Brasil pode liberar veneno mais tóxico para lavouras transgênicas.

Após uma década ao longo da qual o herbicida glifosato reinou absoluto nas lavouras transgênicas espalhadas pelo Brasil, a chegada de um novo produto, mais tóxico e com maior potencial de contaminação, coloca em alerta setores da sociedade e já é objeto de um inquérito civil por parte do Ministério Público Federal (MPF). Um dos principais componentes do tristemente célebre agente laranja, usado pelos Estados Unidos como arma letal contra civis durante a Guerra do Vietnã, o veneno conhecido como 2,4D pode ser uma realidade já na atual safra brasileira, em lavouras de soja e milho geneticamente modificadas para resistirem à aplicação do produto. Responsável pela possível liberação de três pedidos de plantio comercial relativos ao 2,4D – que seriam analisados em outubro – a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) foi aconselhada pelo MPF a realizar mais testes que comprovem a segurança do produto para a saúde e o meio ambiente.

 

http://www.ihu.unisinos.br/noticias/527268-brasil-pode-liberar-veneno-mais-toxico-para-lavouras-transgenicas

 

Também instada pelo MPF a realizar uma audiência pública na qual a utilização do 2,4D fosse debatida de forma mais ampla pela sociedade civil, a CTNBio não acatou a orientação. Por isso, o MPF optou por organizar sozinho, em Brasília, uma audiência pública, realizada em 12 de dezembro, que contou com dezenas de representantes das organizações socioambientalistas, da academia e dos ministérios e agências reguladoras do governo federal, além de integrantes da própria CTNBio.

Foram debatidos os riscos de contaminação de sementes crioulas pelas sementes geneticamente modificadas e de aumento do consumo de agrotóxicos no Brasil. A falta de mecanismos adequados para o monitoramento da cadeia de transgênicos no país também foi motivo de debate, além da pouca confiabilidade dos estudos, em sua maioria realizados pelas próprias empresas transnacionais que controlam a transgenia, levados em conta pela CTNBio no momento de decidir pelas liberações comerciais.

Após a realização da audiência pública, o procurador Anselmo Henrique Cordeiro Lopes, responsável pela condução do inquérito civil, faz um balanço positivo do debate e destaca que a CTNBio, embora não tenha respondido à solicitação do MPF, acabou não mais liberando nenhuma planta associada ao produto. Ele acredita que a decisão sobre a utilização do 2,4D ficará para este ano. O procurador também critica os mecanismos de controle e monitoramento hoje existentes no Brasil, tanto no que diz respeito aos testes acatados pela CTNBio quanto à cadeia de transgênicos em geral. Leia a seguir a íntegra da entrevista com Anselmo Henrique Cordeiro Lopes.

A entrevista é de Maurício Thuswohl, publicada por Repórter Brasil, 13-01-2014.

Eis a entrevista.

O que motivou a investigação realizada pelo Ministério Público Federal a respeito da liberação comercial de plantas transgênicas resistentes ao agrotóxico 2,4D? Quanto tempo durará o inquérito e quais seus possíveis desdobramentos?

O que motivou a investigação foi uma denúncia, realizada em reunião por alguns membros da CTNBio e vários outros pesquisadores, que denunciavam que a CTNBio estava na iminência de liberar alguns transgênicos de soja e milho resistentes a um herbicida muito perigoso – o 2,4D, que já foi usado na Guerra do Vietnã na composição do agente laranja – e que esta liberação estaria se dando de forma muito açodada e sem que todos os estudos necessários abordassem os temas que seriam pertinentes. Então, para verificar se realmente isso estava ocorrendo, decidimos abrir em setembro um inquérito civil. Em tese, a duração dele é de um ano. O inquérito pode ser prorrogado por mais um ano, se isso se mostrar necessário, mas, em princípio, a duração dele é de um ano. Como desdobramento, nós poderemos fazer alguma recomendação à CTNBio ou mesmo ajuizar ação no que diz respeito aos processos que estão sendo examinados.

A CTNBio foi notificada pelo Ministério Público Federal para que interrompesse os testes? Qual foi a reação?

