento que lhe cria problemas e divide a sua base de apoio político. Há sinais evidentes de que se experimentou nesta área retrocessos injustificáveis para um país com as potencialidades do Brasil.
Na agenda do governo, os temas prioritários foram os econômicos e sociais. Os problemas ambientais e indígenas foram laterais, secundários. Estorvos que vira e mexe voltam à tona e que precisavam ser administrados para se evitar maiores danos à base política. Eventuais recuos do governo em relação ao atropelamento da agenda ambiental e indígena apenas se deram quando houve forte pressão do movimento social e ambientalista ou devido ao mal-estar junto à comunidade internacional.
As agendas ambiental e indígena não foram estratégicas no governo Dilma Rousseff e não se inserem no seu projeto de Nação. Não se viu, por parte do governo, iniciativas ousadas nessas áreas. Pelo contrário, a agenda governamental é reativa e subordinada aos setores conservadores, como se viu em questões como o Código Florestal, a matriz energética e mineral, a transposição do Rio São Francisco e a agenda indígena, entre outros.
Entretanto, esse modus operandi do governo – mas também em muitos casos do Estado – não está dissociado das tendências atuais do capitalismo no mundo, sedento de recursos naturais e de commodities, razão pela qual, aliás, toda a América Latina volta a figurar no cenário mundial como grande – e último? – “reservatório e fornecedor de recursos naturais” sobre o qual empresas multinacionais se lançam qual abutres sobre a carniça.
O Brasil participa desta expansão capitalista através do modelo neodesenvolvimentista. As bases do modelo neodesenvolvimentista se fazem a partir da recuperação do papel do Estado como indutor do crescimento econômico. Um Estado que alavanca a infraestrutura para assentar as cadeias produtivas do capital privado.
Uma das pontas de lança do modelo em curso é a hiperexploração de uma das últimas fronteiras do país: a Amazônia legal. A região já foi palco de um primeiro ciclo de exploração, nos anos 70, a partir da tese da geopolítica de segurança dos militares que decidiram ocupá-la com o projeto de transferência de populações para a região. O ciclo desenvolvimentista em curso na região nesse momento, entretanto, é incomparavelmente maior e o aumento da violência e dos impactos ambientais e sociais na região está relacionado a essa nova dinâmica.
Ainda mais grave, e na raiz da tensão dos acontecimentos sociais e ambientais, está o fato de que o modelo de exploração é exógeno à região e implantado a custa das riquezas e populações locais. Os grandes projetos que chegam à região estão voltados para interesses externos. Por um lado, tem-se a exportação de madeira, da soja, da carne, de ferro-gusa e alumínio, sobretudo para países que não querem arcar com os custos socioambientais dessas atividades, que são pesados; por outro, e para viabilizar essa lógica econômica, tem-se os grandes investimentos em projetos de infraestrutura energética – hidrelétricas – e de apoio logístico – rodovias e hidrovias. A região presta-se ainda à expansão dos interesses do agronegócio – soja, etanol e pecuária.
Plataforma de exportação. É nisso que vem se transformando a Amazônia legal, uma região que produz commodities – primarização da economia – para outros países e para o consumo do Brasil desenvolvido, a região sudeste. É nesse contexto que se insere a construção de mega-hidrelétricas – Belo Monte, Complexo Madeira, Complexo Tapajós, abertura de rodovias e hidrovias, ampliação da exploração de madeira e minérios, expansão da pecuária e das monoculturas da soja e da cana-de-açúcar.
Na contramão, mas como constitutivo desse modelo, deu-se nos últimos anos um recrudescimento da violência na região amazônica brasileira sofrida por posseiros, mas também por indígenas. Esses fatos, aparentemente isolados, relacionam-se a partir da dinâmica expansionista do capitalismo brasileiro na região Norte do país e que tem a Amazônia legal como novo cenário.
Por essas razões, em março passado, diversas organizações da sociedade civil lançaram em São Paulo, em uma coletiva de imprensa, um documento para alertar a sociedade brasileira sobre os retrocessos que vêm sendo constatados na área socioambiental e estimular a reflexão para incentivar ações que revertam esse quadro.
A timidez e o retrocesso na agenda socioambiental tornam-se especialmente visível em alguns temas: Código Florestal, transposição do Rio São Francisco, matriz e política energética e no tratamento dado à questão indígena. Vejamos, embora sucintamente, cada um em particular.
Código Florestal: feito sob medida do agronegócio
A Reforma do Código Florestal mobilizou a agenda política e social brasileira ao longo dos últimos anos. As discussões em torno da reforma dividiram-se em dois grandes setores, com seus protagonistas e interesses: de um lado, setores ligados ao agronegócio e com presença retumbante no Congresso; de outro, o movimento ambientalista, parcelas do movimento social. Os primeiros defendiam uma maior liberdade sobre os recursos naturais, ao passo que os outros defendiam maior defesa da natureza. No meio, balançando ora mais para um lado ou para o outro, o governo. Entretanto, a balança pesou mais para o lado dos interesses dos ruralistas, bem articulados, mas também favorecidos por um governo titubeante e fraco na condução da reforma do Código Florestal. É verdade que a presidente Dilma fez vários vetos, mas não foi ao essencial. Os movimentos ambientalistas e sociais alimentaram, por alguns instantes, a esperança de que Dilma vetasse a íntegra do Código Florestal. Não o fez e assim aprovou uma legislação que promove a anistia de desmatadores e reduz a proteção ambiental.
Transposição do São Francisco: obra boa apenas para a indústria da seca
A transposição do São Francisco foi uma obra sonhada e defendida com teimosia por Lula e jogada no colo da Dilma, que não sabe exatamente o que fazer com essa “herança maldita”. Vários anos depois, ela é uma obra inacabada, mas que já entra para a história do Brasil como uma das mais caras do PAC (Plano de Aceleração do Crescimento). Já se coloca em dúvida se um dia a obra terminará e, ainda mais grave, vai se confirmando a denúncia da ineficácia da transposição para levar água aos que mais dela precisam.
Empreiteiras ávidas por mais recursos, obras paradas, cronograma adiado, problemas com licitações, aumento bilionário nos custos, canais rachados, túneis desabando, deslizamento de solo, empregos frustrados e caatinga devastada envolvem a transposição do Rio São Francisco.
A transposição voltou aos noticiários em 2012 pelo seu lado mais triste, isto é, pelo viés do escândalo em que se transformou. E assim vai se confirmando tudo o que os movimentos sociais, cientistas e especialistas diziam da obra: “A transposição do São Francisco é um erro”. Em se falando nisso, é impossível não se trazer presente toda a luta contra a transposição do São Francisco de dom Luiz Cappio, bispo de Barras (BA). Cappio, em seus dois jejuns, em 2005 e 2007, chamou a atenção para os equívocos da obra e profetizou que a mesma era um grande erro e que não seria concluída.
Em uma das entrevistas que concedeu à IHU, em 2008, dom Luiz Cappio afirmou que “a transposição não irá acontecer porque é mentirosa, antiética, antissocial, injusta e economicamente inaceitável”. Cappio dizia na oportunidade: “O projeto é socialmente injusto porque vai beneficiar um pequeno grupo, enquanto que projetos alternativos podem beneficiar quase toda a população do Nordeste do semi-árido. Ela é ecologicamente insustentável porque, enquanto o projeto de transposição agride a realidade do Rio São Francisco, os projetos alternativos são altamente sustentáveis. E a transposição é eticamente inaceitável porque é mentirosa, enquanto os projetos alternativos estão aí para poder atender as necessidades do povo”.