Não foi pedido que ela parasse com os testes, e sim que continuasse com os estudos e os testes, mas por enquanto não liberasse comercialmente o produto. Nós solicitamos que não houvesse a liberação comercial e, com base no Artigo 15 da Lei de Biossegurança, que trata da CTNBio, pedimos também que eles realizassem uma audiência pública para que fosse feita uma discussão mais ampla e mais global a respeito dos impactos diretos e indiretos relacionados a essas sementes. A CTNBio se negou a realizar essa audiência pública, foi isso que motivou o MPF a realizar a audiência por conta própria. Nessa audiência que se realizou, nós chamamos vários atores da sociedade civil e das instituições públicas, e a própria CTNBio se fez presente através de vários de seus membros.

A CTNBio é obrigada a acatar essa recomendação de não mais liberar plantas que tenham relação com o 2,4D?

Na verdade, não colocamos isso como uma ordem, mas sim como uma solicitação. De toda forma, ainda que a CTNBio não se manifestasse expressamente sobre essa questão da suspensão das liberações, na prática ela acabou por não realizar liberações em 2013. Essa discussão ficou para 2014.

Existem muitas críticas à falta de dados consistentes nos testes – bancados e realizados, em sua maioria, pelas próprias empresas do setor – que têm embasado as decisões da CTNBio quanto à liberação de transgênicos. O MPF considera suficientes os dados e informações trazidos por esses testes? Onde estão as maiores lacunas?

Esses testes são realizados pelas próprias empresas, até porque o grau de profundidade tecnológica do estudo dá a dimensão de que realmente é muito difícil fazer estudos independentes a respeito desse tipo de tecnologia que envolve, inclusive, matéria de sigilo e matéria de patente.

No caso do 2,4D, existe a denúncia por parte de vários pesquisadores de que a perspectiva do estudo teria sido reduzida e que ele não teria abordado vários aspectos necessários do que seria realmente importante trazer para decidir de forma mais consciente a liberação. Isso foi discutido na audiência pública, mas não há ainda uma conclusão muito clara a respeito desse tema.

O Brasil é campeão mundial do consumo de agrotóxicos. Já foi realizado algum cálculo sobre qual será o impacto da eventual liberação do 2,4D na expansão do mercado de agrotóxicos no país?
Isso não foi feito. Nós pedimos que isso fosse avaliado e que houvesse um prognóstico do aumento de consumo de 2,4D incentivado pela liberação das sementes transgênicas, mas até o momento não há nenhum dado científico que demonstre isso. Durante a audiência pública, a representante da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) informou que existiria um espaço de crescimento de consumo de 2,4D no Brasil de até quatro vezes, um aumento de 300%. Mas, apesar desse posicionamento da Anvisa, não há nenhum estudo que demonstre concretamente qual será o aumento do consumo do 2,4D no Brasil caso haja essas liberações.

O processo de decisão sobre a liberação de transgênicos no Brasil, na forma como vem ocorrendo na última década, significa desrespeito a direitos humanos fundamentais?

Até o presente momento, eu não posso afirmar que houve esse desrespeito. O que eu posso afirmar é que o MPF está abordando o tema desde essa lógica e essa perspectiva. Isto é, nós estamos investigando para ver se os direitos humanos fundamentais à saúde, à alimentação adequada e ao meio ambiente equilibrado e sadio estão sendo respeitados. Se nós concluirmos que esses direitos são desrespeitados, aí sim nós iremos tomar as medidas legais cabíveis.

Convite da audiência pública, realizada em 12 de dezembro, pelo MPF

A fiscalização sobre os testes que são levados em conta pela CTNBio é realizada de maneira satisfatória? A Anvisa cumpre bem o seu papel?

Isso também foi discutido na audiência pública. Dá para perceber que existe, digamos assim, uma distância muito grande entre aquilo que é produzido como estudo pelas empresas e seus pesquisadores contratados e depois apresentado à CTNBio e aquilo que realmente se consegue fazer de forma independente e paralela como contraprova dos resultados apresentados. Em tese, de toda forma, o controle tecnológico e científico desses resultados deveria ser feito pela CTNBio.