Em outra entrevista à IHU, em 2010, Cappio reafirmou: “O tempo mostra a verdade de todas as coisas e vai mostrar o significado da nossa luta”. E o tempo está dando “razão ao bispo”. Na época, sua atitude foi considerada uma loucura, pois se opunha ao “desenvolvimento” do país. Mas o bispo entrevia o que o governo não queria enxergar: que a obra era boa apenas para a indústria da seca e que, portanto, as promessas dos benefícios não chegariam aos mais necessitados, em nome dos quais a obra era defendida e empurrada goela abaixo a toda a sociedade. Além disso, o andamento das obras confirma as críticas do movimento social contrário ao projeto.
Matriz energética: de costas para o futuro
O mundo é cada vez mais voraz, sedento e insaciável por energia. Os países em todo o planeta perseguem obsessivamente o aumento da geração de energia para dar conta da crescente demanda da produção e do consumo. O Brasil não foge à regra e o tema da energia postou-se como um dos mais importantes na agenda brasileira nos últimos anos. Sem energia é o caos, o “apagão”, aliás, cuja sombra paira constantemente sobre o país.
A política desenvolvimentista brasileira caracteriza-se, em termos de matriz e política energética, pelo seguinte: a) subordinação da questão ecológica ao mito do crescimento econômico ilimitado; b) produção de energia para a produção de commodities de exportação; c) por uma matriz energética oligopólica, concentradora, com enormes impactos sociais e ambientais, num momento em que o mundo já dispõe de alternativas mais limpas e eficientes.
A “necessidade” de energia faz o Brasil avançar rumo à nova – e última? – fronteira energética, que é a Amazônia. Ela é o palco dos últimos e mais vultosos investimentos em hidroelétricas: Jirau e Santo Antonio, no rio Madeira, Teles Pires, no Mato Grosso, Santa Isabel, no Araguaia, Belo Monte, no rio Xingu, e o Complexo Tapajós, este último ainda mais devastador ambientalmente que Belo Monte. Mas a lista continua.
Não se deve menosprezar o impacto ambiental e social destas obras, assim como as condições de trabalho existentes nestes canteiros de obras, que já resultaram em diversas revoltas e greves dos trabalhadores, especialmente em Jirau e Belo Monte.
No contexto desta expansão energética, uma pergunta feita com frequência é a seguinte: energia para quê e para quem? Ou ainda, com outras palavras, a quem se destina tanta energia? Há aqui uma parceria entre o setor energético e de extração mineral, uma vez que os processos de beneficiamento mineral são intensivos no consumo de energia. Primeiro chegam os consórcios de energia para em seguida se instalarem as mineradoras, que contam inclusive com tarifas subsidiadas de energia. Para ter uma noção do que isso representa, basta ver o seguinte: “Para produzir 432 mil toneladas de alumínio a Albrás, instalada em Barcarena, consumiu a mesma quantidade de energia elétrica das duas maiores cidades da Amazônia, Belém e Manaus. A empresa responde por 1,5% do consumo de eletricidade do Brasil com seus quase 200 milhões de habitantes. A energia de Tucuruí, que entrou em operação na década de 1980, ainda hoje é consumida prioritariamente pela Albrás e pela Alumar, em São Luiz, no Maranhão. E ambas pagam tarifas subsidiadas, diga-se de passagem”, escreve Juliana Malerba, da FASE do Rio.
Celio Bermann, professor da USP, traz outra informação: “se pegarmos a matriz de consumo setorial de energia elétrica no Brasil, praticamente 30% da energia é consumida pelos seis setores chamados de intensivos em energia. São eles: o cimento, a produção de aço, a produção de ferro-ligas (ligas a base de ferro), a produção dos metais não-ferrosos (principalmente, o alumínio primário), a produção de química e, finalmente, o setor de papel e celulose. Esses seis setores consomem 30% da energia produzida no Brasil”. Commodities que, em sua grande maioria, abastecem o mercado mundial.
Na análise da questão energética não se pode esquecer o Plano de Expansão Decenal de Energia 2021. O Plano é atualizado anualmente e prevê os rumos energéticos do Brasil para os próximos dez anos. O Plano Decenal anuncia forte continuidade em investimentos na área de energia fóssil – petróleo e gás – e em hidrelétricas. As novidades ficam por conta da revisão, na esteira do desastre de Fukushima, na área da energia nuclear – por ora segue apenas a conclusão de Angra 3 – e num incremento maior na energia eólica. Da energia solar sequer se fala.
O Plano, como se pode ver, é uma radiografia do modelo neodesenvolvimentista, mas de costas para o futuro energético. É tímido em energias limpas. A presidente Dilma, em abril passado, criticou as pessoas contrárias à construção das hidrelétricas na Amazônia dizendo que elas vivem num estado de “fantasia”. Segundo a presidenta, “ninguém numa conferência dessas [Rio+20] aceita, me desculpem, discutir a fantasia. Ela não tem espaço para a fantasia. Não estou falando da utopia, essa pode ter, estou falando da fantasia”, afirmou Dilma. Essa afirmação foi criticada por ser conservadora e pouco aberta às matrizes alternativas de energia já existentes no Brasil, como a eólica e a solar, principalmente.
Dentro de um padrão conservador, as exigências da economia por mais petróleo, carvão, gás, eletricidade, energia nuclear e biocombustível continuarão em expansão. Contudo, diante de recursos naturais que se mostram finitos, os países precisam ousar em novas alternativas de organização e produção de energia, mudando completamente de concepção e racionalidade sobre o que significa, hoje, consumir energia.
Pensando as novas possibilidades oferecidas pelos desdobramentos da revolução informacional e comunicacional (Internet), o economista estadunidense Jeremy Rifkin destaca as dimensões distributiva e colaborativa, forjadas por uma “tecnologia de comunicação revolucionária”, como eixos norteadores da relação entre as demandas do ser humano e as novas fontes de energia. Diferente do modelo concentrador e centralizador dos grandes empreendimentos energéticos do século XX, caracterizados pelo autoritarismo e poder hierárquico, para Rifkin o “direito de acesso ao conhecimento, a relação paritária, a troca de informações e de música”, comuns na Internet, podem ser valores basilares para se pensar a produção e o consumo de energia na atualidade. Será na superação dos grandes oligopólios energéticos, por meio de fontes descentralizadas, que haverá uma democratização da energia, superando o sistema vertical, estabelecido até aqui, por um sistema horizontal na distribuição de energia.
Ao contrário das velhas e depredadoras matrizes energéticas, segundo Rifkin, “a energia renovável distributiva é encontrada em qualquer metro quadrado do mundo. Vem do sol, do vento, do calor debaixo do solo, do lixo, dos compostos orgânicos gerados pelos processos agrícolas, das marés e das ondas do mar”. Tudo isto acarreta uma verdadeira revolução na forma de concebê-la e utilizá-la, provocando uma quebra de paradigmas.
Nesta linha, chamamos a atenção para a Campanha Nacional pela Produção e Uso da Energia Solar Descentralizada lançada pelo Fórum de Mudanças Climáticas e Justiça Ambiental (www.fmclimaticas.org.br), que reivindica que haja subsídios e financiamento para os consumidores adquirirem seus geradores fotovoltaicos, e que em certos casos os equipamentos sejam fornecidos a custo zero.
“A geração distribuída (também conhecida como ‘descentralizada’) caracteriza-se como a produção de eletricidade próxima ao consumo, dispensando a linha de transmissão e os complexos sistemas de distribuição para atender ao consumidor final. Trata-se de uma forma de geração que já foi bastante utilizada até o final da década de 40 do século passado. Mas que depois foi substituída pela geração centralizada, com a construção de usinas de grande porte distantes do consumidor final. A geração descentralizada representa uma possibilidade concreta para colaborar com a redução da curva de carga, reduzindo o consumo em horários de pico; e diminuindo a necessidade de investimentos na geração, transmissão e distribuição do sistema elétrico integrado brasileiro”, escreve Heitor Scalambrini Costa, professor associado da Univ. Fed. de Pernambuco, graduado em Física pela UNICAMP e doutor em Energética na Univ. de Marselha/Comissariado de Energia Atômica-França.
É preciso, portanto, romper com as concepções conservadoras, o que não deixa de ser também um desafio para a esquerda e os movimentos sociais.
Brasil vive nova “corrida do ouro”
“O Brasil vive uma nova ‘corrida do ouro’, silenciosa e oculta da opinião pública, mas intensa ao ponto de fazer a atividade mineradora saltar de modestos 1,6 % para expressivos 4,1% do PIB em só dez anos”. A espantosa constatação é da Marina Silva, do Meio Ambiente no Governo Lula.
O cenário desta nova corrida por minérios não é mais o Brasil “velho”, litorâneo, mas a Amazônia, o novo El Dorado, a última fronteira do capitalismo. É para essa região, distante dos olhos e do coração da maioria dos brasileiros, que se voltam as atenções das grandes corporações extrativistas. Por quê? Porque, de novo segundo a Marina Silva, “tudo indica que o conhecimento do potencial mineral só é segredo para a população; os ‘investidores’ têm o mapa da mina há tempos”.
Há diversos movimentos (quase sempre subterrâneos para quem está do lado de cá) indicando que há algo de novo no front. Entretanto, não se trata de movimentos isolados, mas muito bem orquestrados, envolvendo os interesses das grandes mineradoras de capital transnacional e do Estado, contra os interesses dos povos indígenas e ribeirinhos e à custa da degradação ambiental. O “interesse nacional” está acima dos interesses particulares, o que neste caso significa corroborar o modelo neodesenvolvimentista que vem sendo implantado em nosso país nos últimos anos.
A produção mineral só do Estado do Pará passou em apenas uma década de quase 4 bilhões de reais para 25 bilhões de reais, em 2011. Inúmeras frentes de extrativismo mineral surgiram na Amazônia apenas na última década. Na esteira desse movimento, assombra, pelo gigantesco do projeto, a chegada de uma das maiores minerados do mundo, a Belo Sun Mineração, subsidiária brasileira da Belo Sun Mining Corporation, que pertence ao grupo canadense Forbes & Manhattan Inc., cujos meandros e impactos foram analisados na Conjuntura da Semana de 24 de setembro passado. O projeto será instalado na Volta Grande do Rio Xingu, próximo à hidroelétrica de Belo Monte, cujo investimento é de US$ 1,076 bilhão para a extração e o beneficiamento de ouro.
Indígenas: estorvo ou nova concepção de mundo?
A problemática indígena faz interface com o modelo de desenvolvimento implantado no Brasil, com a expansão sobre a Amazônia Legal, com o tema da energia e mineração, entre outros. Os interesses expansionistas e extrativistas, assim como aqueles do agronegócio, entraram em choque com o estilo de vida e as necessidades dos povos indígenas em diversas partes do Brasil. Em decorrência, os conflitos envolvendo terras indígenas recrudesceram. Particularmente preocupante é a situação dos índios Guarani-Kaiowá, no Mato Grosso do Sul.
Também na questão indígena houve retrocessos significativos em 2012. Apontamos alguns:
– PEC 215: Projeto de emenda constitucional que propõe transferir do Poder Executivo para o Congresso Nacional a demarcação e homologação de terras indígenas e quilombolas, além de rever os territórios com processo fundiário e antropológico encerrado e publicado. Caso aprovado significa o fim da demarcação das terras indígenas e quilombolas que se arrastam há mais de uma década. Segundo a Constituição de 1988, o processo de demarcação das terras indígenas no país deveria ter sido terminado em 1993. Até agora nada foi feito.
– Portaria 303 da AGU: A Portaria é publicada três anos depois do julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF) que homologou a demarcação da Terra Indígena (TI) Raposa Serra do Sol em área contínua, para regulamentar a atuação de advogados e procuradores em processos judiciais que envolvem áreas indígenas em todo o país. Na prática, a portaria coloca em vigor as 19 condicionantes pelo STF definidas para demarcação e direito de uso de terras indígenas na época do julgamento. Entre os pontos polêmicos da portaria, estão a proibição da ampliação de terras indígenas já demarcadas e a garantia de participação de estados e municípios em todas as etapas do processo de demarcação.
A Portaria 303 proíbe a comercialização ou arrendamento de qualquer parte de terra indígena que possa restringir o pleno exercício do usufruto e da posse direta pelas comunidades indígenas, veda o garimpo, a mineração e o aproveitamento hídrico pelos índios e impede a cobrança, pelos índios, de qualquer taxa ou exigência para utilização de estradas, linhas de transmissão e outros equipamentos de serviço público que estejam dentro das áreas demarcadas.
Entretanto, há uma condicionante, a de número 17, muito preocupante. A portaria também confirma o entendimento do STF de que os direitos dos índios sobre as terras não se sobrepõem aos interesses da política de defesa nacional, ficando garantida a entrada e instalação de bases, unidades e postos militares no interior das reservas. A expansão estratégica da malha viária, a exploração de alternativas energéticas e de “riquezas de cunho estratégico para o país” também não dependerão de consentimento das comunidades que vivem nas TIs afetadas, de acordo com as regras. Ou seja, se colocada em prática, significa porteira aberta para os interesses do agronegócio.
– Medida Provisória nº 558: Diminui áreas protegidas da Amazônia. Exclui ilegalmente vastas áreas de Unidades de Conservação (UCs) na Amazônia para abrigar canteiros e reservatórios de grandes hidrelétricas, sem estudos técnicos e qualquer consulta às populações afetadas, entre elas indígenas, e à sociedade brasileira em geral. Concretamente, a lei redefine os limites dos Parques Nacionais da Amazônia, dos Campos Amazônicos e Mapinguari; das Florestas Nacionais de Itaituba I, Itaituba II, do Crepori e do Tapajós; e da Área de Proteção Ambiental (APA) do Tapajós.
– Mineração em terras indígenas: O governo está propondo um novo código de mineração que permitirá a exploração de terras indígenas por empresas mineradoras. O argumento do governo é que a regulamentação é necessária para que se estabeleçam regras e controle sobre a exploração das terras indígenas, que hoje ocorre de forma desordenada por garimpeiros, causando grande impacto ambiental e social – e, muitas vezes, provocando conflitos. Além disso, o Estado deixa de arrecadar tributos sobre a exploração dos recursos nacionais. Especialistas, entretanto, alertam que empreendimentos para exploração mineral instalados em terras indígenas podem causar impactos tão grandes nos povos que podem mesmo levá-los à extinção.
Os indígenas não são contra o progresso. Apenas que sonham com uma sociedade em que todos tenham as condições básicas fundamentais para o Bem Viver.