O papel da Anvisa é outro, diz respeito ao registro e controle de herbicidas. A CTNBio vai estudar – e fazer a liberação, se for o caso – das sementes transgênicas. É lógico que existe aí um campo intermediário que diz respeito à própria interação das sementes transgênicas com o herbicida, mas, infelizmente, nem um órgão nem o outro acaba alcançando essas interações. Existe um espaço cinzento e nenhuma instituição acaba assumindo o papel de fazer esse controle.

Praticamente inexistem no Brasil de hoje mecanismos de monitoramento e controle da produção e comercialização de transgênicos. É possível exigir do governo que coloque em prática tais mecanismos?

Existem processos de monitoramento, como determina a lei, realizados pela CTNBio. A própria pauta de trabalho das reuniões da CTNBio demonstra que existem alguns processos sobre os quais eles realizam monitoramento. A questão é saber se o monitoramento está sendo feito de forma suficientemente correta e adequada ou não. Alguns críticos do trabalho da CTNBio afirmam de forma bastante veemente que esse monitoramento é insuficiente e meramente formal. Mas o MPF por enquanto não pode afirmar isso, não há dados para que possamos fazer essa afirmação.

Qual balanço faz o MPF sobre a Audiência Pública? O que a pode ser feito daqui pra frente para aprofundar essa discussão na sociedade civil?

Os focos da audiência foram os impactos diretos e indiretos relacionados à liberação dos transgênicos e também a questão da interação química, metabólica e biológica entre as sementes geneticamente modificadas e os herbicidas. Também foram discutidas a questão propriamente dita da reavaliação toxicológica do 2,4D, a acumulação de efeitos dos herbicidas e a sinergia e acumulação proporcionadas principalmente pela possível liberação das sementes transgênicas. Foi abordada também a metodologia de analise desses temas pela CTNBio, além de outros temas toxicológicos. O balanço que eu faço é muito bom. Acho que a gente conseguiu produzir muito conhecimento e obter muitas informações. Dezenas de pessoas – entre professores, pesquisadores e pessoas que trabalham no campo – tiveram a possibilidade de se manifestar a respeito de todos esses temas. Isso trouxe um resultado bastante plural e, nesse sentido, a audiência pública alcançou o objetivo democrático que ela se estipulou.

 

O modelo de produção agrícola em discussão. O 2,4-D e a toxidade dos agrotóxicos. Entrevista especial com Karen Friedrich

 

http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/qual-agricultura-nos-queremos-a-polemica-do-24-d-e-a-toxidade-dos-agrotoxicos-entrevista-especial-com-karen-friedrich/527273-qual-agricultura-nos-queremos-a-polemica-do-24-d-e-a-toxidade-dos-agrotoxicos-entrevista-especial-com-karen-friedrich

 

“O modelo de produção agrícola baseado na ‘tecnologia’ química e de transgênicos tem que ser revisto”, afirma a toxicóloga.

Foto: Envolverde

Com a resistência gradual das pragas e plantas daninhas aos agrotóxicos tradicionais, a indústria dos transgênicos precisou buscar alternativas mais eficientes para a manutenção de seus resultados. Uma das apostas do mercado é liberar a comercialização de sementes resistentes ao herbicida 2,4-D. A substância já tem o seu uso regulado no País, mas, ainda assim, dúvidas quanto à sua segurança toxicológica levaram uma série de especialistas a apontar a exigência da revisão de sua licença. Neste contexto, a toxicóloga Karen Friedrich alerta: “A liberação da semente legitimaria uma forma de aumentar a aplicação de uma substância tóxica, cujo uso deveria ser diminuído, não incentivado”.

Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, Friedrich alerta para os perigos da substância, que é conhecida como um dos componentes do Agente Laranja. O composto foi utilizado pelos Estados Unidos durante a Guerra do Vietnã como desfolhante, e sua toxidade gerou milhares de relatos sobre má-formação congênita, câncer e problemas neurológicos. Ainda assim, desde 1945 a substância teve sua patente requerida e utilizada para a . A toxicóloga da Fundação Oswaldo Cruz ressalta que o uso conjunto do 2,4-D com o 2,4,5-T é que forma o Agente Laranja, mas isoladas as substâncias também geram graves problemas.