Reforma agrária agoniza
A Reforma Agrária, histórica reivindicação do movimento social brasileiro, encontra-se paralisada. O governo de Dilma Rousseff vem tendo um desempenho pífio na área. O primeiro ano do mandato de Dilma inscreveu em sua biografia uma marca: o pior desempenho desde a Era FHC na execução da Reforma Agrária. Dados oficiais do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – Incra, revelam que a presidenta em 2011 registrou a pior marca dos últimos dezessete anos no assentamento de famílias sem terra. Os números de 2011 são vergonhosos. Apenas 21,9 mil famílias de sem-terra foram assentadas no 1º ano do governo Dilma.
Em 2012, os dados disponíveis até o momento não são melhores. Até o início de outubro, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) assentou pouco mais de 4 mil famílias, número cerca de 24% inferior ao registrado no mesmo período do ano passado, segundo dados do órgão. A greve de servidores públicos federais e a troca de presidente do Incra podem explicar – não necessariamente justificar – o resultado.
Parte da paralisia da Reforma Agrária pode ser tributada ao Ministério de Desenvolvimento Agrário – MDA e ao seu braço executivo da Reforma Agrária, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – Incra. O Incra está travado. Disputas internas, greves, cortes no orçamento e burocratização tornaram o órgão inoperante. Desde o começo do governo Dilma, as coisas começaram mal. A nomeação do superintendente se deu tardiamente, três meses após o início da gestão de Dilma Rousseff e num contexto de disputas que se prorrogaram até recentemente.
A paralisia, entretanto, na Reforma Agrária não deve ser tributada apenas ao Ministério de Desenvolvimento Agrário (MDA), ao seu braço executivo, o Incra, e a falta de uma pressão maior do MST. Deve-se também e, sobretudo, a concepção de Reforma Agrária de Dilma Rousseff.
O foco de Dilma é economia, emprego e desenvolvimento e o campo nessa equação entra como uma base exportadora. Guilherme Costa Delgado, pesquisador do Ipea diz que o governo fez a “opção estratégica” pelo modelo de agronegócio, que envolve grandes propriedades e monocultura: “O agronegócio seria um jeito de inserir a economia brasileira na economia mundial, por meio da provisão de commodities, como a salvação das contas externas.” Nesse contexto, a presidente não acredita na Reforma Agrária como um mecanismo efetivo de desenvolvimento nacional, o quanto muito vincula a Reforma Agrária ao programa de erradicação da miséria.
Balanço socioeconômico
Os dilemas da economia mundial e as respostas do governo brasileiro
Neste ano de 2012, no contexto global, assistiu-se o desenrolar de uma crise com profundas dimensões, que afetou a economia de diversos países, escancarando as mazelas geradas no interior da Europa, até pouco tempo vista como modelo a ser alcançado pelos países emergentes. Na América Latina, persistiram os debates e as tentativas, muitas vezes contraditórias, de aliar crescimento econômico com distribuição de renda mais sustentabilidade. E o Brasil, dentro desse contexto, seguiu diariamente pressionado pela tensa conjuntura mundial, tendo que tomar difíceis decisões, em curtos espaços de tempo, para resguardar a própria imagem que criou, a de que possui uma economia robusta, que se traduz na melhoria de vida da população. Tais aspectos serão abordados e problematizados neste bloco da conjuntura.
O rastro da crise econômica mundial e o abalo nos governos nacionais
Em 2012, diante da crise capitalista mundial, mais uma vez ficou evidente a incapacidade de se gestar uma racionalidade ética para resolver os graves problemas gerados pela financeirização da economia, crescimento da desigualdade e suas graves consequências sociais. Na realidade, as tensões cotidianamente geradas por esse clima de incertezas, espraiado pela economia global, acarreta uma espécie de esquizofrenia geral, que afeta diretamente os diversos governos nacionais, que tateiam pela escuridão à procura de uma saída.
A crise agora não é apenas econômica, é muito maior. A “grande transformação” que se processou a partir do final do século XX, a prodigiosa (r)evolução das forças produtivas, da ciência e da técnica, paradoxalmente, dá sinais de que ao invés de conduzir a humanidade ao porto seguro, o bem viver coletivo, empurra a civilização para a barbárie. Estamos diante do enigma, como lembra o filósofo Henrique Cláudio de Lima Vaz “de uma civilização avançada na sua razão técnica, mas dramaticamente indigente na sua razão ética”.
Segundo o economista Luiz Gonzaga Belluzzo, o que está em curso, em nível mundial, é “uma tentativa de reestruturação regressiva”, ou seja, está sendo abandonado o sonho da igualdade e o modelo de Bem-Estar Social vai sendo posto de lado. Para ele, “a ética da solidariedade é substituída pela ética da eficiência e, desta forma, os programas de redistribuição de renda, reparação de desequilíbrios sociais e assistência a grupos marginalizados” vão sendo abandonados.
Uma realidade bastante visível, por exemplo, na situação que a Europa tem enfrentado. Ao longo deste ano, o mundo assistiu diversas manifestações populares contras as medidas de austeridade adotadas pelos países europeus, submissos às ordens da troika – União Europeia (UE), Fundo Monetário Internacional (FMI) e Banco Central Europeu (BCE).
Assim, o que vale é o comando do mercado e não mais do Estado. A política passa a ser subordinada pela economia – de cerne rentista. O núcleo central da globalização é determinado pelo mercado que desestrutura a sociedade do trabalho. É por conta disto que em países como a Grécia, Espanha e Portugal, o desemprego está acima da média europeia. A Itália ronda esse grupo. Pior ainda: para dar conta de tentar estancar a crise, as medidas adotadas produzem ainda mais desemprego, uma vez que se cortam investimentos e se promove arrocho salarial e cortes nos gastos sociais. Percebe-se que a economia em vez de servidora da sociedade a transformou em serva e aos poucos vai desmantelando as conquistas sociais ancoradas no Estado.
Na análise de Belluzzo, “nos Estados Unidos dos republicanos e na Europa da senhora Merkel está em curso uma tentativa de reestruturação regressiva (…) a fuzilaria dos ultraconservadores concentra a pontaria na proteção à velhice e aos doentes. Caso esse peso morto não seja extirpado, a sociedade será entregue às letargias da estagnação”. Ainda, segundo o economista, o risco está no fato de que “a ação do Estado é vista como contraproducente pelos bem-sucedidos e integrados, mas como insuficiente pelos desmobilizados e desprotegidos. Estas duas percepções convergem na direção da ‘deslegitimação’ do poder administrativo e na desvalorização da política”.
No revés das insolúveis decisões políticas para a crise capitalista mundial, o mundo tem apresentado, nestes últimos anos, uma verdadeira efervescência de organizações e manifestações sociais que questionam o poder que mantém o atual sistema financeiro mundial, além de expressarem um desejo mais profundo pela efetivação de uma real democracia. A crise de legitimidade política dos representantes do povo é cada vez mais acentuada pela incapacidade de resolverem problemas básicos da população. Foi assim que surgiu na Espanha o movimento “Democracia Real Já”, as diversas paralisações gerais na Grécia, o movimento Ocuppy Wall Street nos Estados Unidos, o movimento dos estudantes no Chile, o movimento #YoSoy132 no México, a Primavera Árabe no Oriente Médio e em países no Norte da África, entre outros. Verifica-se que há um anseio de mudanças, mas quais são os limites dessas diversas manifestações e até que ponto elas são capazes de propor alternativas aos elementos que se convencionou chamar de crise do capitalismo contemporâneo?
A postura da América Latina frente à crise econômica
A América Latina tem passado por um momento de otimismo geral, mas é preciso lembrar seu passado recente. Nos anos 1980, o continente tornou-se um laboratório do capitalismo mundial sob as orientações do ‘Consenso de Washington‘. Sendo que privatizações, desregulação, abertura indiscriminada das economias nacionais, inserção subordinada na economia internacional, fragilização do Estado, ataques aos direitos dos trabalhadores, desestruturação do mercado de trabalho, e emigrações acentuadas, caracterizaram o cenário latino-americano nos anos 1990.
Tais fatores podem explicar, em certa medida, a atual contestação do continente latino-americano às forças hegemônicas de orientação neoliberal, que resultaram numa série de governos progressistas, não necessariamente de esquerda, que em maior ou menor grau resgataram o papel do Estado como um instrumento de mitigação do fosso social.
Embora a América Latina continue ainda muito pobre e desigual, políticas sociais compensatórias vêm reduzindo a extrema pauperização. O risco é o continente adotar um modelo de inclusão via mercado – o consumo como critério de inclusão – e não via resolução de seus problemas estruturais.
Segundo a antropóloga Rita Segato, a América Latina conta com “um bloco mais sensível ao bem estar, mas que não consegue pensar a possibilidade de uma transformação, de uma melhoria na situação fora do projeto eurocêntrico. Não há uma ruptura. Ficamos ofuscados porque são governos de esquerda, mas essa novidade não é muito profunda. Entraram para competir, participar da concorrência, para emergir como bloco dentro dos mesmos princípios e balizas do capitalismo global”.
Neste sentido, as medidas tomadas para combater os efeitos perversos desta crise, mesmo sob a perspectiva desses países que emergem na resistência aos efeitos funestos do neoliberalismo, não conseguem avançar para além da superfície dos problemas estruturais desta crise sistêmica.
Na opinião de Eric Toussaint, doutor em ciência política, a crise adquiriu uma dimensão civilizacional que nos empurra para a barbárie e para colocar em causa essa crise, é preciso “pôr em causa o consumismo, a mercantilização generalizada, o desprezo pelos impactos ambientais das atividades econômicas, o produtivismo, a procura de satisfação dos interesses privados em detrimento dos interesses, dos bens e dos serviços coletivos, a utilização sistemática da violência pelas grandes potências, a negação dos direitos elementares dos povos”, todos elementos que estão no cerne da questão, que é o capitalismo.
A opção brasileira. A cara do Brasil no contexto mundial
O Brasil é mundialmente visto como uma das alavancas desta reação latino-americana em prol dos interesses regionais e da garantia do bem estar de seu povo. Desde a chegada de Lula ao poder, muitos olham para o Brasil com olhos de admiração em razão dos avanços do país em vários aspectos sociais, políticos e econômicos. O discurso predominante, desde 2003, é o de que este país está fazendo um acerto de contas com o seu passado desigual, disposto a corrigir as mazelas sofridas por sua gente através do crescimento econômico com distribuição de renda.
Neste mote, um dos carros chefes do Governo tem sido o incentivo ao consumo. Para Dilma é evidente que o modelo de desenvolvimento brasileiro esteja assentado sobre o consumo. “Não concordo com a história de que não é preciso estimular o consumo. Acho que o estímulo ao consumo vai da característica intrínseca do nosso modelo, que é um modelo de desenvolvimento com inclusão social. Estranho seria se o modelo, que tem de levar 16 milhões de brasileiros e de brasileiras a ter um padrão mínimo de consumo e renda, não fizesse ampliação do consumo no País. Por quê? Porque nós temos ainda um consumo extremamente reprimido das classes populares”, disse.
De fato, na política econômica do Governo Dilma, durante este ano, todas as vezes que se reduziu algum tipo de imposto para a linha da construção civil, eletrodomésticos ou automóveis, o foco esteve no aquecimento da economia, para se traduzir no aumento do consumo. Assim, por exemplo, nas vésperas da realização da Conferência Rio+20, o governo brasileiro diminuiu o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) de carros. Infelizmente, a indústria automobilística é uma das principais responsáveis pela crise energética mundial, e o automóvel um dos vilões da crise ambiental.
Contudo, o discurso oficial da presidente, que também foi sustentáculo de sua presença anfitriã durante a Conferência Rio+20, é o da possível conciliação entre preservação e desenvolvimento. “Nós mostramos que é possível preservar nossas florestas, nossa biodiversidade, é possível preservar nossos rios, é possível preservar nossas riquezas naturais e o país é um dos países com a riqueza ambiental da mais alta qualidade e variação”, apontou a presidente.
Embora as palavras da presidente agradem aos ouvidos, são vazias diante da voracidade do modelo desenvolvimentista de seu governo. A aposta brasileira no pré-sal, por exemplo, demonstra um enorme retrocesso na agenda ambiental. Na opinião do economista Luís Oreiro, “trata-se de um investimento muito volumoso, de uma tecnologia que, ao que tudo indica, está em via de se tornar obsoleta. Não consigo visualizar, nos próximos vinte anos, a matriz energética do mundo ainda baseada na exploração de derivados de petróleo. Então, trata-se de uma aposta de altíssimo risco”. Ou seja, caminha-se na contramão do que se vislumbra como alternativa sustentável para o planeta.
A exploração do pré-sal representa um dos maiores desafios tecnológicos já enfrentados pelo Brasil, além de projetar uma nova corrida atrás de uma energia que é símbolo do século XX (altamente poluente, não renovável, centralizada e centralizadora), inibindo políticas que nos levariam rumo a uma matriz energética mais limpa e renovável.
Há, evidentemente, a energia hidrelétrica que, muito embora se diga que seja mais limpa (comparada com o petróleo e o carvão), e o governo brasileiro faz questão de apresentar esse tipo de energia como exemplo e modelo para o mundo, conta com a efetivação de megaprojetos hidrelétricos, que vão sendo implantados na Amazônia Legal (Santo Antonio, Jirau, Belo Monte, entre muitos outros), ambiental e socialmente desastrosos, como já se pode analisar em diversos momentos.
O modelo neodesenvolvimentista do governo Dilma
O governo Dilma, assim como foi o de Lula, é tributário do “modelo fordista tardio” na forma de pensar e ver a sociedade. A elite política no poder pensa a sociedade a partir do paradigma da Segunda Revolução Industrial – fordista. Este modelo assenta-se em bases produtivista e consumista. Investe pesadamente em matrizes energéticas centralizadoras e poluidoras (fósseis), perigosas (nuclear) ou devastadoras do meio ambiente (hidrelétricas).
É constitutivo ao modelo neodesenvolvimentista, a hiperexploração dos recursos naturais. Justificam-se aqui a construção das mega-hidrelétricas – Belo Monte, Complexo Madeira, Complexo Tapajós, abertura de rodovias e hidrovias; ampliação da exploração de madeira e minérios; expansão da pecuária e das monoculturas da soja e da cana de açúcar. Aqui também se encaixa o forte incentivo, via financiamento do BNDES, à expansão da produção das commodities como o etanol, a soja e a pecuária – atividades que exercem pressão sobre os recursos naturais.
Fica claro que o governo Dilma reedita, num outro contexto, o que aconteceu no período em que o país esteve sob mando dos militares. Grandes obras de infraestrutura levadas a “ferro e fogo”. Agora, também em nome do Brasil Grande, os que se opõem ao modelo são desqualificados e vistos como aqueles que não compreendem ou não querem compreender o que precisa ser feito para o país não perder o “bonde da história”.