“Há vários estudos mostrando que o 2,4-D está associado a alguns tipos de câncer, como aos relacionados a alguns órgãos sexuais e linfomas”, relata ela. “Há estudos indicando alterações de hormônios sexuais e das funções da tireoide”, sem mencionar a produção de como subproduto – uma substância extremamente tóxica. Para a toxicóloga, as empresas de agrotóxicos apresentam-se como a “solução de todos os problemas” do trabalhador rural e da produção de alimentos no mundo, mas este discurso é enviesado devido aos interesses comerciais envolvidos. “Temos que fazer essa discussão com base científica. Tirar essa discussão ideológica da produção e do desenvolvimento e ver o que é bom para o meio ambiente, para a saúde, e que ao mesmo tempo sustente economicamente o país.”

A pesquisadora Karen Friedrich. Foto: Abrasco

Karen Friedrich possui graduação em Biomedicina pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Mestrado e Doutorado em pela Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz. Atualmente é servidora pública do Instituto Nacional de Controle de Qualidade em Saúde (INCQS) da Fundação Oswaldo Cruz e professora assistente da Universidade Federal do Estado do Rio.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Muito se comenta sobre o alto nível de toxidade do herbicida 2,4-D. O que pode dizer sobre este composto? Qual a situação do 2,4-D no Brasil?

Karen Friedrich – O 2,4-D é um herbicida, como você falou, e tem seu uso liberado no Brasil. No entanto, segundo os critérios da legislação brasileira, ele já poderia ter um indicativo de proibição. Ele é usado em outros países também, mas a legislação desses países é diferente da nossa. O único problema é que fazer a revisão de um agrotóxico no país é um processo complicado, no sentido que a ANVISA ou o Ministério do Meio Ambiente, por exemplo, propõem essa revisão de acordo com os efeitos que as substâncias podem causar sobre a saúde humana ou sobre o meio ambiente. Mais do que isso, quando as entidades tentam iniciar o processo, incorre a oposição de uma série de processos e mandados oficiais tentando impedir essas revisões de registros. A revisão de registro não é imediata, não é um processo muito simples, mas os estudos científicos publicados sobre a toxidade do 2,4-D indicam que ele apresenta vários efeitos sobre a saúde. Teria, por exemplo, efeito sobre o sistema reprodutivo, sobre o sistema hormonal…

IHU On-Line – O 2,4-D é parte do Agente Laranja usado pelos Estados Unidos na Guerra do Vietnã, mas é a combinação de elementos que torna o agente perigoso. Quais riscos ele sozinho pode trazer?

Karen Friedrich Depende do tipo de estudo conduzido. Há pesquisas indicando alterações de hormônios sexuais e das funções da tireoide – glândula importante para uma série de funções do nosso corpo. Além disso, geralmente há vários estudos mostrando que o 2,4-D está associado a alguns tipos de câncer, como aos relacionados aos órgãos sexuais e linfomas. Esses estudos de cânceres já foram evidenciados não só em animais de laboratórios, como também em seres humanos expostos ao 2,4-D. No caso do Agente Laranja, ele é um dos componentes junto ao 2,4,5-T. Os dois juntos aumentavam muito mais a chance dessas contaminações toxicológicas, tanto que o seu uso gerou um desastre muito grande, com milhares de pessoas atingidas. Claro que ele está presente nos alimentos em concentrações muito menores, mas há outra característica que eu também destaco: o 2,4-D causa mutação no DNA.

IHU On-Line – Ela pode ser transmitida para gerações?

Karen Friedrich A mutação tanto pode ser em uma célula somática, que é a que leva ao câncer, ou em células germinativas, que é a que vai se juntar com a célula do sexo oposto para gerar um embrião. Caso a mutação ocorra nessa última, pode levar a má-formação fetal, abortos instantâneos… Outro detalhe é que a produção do 2,4-D gera um contaminante e isso é inevitável para a própria indústria química. Ela pode até diminuir esse subproduto por alguns processos, mas não consegue evitar a presença desse contaminante (dioxina) no produto (herbicida).

IHU On-Line – Quais problemas são causados pela dioxina?