Esse modelo, conduzido com mão forte, não se dá conta ainda de outro elemento não existente na época da ditadura: a emergência do tema da ecologia. O modelo desconsidera, menospreza, desdenha, dá as costas para a problemática ambiental como visto anteriormente.
A abertura do governo Dilma ao setor privado
A concepção do atual governo brasileiro é que o Estado deve ser o indutor do crescimento econômico, mas não necessariamente o gestor. Desse modo, inverte-se o modelo desenvolvimentista inaugurado por Vargas, em que o Estado alavancava o crescimento e assumia a gestão das empresas constituídas. Agora, o (neo)desenvolvimentismo funciona de outro modo, o Estado entra majoritariamente com os recursos e posteriormente repassa o ativo para o capital como se viu no pacote das rodovias e ferrovias, denominado Programa de Investimento em Logística: Rodovias e Ferrovias. Dessa forma, o país assiste uma desnacionalização da economia brasileira, como afirma o economista Adriano Benayon, em entrevista concedida ao sítio do IHU.
Com esse pacote de concessões de rodovias e ferrovias, transfere-se à iniciativa privada a manutenção, construção e exploração de 7,5 mil quilômetros de rodovias e 10 mil quilômetros de ferrovias, sem contar com a incorporação de aeroportos e portos, em processo de efetivação. Os investimentos são da ordem de R$ 133 bilhões para um período de 25 anos, sendo que R$ 79,5 bilhões serão investidos nos primeiros cinco anos. O braço financeiro do Estado, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social(BNDES) financiará 80% dos projetos. Para acompanhar a privatização foi criada uma agência reguladora: a Empresa de Planejamento e Logística (EPL).
O governo recusa o rótulo privatista para o programa. A presidente disse que está “tentando consertar em ferrovias alguns equívocos cometidos na privatização das ferrovias”, que está “estruturando um modelo no qual vamos ter o direito de passagem de tantos quantos precisarem transportar sua carga”.
O fato incontestável, entretanto, é que “concessão” é um eufemismo para “privatização”. No modelo de Parceria Público-Privada (PPP) que serviu de âncora para o pacote, o Estado realiza os investimentos e repassa a exploração para a iniciativa privada. No caso da pura e simples privatização, o Estado vende os ativos para o setor privado. Ambas, entretanto, redundam no fato de que o Estado investe e, posteriormente, abre mão da propriedade dos ativos que lhe pertencem.
É difícil fazer uma caracterização simplista dessas medidas tomadas pelo governo Dilma. Parece que a condução da gestão é pragmática, o que poderia explicar medidas tão díspares como a privatização de rodovias, ferrovias e aeroportos e o enfrentamento com o sistema financeiro na redução da taxa de juros.
Mesmo na macroeconomia, Dilma não parece seguir à risca o tripé da política econômica herdada de FHC e de Lula, ancorada nas metas de inflação, câmbio flutuante e superávit primário. O tripé condiciona-se à perseguição do crescimento econômico. “Dilma é estatista? Retomou o caminho liberalizante ao prometer privatização de estrada, porto e aeroporto? Faz política macroeconômica mais heterodoxa’?”, pergunta o jornalista Vinícius Torres Freire. É tudo ao mesmo tempo.
Na realidade, no conjunto da obra pela obsessão do crescimento econômico, destacam-se medidas generosas para com o capital, principalmente com o capital produtivo e o agronegócio. Dilma retomou a agenda de privatizações abandonada por Lula, tem adotado farta política de desoneração tributária para o capital produtivo com a isenção do IPI e da folha de pagamento, estuda flexibilizar leis trabalhistas, recolocou em pauta e aprovou projeto que acaba com a aposentadoria integral do funcionalismo, enfrentou as greves com rigor thatcheriano e deixou correr solta a aprovação do Código Florestal, que fez a alegria dos ruralistas.
A inclusão social via mercado e os percalços brasileiros
O governo de Dilma Rousseff persegue a continuidade do modelo de “inclusão via mercado” que se revelou um “sucesso” no governo Lula. O foco de Dilma está em dar continuidade ao crescimento da economia e dessa forma reeditar a Era Lula – a grande responsável pelo que o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) denomina como “década da inclusão”.
Segundo o economista Marcelo Neri, atual presidente do Ipea, a partir de dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad 2011), “o Brasil está hoje no menor nível de desigualdade da história documentada”. Houve um crescimento real na renda per capita das diferentes camadas sociais. Em dez anos (de 2001 a 2011), os 10% mais pobres tiveram 91,2% no crescimento de sua renda, enquanto a renda dos 10% mais ricos cresceu 16,6%.
O aumento da renda dos mais pobres está associado a dois movimentos. Aos programas de transferência de renda, particularmente o Bolsa Família, e ao aquecimento do mercado de trabalho como destacado em análise do Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade de e de várias instituições de ensino e pesquisa. Os dados do governo são otimistas e também mostram que parte dos que vivem em favelas e contingente expressivo de negros, estão entre os que constituem a “nova classe média”.
Nestes últimos anos, por exemplo, é inegável a diminuição do desemprego no Brasil. Conforme constata Clemente Ganz Lucio, diretor-técnico do Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos – Dieese, “nós saímos de uma média da ordem de 22% de desemprego e estamos com uma taxa inferior a 10%. Portanto, é uma redução muito significativa do desemprego em geral, incluindo postos de trabalho formais e informais. O que tem de importante também nesse processo é que predomina a oferta de postos de trabalho assalariados, com carteira de trabalho assinada. Hoje, dependendo da região, de cada 10 postos de trabalho gerados, de 7 a 9 são formais, com carteira assinada e com sistema de proteção social vinculado”, diz ele.
Contudo, a longo prazo, um fator que apresenta implicações para o mercado de trabalho brasileiro diz respeito à desindustrialização. Os melhores salários encontram-se na indústria de bens manufaturados, é nesse setor que as categorias de trabalhadores e os seus sindicatos conquistam convenções coletivas mais avançadas, o que “puxa” a pauta de reivindicações do conjunto dos trabalhadores “para cima”.
Estima-se que o peso da indústria de transformação na economia nacional já foi na ordem de 30% nos anos 1970 e hoje estaria na ordem de 20% nas avaliações mais otimistas. Proporcionalmente ao encolhimento da indústria junto ao PIB brasileiro, assiste-se ao crescimento da economia baseada em produtos primários, a denominada commoditização ou ainda reprimarização da economia, com o avanço do agronegócio e da mineração.
A pauta de exportações brasileira é feita, sobretudo, de produtos básicos, de commodities e mercadorias de baixa tecnologia, por outro lado, cresce a pauta de importação de bens manufaturados. Economia desindustrializada significa perda de competitividade no mercado internacional. É na indústria de transformação que se desenvolve pesquisa e tecnologia o que possibilita ganhos para o conjunto da economia de um país.
Como disse o economista André Nassif, em entrevista ao sítio IHU, “há de considerar que o preço das commodities ainda favorece o Brasil, e talvez continue a favorecer nos próximos dez ou quinze anos, enquanto a China for uma grande demandante de commodities em termos relativos. Mas essa não será uma situação eterna, porque a China está mudando e transitando por um modelo de desenvolvimento que é dinamizado pelo mercado interno a partir da demanda de produtos genuinamente chineses, produzidos pelas estatais chinesas”.
Não é o caso de ignorar as conquistas feitas nesta última década, mas reconhecer que junto com os avanços, persistem problemas estruturais históricos, particularmente na área da saúde/saneamento e educação. Problemas que podem ser ampliados quando se considera o déficit de moradia, transporte coletivo, acesso à água potável e democratização da terra.