Karen Friedrich Ela é extremamente tóxica. Causa imunossupressão, ou seja, diminui a resposta do sistema de defesa do organismo. Esse sistema de defesa é responsável não só pela defesa contra patógenos, mas para a própria vigilância do câncer, causa também efeitos de intoxicações agudas graves e pode causar também câncer, alterações reprodutivas e alterações hormonais. Uma das substâncias mais tóxicas sintetizadas pelo homem é a dioxina. Então o que acontece é que mesmo saindo da fábrica com aquele resíduo de dioxina que está dentro de um limite legal, a partir do momento em que sai da fábrica ele pode gerar espontaneamente dioxina no próprio produto. Temos uma escassez de laboratórios oficiais que monitorem dioxina não só no produto, mas depois, nos alimentos. Então, por esse lado, pela própria característica dela, do 2,4-D, e pela característica do seu principal contaminante, é que a dioxina é um produto que a gente deveria banir do país.

Esses efeitos seriam um indicativo de proibição no país segundo a Lei 7.802 de 1989, pois a dúvida sobre sua segurança levaria ao que conhecemos como Princípio da Precaução. Muitas pessoas criticam a legislação, declarando que em outros países o 2,4-D é liberado e que por isso também deveria ser permitido aqui dentro. Isso não é verdade, já que outros países têm outras legislações que não inserem esses efeitos no seu critério de proibição. Nós inserimos e temos que obedecer à legislação brasileira.

IHU On-Line – Então podemos dizer que a lei brasileira é mais rígida nesse sentido?

Karen Friedrich Ela é mais rígida no sentido em que propõe que caso alguma substância cause determinados efeitos, seu uso deve ser proibido. É o caso de alterações no sistema reprodutivo, alterações hormonais, mutação, carcinogênese (formação de câncer) e má-formação fetal – efeito ao qual o 2,4-D também tem sido associado. O que foi objeto da discussão da audiência pública foi a liberação de uma semente transgênica resistente ao 2,4-D. Então quer dizer, o que isso significa? Significa que por conta dessa semente existe a expectativa de se aumentar muito o consumo do 2,4-D. Nesse sentido, a liberação da semente legitimaria uma forma de aumentar a aplicação de uma substância tóxica, cujo uso deveria ser diminuído, não incentivado.

Nós sabemos que o modelo de produção agrícola tem que ser revisto. Óbvio que nós somos um dos grandes produtores de soja do mundo e de outras grandes commodities, mas temos que rever e pesar o que é importante. O que nós queremos? Manter a produtividade a todo custo? Ou queremos preservar a saúde do trabalhador e do meio ambiente?

IHU On-Line – Se temos tantos estudos que mostram as complicações dele, o que falta então para ser proibido?

Karen Friedrich Acredito que falta um pouco de iniciativa da Anvisa de se disponibilizar a fazer essa reavaliação, de forma que várias instituições de pesquisa possam auxiliá-la nisso. Sabemos que diversos órgãos sofrem com falhas estruturais, escassez de recursos humanos e de recursos financeiros. Eu não digo nem que seja culpa da Anvisa não querer fazer isso, mas que o próprio governo deveria repensar o fomento para a produção agrícola e as áreas de desenvolvimento, ao mesmo tempo investindo nos órgãos que vão dar suporte e segurança à população a partir do que é produzido. Se pensarmos em todos os produtos que ela avalia que não é só agrotóxico, como medicamentos, alimentos e mesmo as regiões de fronteira, veremos que é uma grande diversidade de produtos que se deve dar conta.

Então o que falta? Acho que falta um pouco desse investimento e a Anvisa talvez procurar buscar parceiros como ela já fez em outros momentos, para auxiliá-la na revisão desse registro. Isso é um ponto fundamental.

IHU On-Line – O uso da semente com 2,4-D teria sido testado apenas em dois municípios brasileiros, Indianápolis (MG) e Mogi Mirim (SP). É suficiente para uma avaliação adequada dos riscos envolvidos? Qual seria um procedimento adequado?