Os ganhos econômicos e a mobilidade social para cima são evidentes, mas trata-se de uma inclusão efetivamente social ou de uma inclusão via mercado? De uma inclusão que se faz pelo acesso à saúde e educação de qualidade ou de uma inclusão pelo consumo?
Para o sociólogo Sérgio Costa, “os esforços do governo não tocam em alguns elementos estruturais da desigualdade no Brasil. As medidas que vêm sendo adotadas têm impacto de curto prazo, mas em longo prazo não permitem uma ascensão das classes mais baixas”. Segundo ele, “não há investimento em outros tipos de medidas onde a ação do Estado é fundamental, como a promoção da educação pública de qualidade, do transporte público de qualidade”. O sociólogo argumenta que, ao frequentar escolas públicas ruins, os mais pobres são “condenados a permanecer na mesma condição de classe”
Em seu livro “Os sentidos do lulismo – reforma gradual e pacto conservador“, André Singer reconhece os avanços da era Lula em relação aos anos de FHC, considerando a “ativação do mercado interno, aumento do crédito, aumento do consumo, aumento do emprego”, como elementos que vão à contramão do neoliberalismo. Contudo, mesmo sob essa ótica, Singer também aponta que “o Brasil tem um acúmulo de desigualdade tão grande que mesmo esta queda, com enorme ritmo de avanço, fica aquém”.
Infelizmente, no atual contexto, todas as medidas tomadas pelo Governo vão ao encontro de uma política que traduz os direitos da cidadania em direitos do consumidor. Como muito bem salientou o professor de filosofia Vladimir Safatle, a “ascensão econômica, com seu consequente sentimento de cidadania conquistada, não passou pelo acesso a serviços sociais ampliados e consolidados em sua qualidade. Afora a importante expansão das universidades federais, ascensão significou poder pagar escola privada, plano de saúde privado, celular, eletrodomésticos e frequentar universidade privada”.
Os limites desse combate à desigualdade também são vistos na realidade do campo, como destacado anteriormente.
Balanço político
Caráter conservador do governo
O ano de 2012 na esfera política-institucional foi regressivo. Por um lado, confirmou o caráter conservador do governo Dilma Rousseff e, por outro, trouxe à tona fatos que empurraram o PT para uma crise sobre o seu devir no cenário político brasileiro.
Os excelentes índices de aprovação do governo Dilma e o bom desempenho do PT nas eleições municipais podem falsear e escamotear a natureza de fundo da crise política na esquerda, particularmente na sua parcela mais significativa. O maior partido de esquerda brasileiro e o seu governo reproduziram, com poucas exceções, o mais do mesmo que sempre se viu na política nacional desde a Velha República.
O julgamento é severo. Aliviar, porém, a análise sob o argumento que nunca se fez tanto pelos pobres não contribui para uma avaliação crítica desde a esquerda. Uma rigorosa análise dá conta, por um lado, que o governo de coalizão herdado por Dilma de Lula travou qualquer possibilidade de políticas mais ousadas e reformas estruturais e, por outro, o PT selou sua condição de refém da realpolitik que se faz nos corredores do Congresso, nos ministérios e no Palácio do Planalto.
O que se viu nesse último ano foi um governo dando prosseguimento na sua generosa política de enormes concessões para o capital produtivo-financeiro e o agronegócio e um partido envolvido em casos – mensalão e Operação Porto Seguro – que empobrece e rebaixa sua história rica e combativa. Refutar esses fatos sob o argumento de que essa “agenda” foi montada pela direita não ajuda a análise crítica e auto-crítica.
Governo de coalizão. Indispensável?
Ao longo do ano em algumas “Conjunturas da Semana” destacamos que as amarras que ligam o Brasil moderno ao Brasil atrasado prosseguiram no governo de coalizão montado por Lula e não alterado por Dilma. Logo no começo do ano, fevereiro, Dilma deu uma mostra do pacto deletério entre as elites modernas e tradicionais com a nomeação do deputado Aguinaldo Ribeiro (PP-PB) para o ministério das Cidades e a manutenção do ministro Fernando Bezerra de Souza Coelho (PSB-PE) no ministério da Integração Nacional após intenso tiroteio de acusações de corrupção.
Os dois ministros, outros poderiam ser citados, são lídimos representantes das velhas oligarquias – como destaca o sociólogo Werneck Vianna, – que se mantêm no poder desde a época do coronelismo.
A porção do Brasil atrasado na coalizão do governo não se manifesta, porém, apenas através das oligarquias ligadas ao latifúndio. O Brasil atrasado está também presente nas grandes metrópoles e com ele também o pretenso Brasil moderno faz alianças. Um desses episódios foi a busca da aliança do PT com o prefeito de São Paulo Gilberto Kassab e com Paulo Maluf. No caso de Kassab, a aliança apenas não deu certo porque o mesmo optou pelo PSDB nas eleições municipais, porém o partido integra a base de sustentação do governo no plano federal. Kassab, criador do PSD, egresso do PFL e do DEM, já afirmou que não é nem de esquerda, nem de centro e nem de direita, é pragmático.
A camisa de força imposta pelo modo aliancista de governar adotado pelo PT se mostra ainda no retrocesso em outras temáticas como se viu no debate do kit anti-homofobia e do aborto.
O governo de coalizão, amplo, gelatinoso e de espectro ideológico diverso, ou sem ideologia qualquer que se encontra na base do governo Dilma é uma herança do governo Lula. A justificativa de Lula para a construção do amplo leque de partidos na base de apoio ao governo e o reavivamento de figuras que se julgavam sepultadas na política como José Sarney, Jader Barbalho, Romero Jucá, Geddel Oliveira, Collor de Mello, entre outras, é a mesma: a necessária e indispensável manutenção da governabilidade.
A governabilidade é considerada um imperativo para o exercício do poder justifica Tarso Genro, governador do Rio Grande do Sul e respeitado intelectual do PT: “Os governos de coalizão presidencialista no Brasil não são novos. O novo é governantes de esquerda – o presidente Lula e a presidenta Dilma – serem obrigados, pela conjuntura política e pelo sistema legal e partidário do país, a usar esse expediente. A coalizão presidencialista é um expediente político. O que nós temos que responder, em última análise, é se ele é legítimo ou não. Não resta a menor dúvida de que é um expediente, pois essa é a única forma de governar democraticamente – portanto, de governar em maioria”.
O sociólogo Francisco de Oliveira tem outra opinião: “Todos no Brasil que preferem manter o status quo usam o argumento da governabilidade”.
O fato é que os problemas enfrentados por Dilma em seu governo estão relacionados, sobretudo, a essa herança maldita deixada por Lula. Uma base frouxa, desideologizada, que dá apoio ao governo em troca de ministérios de “porteira fechada“, nomeações em estatais e emendas parlamentares.
O governo de coalizão que reúne e junta forças que querem mudanças com forças atrasadas é uma contradição num governo que adota o discurso da “gestão eficiente”. É possível gestão eficiente, exigir cumprimento de metas e cobrar postura republicana à frente dos cargos do primeiro escalão num governo de coalizão eivado de figuras que se formaram politicamente em ambientes onde se pratica o patrimonialismo e o clientelismo como regras do jogo?
Em um estudo já considerado clássico da formação política brasileira – Coronelismo, enxada e voto – fazendo referência ao traço do patrimonialismo na política brasileira, a que deu o nome de “coronelismo”, Victor Nunes Leal comenta: “o coronelismo é sobretudo um compromisso, uma troca de proveitos entre o poder público, progressivamente fortalecido, e a decadente influência social dos chefes locais, notadamente dos senhores de terras”.
O coronelismo, tal qual interpretado na transição dos séculos XIX e XX, já não existe, mas continua presente até os dias de hoje como se vê na coalizão de governo e nos rumorosos casos do ‘mensalão‘ e da ‘Operação Porto Seguro‘, mesmo num governo que se arvora como sendo de esquerda.
Crise na esquerda
Na origem da busca de uma ampla base de sustentação está o que se denominou de “mensalão”. Por mais que setores de esquerda afirmem que o “mensalão” é invencionice, é corrente o fato de que esse tipo de mecanismo, se dê o nome que se queira, é regra corrente na estruturação, financiamento e mobilização pela disputa do poder.
O “mensalão” passou a ser aceito por muitos como um expediente necessário para garantir governabilidade e realizar os avanços que o Brasil precisava. Nessa concepção trata-se de um mal menor em função de um bem maior – a ideia de que os fins justificam os meios.
Na mesma esteira e lógica tem-se a Operação Porto Seguro ou o “caso Rosemary” deflagrada pela Polícia Federal. O caso é mais uma manifestação da não ruptura com os vícios tributários da Velha República, ou seja, a continuidade de práticas políticas eivadas pelo autoritarismo, patrimonialismo e o clientelismo. Pior ainda, significa uma rendição a essas práticas. Pessoas que se valiam de funções públicas e da proximidade com o poder para traficar e favorecer interesses privados.
A gravidade do caso reside no fato de que Rosemary Noronha não traficava e atendia apenas a interesses privados seus – o conjunto da Operação Porto Seguro aponta para fortes indícios que a ex-chefe do escritório da Presidência da República em São Paulo servia de preposto para encaminhar outras articulações políticas provenientes de altos círculos de poder do Palácio do Planalto.
A partir da interpretação da realpolitik – na política as coisas funcionam assim, parte da esquerda atribui o destaque ao ‘mensalão’ e ao ‘caso rosemary’ a retomada de certa agenda udenista no país, ao gosto da direita, que procura obsessivamente desmontar os avanços sociais obtidos na Era Lula.
A vinda à tona dos dois casos reforçou a tese defendida por muitos de que há uma ação orquestrada e persecutória contra Lula e o PT tramada pelas elites. No caso, as elites segundo os que defendem essa tese, seriam os setores que nunca engoliram a chegada de Lula ao poder e a continuidade do PT no Palácio do Planalto. Derrotados nas urnas no último decênio, esses setores procuram minar as principais lideranças do PT, particularmente Lula, e ato contínuo desqualificar as conquistas sociais desse período.
Nessa ótica, o ‘mensalão’ e o ‘caso rosemary’ são vistos como algo menor diante de tantas conquistas e avanços sociais e econômicos. Essa posição suscita uma questão: A instauração de políticas sociais, o bolsa-família, a política de cotas, a mobilidade social dos mais pobres para cima, fornecem um “salvo conduto” aos erros de seus dirigentes? Tudo pode ser justificado ou atenuado porque o PT, no governo, passou a adotar políticas sociais antes inexistentes? Nessa linha de raciocínio, o melhor é ficar apenas com o lado bom, reconhecer e louvar os acertos e empurrar para debaixo do tapete a sujeira. Trata-se de uma postura prepotente que não aceita a autocrítica. Aceitar dialogar com as denúncias, nessa visão, revela fraqueza e abre brechas para oportunizar os ataques da direita.
É inegável que a direita procura se apropriar do discurso udenista e usa o ‘mensalão’ como um aríete para abalar a fortaleza em que se transformou o mito Lula, porém, cabe à esquerda social abordar esse tema e criticá-lo pela esquerda. Validar o discurso de que não se pode criticar os dirigentes do PT pelos equívocos que cometeram porque isso significa jogar “água no moinho da direita” é recusar a essência do que significa ser esquerda.
Com o “mensalão” e recentemente a Operação Porto Seguro, o PT – sua porção dirigente – dá claros sinais que se transformou num partido tradicional no modo de fazer política. Segundo o filósofo Thales Ab’Sáber o ‘mensalão’ “foi o cartão de visita e o atestado das práticas políticas de direita que o partido passou a utilizar para chegar e se manter no poder. Conchavos de bastidores com partidos oportunistas e mesmo politicamente inimigos, manipulação de processos eleitorais através de acordos que serão pagos posteriormente a qualquer custo, concepção do Estado como uma fonte de financiamento dos interesses particulares de grupos”.
O cientista político Fábio Wanderley Reis considera que o “mensalão” só foi possível em decorrência de uma espécie de desvio ideológico do PT: “A arrogância produzida por certa autoimagem ideologicamente condicionada, que levou à desqualificação dos outros participantes do jogo parlamentar, considerados burgueses, e à ideia de que o melhor a se fazer era comprar sua lealdade. É um cinismo autorizado, um maquiavelismo de araque, em função de objetivos considerados maiores, com a ideia de que os fins justificam os meios”.
A esquerda que não tem medo de se nomear esquerda
Os ativistas sociais que se afastaram do PT e hoje o criticam recebem a resposta padrão: “vocês não querem ver ou minimizam os enormes avanços sociais do PT no governo”. Trata-se de um argumento frágil frente às criticas de esvaziamento ideológico do PT. Esses avanços eram esperados. Sempre foi isso que se prometeu e por isso que se lutou. Para muitos, inclusive, houve um enorme rebaixamento na agenda transformada do PT que se rendeu muito mais a uma agenda de políticas compensatórias do que emancipatórias.
Faz-se necessário reafirmar e criticar, mesmo sendo acusado de “jogar água no moinho da direita” que a esquerda que não tem medo de se nomear esquerda não pode prescindir em agir pelos princípios republicanos e isso significa dizer algo muito simples, mas ao mesmo tempo forte: Dinheiro público é dinheiro público e não pode ser apropriado privadamente. O poder exige total e absoluta transparência. O Público é o espaço da luz, da luminosidade. O privado é o espaço da sombra. Isso aprendemos com Hannah Arendt que retomou o conceito de práxis política dos gregos. O que é a corrupção? É a confusão ou a ação deliberada da defesa dos interesses privados no espaço público.
A ética dos fins justifica os meios não é republicana. Para quem efetivamente se quer nomear de esquerda a justificativa de que nunca se fez tanto no país pelos pobres não pode ser aceita com atenuante dos erros e reprodução de práticas viciadas fundadas no patrimonialismo e no clientelismo.
A esquerda que não tem medo de se nomear esquerda também não deve recuar em sua concepção do que significa inclusão social. São evidentes os ganhos econômicos e a mobilidade social para cima, mas trata-se de uma inclusão efetivamente social ou de uma inclusão via mercado? De uma inclusão que se faz pelo acesso a saúde e educação de qualidade ou de uma inclusão pelo consumo?
O foco de Dilma tem sido o de dar continuidade ao crescimento da economia e dessa forma reeditar a Era Lula – a grande responsável pelo que o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) denomina de “década da inclusão”, como já destacado. Porém, mesmo com mobilidade social, o grande paradoxo do Brasil persiste. Está entre as maiores economias do mundo, quando se utiliza o critério do Produto Interno Bruto (PIB) e as piores quando se utiliza o critério do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). Apesar da “inclusão via mercado”, o país continua com déficits gigantescos na área social.