Karen Friedrich O ideal é que você tenha essa testagem nos solos e nas diferentes características ambientais do país. Se o poder econômico e político tiver mais força e ela vier a ser liberada, isso vai ser um grande problema. E, além disso, se ela vier a ser liberada, é evidente que será usada no país inteiro. Então dois Estados ainda são muito limitados para a gente dizer a eficácia dessa semente. E o que a gente tem visto também com outras sementes transgênicas é que, ao longo do tempo, assim que ela é lançada, em geral só tem um pico de produção, mas depois essa produção vai diminuindo. Porque os próprios insetos se tornam resistentes a ela, você tem que usar cada vez mais agrotóxicos e esses agrotóxicos diminuem os predadores naturais e os predadores naturais daquelas pragas, então você tem que usar cada vez mais agrotóxicos. Isso na verdade é um ciclo que cada vez mais incentiva a produção da toxina.

Outra coisa que temos que observar é que quem está trazendo essa informação para o agricultor é a indústria. Então esse agricultor às vezes acredita que o transgênico e o agrotóxico são a melhor solução para ele, mas ele está ouvindo uma indústria que tem conflito de interesse no tema. Ela quer promover o seu produto. Muitos questionam essa briga da agricultura com a saúde, mas temos que fazer essa discussão com base científica. Tirar essa discussão ideológica da produção e do desenvolvimento e ver o que é bom para o meio ambiente, para a saúde, e que ao mesmo tempo sustente economicamente o país.

IHU On-Line – A introdução de sementes resistentes ao 2,4-D está sendo proposta devido à resistência das pragas ao herbicida Glifosato. Esta não seria uma medida paliativa que levará novamente à criação de superpragas? Qual seria uma solução possível?

Karen Friedrich A semente transgênica do 2,4-D não substitui, ele é usado para outro tipo de folha. Na verdade os agricultores vão usar o glifosato, o 2,4-D e as suas respectivas sementes transgênicas, o que é muito pior. Você está associando dois agrotóxicos com efeito sobre a saúde e, quando estão em conjunto, o seu efeito pode ser muito maior. Na verdade eu penso que é uma discussão mais ampla que tem a ver com o modelo de produção. Nós temos propriedades que produzem milhares de hectares com uma única cultura aplicando um monte de substâncias químicas, então você não tem um ambiente equilibrado que pudesse ter predadores naturais para aquelas pragas. Não estou dizendo que as monoculturas devem acabar, não é isso, mas existem sistemas que podem ser intercalados, como a produção de florestas para produzir um sistema minimamente equilibrado, que possa ter predadores naturais para aquelas pragas, fazendo o uso de agrotóxicos ser, com o tempo, diminuído.

IHU On-Line – Sabemos que nem todo produtor rural tem o perfil para a produção orgânica, que exige uma dedicação muito maior do que a da produção convencional. A aplicação de agrotóxicos na lavoura é fundamental para a produção de alimentos?

Karen Friedrich Não, não é. Existem vários estudos, locais e produtores mostrando que é possível produzir alimento sem agrotóxico. É preciso diferenciar o que é alimento e o que é commodity. Soja, algodão, cana e milho, da maneira como estamos produzindo, não são alimentos, são commodities. São alimentos pontuais que em geral servem para a produção de ração de animais, mas não vivemos apenas dessa fonte proteica, a nossa alimentação tem que ser equilibrada com outros alimentos, com outros nutrientes. As grandes monoculturas produzem para exportar, não para gerar alimento para a sociedade. A despeito dessa grande produção agrícola, estamos onerando a saúde humana, a saúde do trabalhador, a saúde do meio ambiente, e é essa a grande questão.

O que temos visto também é que o uso de agrotóxicos causa uma toxidade nos próprios animais de criação e de corte, como algumas aves, o porco e o boi. Essa toxidade leva à diminuição da reprodução desses animais, o que leva o produtor a inocular hormônios nos seus animais para garantir a produção deles. Mas ele não pensa que a consequência disso pode ser do próprio agrotóxico que foi utilizado no pasto, ou numa propriedade vizinha, ou passou por avião, ou que está contaminando o lençol freático de uma região um pouco mais distante mas que é consumido pelo gado. Na verdade, o agrotóxico está levando a uma insustentabilidade da produção local e é isso que não está sendo colocado.

Nós não devemos escutar a indústria de agrotóxicos, pois ela quer vender o seu produto. Algumas instituições de pesquisas sérias têm produzido estudos de modo a dar sustentabilidade para a produção orgânica, mas o próprio governo também precisa agir. Nós vemos números estratosféricos de investimento na grande monocultura. Caso parte desses recursos fossem voltados para a produção orgânica e agroecológica, com certeza a produtividade desses setores iria se inverter. É como você falou, é difícil, não é de hoje para amanhã que a pessoa vai produzir de maneira agroecológica, e é preciso também um investimento financeiro, porque de pronto muitos produtores orgânicos estão ameaçados pela contaminação que vem de uma grande propriedade vizinha em que passa o avião, e vem pelo vento, pelo ar, pela água. O governo e a sociedade têm que começar a questionar, a dar apoio e exigir esse investimento maior nesse tipo de produção. A situação já foi pior, hoje temos certo investimento, mas ainda está muito aquém do que é investido nas grandes monoculturas.

IHU On-Line – Como você encara a relação entre a produção de organismos geneticamente modificados e os agrotóxicos?

Karen Friedrich – Não é uma coincidência que as grandes empresas produtoras das sementes transgênicas são as principais produtoras daquele agrotóxico ao qual a semente é resistente. A indústria vende dois produtos como sendo a solução dos problemas do agricultor, sendo que ele tem interesse na sua comercialização. É algo a se perguntar e nos leva a questionar todo o modelo de produção e pensar em alternativas para esse modelo. É claro que isso não vai interessar à indústria, mas temos que pensar também em quem o governo quer proteger. É uma questão até de soberania nacional.

Por outro lado, do ponto de vista da saúde, alguns estudos já demonstram que o uso combinado do agrotóxico com a semente pode aumentar a toxidade do produto. Isso por si só já demandaria mais investimento em estudo e pesquisa, de pesquisadores independentes da indústria, sem conflito de interesses. É importante que mais estudos fortaleçam essas hipóteses, mas na nossa Lei Ambiental temos o chamado princípio da precaução: uma vez existindo incerteza sobre a segurança de um produto, ele deve ser suspenso até que se comprove a sua segurança. Logo, mesmo que poucos estudos mostrem esse efeito combinado, por si só isso já deveria levar à suspenção do registro de agrotóxico.

Uso conjunto de agrotóxicos

Outra coisa que temos que pensar é que em determinada cultura são usados vários agrotóxicos. Para algodão, soja, são centenas de agrotóxicos permitidos para essas culturas. Claro que não se espera que o agricultor use todos os que são permitidos, mas se ele usar algumas dezenas, uma dezena, quatro, cinco variedades, o uso combinado pode prejudicar a saúde muito mais do que foi no laboratório.

Esta é uma deficiência da legislação não só no Brasil como em alguns outros países. Quando a indústria pleiteia o registro de um produto, ela apresenta vários estudos dos efeitos tóxicos daquela substância, só que conduzidos apenas tendo em vista a substância que está sendo pleiteada. Não se administra, no animal de laboratório, aquela substância mais outra que já está registrada para aquela cultura. Dito isso, nós não temos ideia do que resultaria do uso combinado dos agrotóxicos.

Do ponto de vista toxicológico do que se tem de alguns estudos científicos, já é demonstrado que algumas combinações são extremamente tóxicas. Um exemplo clássico é o dos organofosforados, uma classe química de agrotóxicos que causam a inibição de uma enzima chamada acetilcolinesterase. Então esse tipo de agrotóxico usado unicamente inibe uma quantidade X que poderia manter o indivíduo nas suas condições normais. Só que se ele usa dois, três, quatro organofosforados, esses efeitos vão ser somados. A inibição que era X passa a ser 3X, 4X, e acaba ultrapassando aquele limite em que se consideraria o efeito tolerável, chegando num ponto incompatível com a qualidade de vida da pessoa. Existem outros exemplos de agrotóxicos que podem causar alterações hormonais em quantidade muito maior do que a substância isolada.

É como no caso dos medicamentos; sabemos que há medicamentos que podemos usar em conjunto, e outros que são incompatíveis porque alteram o efeito esperado. Ou diminuem a própria eficácia ou aumentam e muito a sua toxidade. Do ponto de vista toxicológico, nós vemos que os efeitos do agrotóxico são realmente muito agressivos, e gradativamente devemos substituir esse modelo de produção baseado nessa “tecnologia” química e de transgênicos por modelos alternativos de base agroecológica.