Peter Seligmann, CEO da Nia Tero

por Rhett A. Butler em 15 Março 2021 | Traduzido por Carol De Marchi e André Cherri

  • Ao longo dos últimos 20 anos é cada vez maior o reconhecimento aos povos indígenas por suas contribuições na proteção da biodiversidade, áreas selvagens e ecossistemas.
  • Esta visão é uma ruptura das abordagens de conservação históricas que tendem a marginalizar, subvalorizar ou mesmo criminalizar os povos indígenas. A transição ocorrendo na área de conservação é um desenvolvimento importante para o setor, mas passar do discurso de mudança para a implementação de reformas significativas é um desafio.
  • Por essas razões, Peter Seligmann, uma das figuras mais conhecidas e influentes na área de conservação, é uma voz importante a ser escutada. Em 2017, Seligmann lançou uma nova organização chamada Nia Tero, que coloca os povos indígenas no centro de sua estratégia: “Para nós, ficou claro que o destino da humanidade depende diretamente da capacidade das nações e das pessoas de apoiar os direitos territoriais indígenas e abraçar sua crença na relação harmoniosa entre todos os seres e a Terra”.
  • Seligmann falou sobre as ambições de Nia Tero em uma entrevista em fevereiro de 2021 com o fundador do Mongabay, Rhett A. Butler.

Uma das grandes tendências na área de conservação nos últimos 20 anos é o reconhecimento crescente aos povos indígenas por suas contribuições nos processos de proteção ambiental. As terras administradas pelos povos indígenas e comunidades locais capturam pelo menos um sexto do carbono florestal e abrigam 80% das espécies terrestres. Grande parte das maiores paisagens intactas do mundo – da floresta Amazônica à ilha de Nova Guiné – são habitadas por humanos há muito tempo e, hoje, possuem populações indígenas consideráveis.

Essa visão é uma ruptura das abordagens históricas de conservação, que tendem a marginalizar, subvalorizar e até mesmo criminalizar os povos indígenas. Os mesmos indígenas cujas terras nativas eram destruídas para dar lugar a plantações e fazendas; roubadas por conta do minério e do  petróleo; envenenadas por resíduos industriais e poluição e invadidas por especuladores. Tradicionalmente, as contribuições dos povos indígenas não são reconhecidas pelo resto do mundo. Na verdade, há muitos casos documentados em que durante o estabelecimento de áreas protegidas, eles foram forçados a abandonar as terras que tradicionalmente cuidavam, ou sofreram restrições às atividades que praticavam há gerações.

A transição em curso na área de conservação é um importante caminho para o setor, mas passar do discurso sobre mudança à implementação de fato, trazendo reformas significativas, ainda é um desafio. É necessário ouvir com seriedade as críticas, engajar e capacitar as partes interessadas que têm sido tradicionalmente ignoradas ou marginalizadas, reavaliar as relações de legado, e levantar as estruturas de poder, entre outras medidas.

Por isso, Peter Seligmann, uma das figuras mais conhecidas e influentes na área de conservação, é uma voz importante a ser escutada. Após iniciar sua carreira na The Nature Conservancy, Seligmann foi co-fundador da Conservação Internacional (CI) em 1987. Ele transformou a CI em um gigante da conservação, ganhando o apoio de celebridades de alto escalão, executivos de negócios e líderes políticos.

Peter Seligmann. Photo credit: Nia Tero.
Peter Seligmann. Foto: Felipe Contreras/Nia Tero.

Uma das principais abordagens de conservação da CI tem sido o estabelecimento de áreas protegidas. Este processo inclui cientistas e outros especialistas identificando áreas biodiversas para potencial proteção, para depois trabalhar com os governos locais a fim de definir as zonas a serem conservadas, muitas vezes com financiamento de agências multilaterais de desenvolvimento, governos doadores, fundações filantrópicas e doadores individuais. A implementação de uma área protegida geralmente envolve uma série de parceiros que vão desde agências governamentais até ONGs e comunidades locais. Porém, muitos atores do campo da conservação provavelmente citariam as relações da CI com grandes empresas ou governos antes de mencionarem seu trabalho com povos indígenas e comunidades locais.

Seligmann, que deixou oficialmente o cargo de CEO da CI em 1º de julho de 2017, mas que permanece como presidente do conselho, lançou a Nia Tero, uma organização que coloca os povos indígenas no centro de sua estratégia. Nia Tero significa “nossa Terra” em esperanto, uma língua criada no final do século 19 para servir como um idioma universal para todos os povos.

O lema da Nia Tero é “assegurar a guarda indígena de ecossistemas vitais”, o que significa que ela “existe para assegurar que os povos indígenas tenham o poder econômico e a independência cultural para cuidar, apoiar e proteger seus meios de vida e territórios que chamam de lar”. A Nia Tero expressa total apoio à Declaração da ONU sobre os Direitos dos Povos Indígenas (UNDRIP), uma resolução adotada pelas Nações Unidas em 2007 que se tornou central nos esforços para garantir e afirmar os direitos indígenas em países ao redor do mundo, bem como os princípios do consentimento livre, prévio e informado (FPIC). Para assegurar a representação dos valores e visões de mundo indígenas, mais da metade do conselho consultivo, do conselho deliberativo e do pessoal sênior da Nia Tero é indígena.

“Os fundadores da Nia Tero são indígenas e não indígenas”, disse Seligmann ao Mongabay. “Desde nossas primeiras conversas, nos comprometemos a construir uma organização com múltiplas perspectivas e múltiplas culturas”. Em nossa constituição, convocamos as lideranças indígenas tanto na diretoria como no restante da equipe”.

“Para servir nossa missão, este compromisso com a diversidade é essencial. O DNA de nossa organização deve estar alinhado com as comunidades e culturas que apoiamos”.

Evening in the Boreal. Photo credit: Valérie Courtois
Noite de aurora boreal no Ártico. Foto: Valérie Courtois.

Seligmann diz que o ímpeto para iniciar a Nia Tero surgiu de pesquisas em meados de 2010 que descobriram que povos indígenas e comunidades locais administram vastas áreas de paisagens intactas enquanto suas terras têm taxas mais baixas de desmatamento e incêndios do que muitas áreas protegidas.

“Apesar dos 500 anos de colonização, os povos indígenas ainda habitam e governam, formal ou informalmente, mais de 40% da Terra.” Segundo ele, é graças à salvaguarda indígena das terras que a maioria delas manteve sua diversidade e vitalidade ecológicas. “Os povos indígenas não conseguiram isso cercando seus territórios, mas sim através de seus modos de vida. Muitos povos indígenas firmam um compromisso com suas terras e águas através de uma crença fundamental na reciprocidade – o modo de vida centrado no intercâmbio e compartilhamento mútuo entre todos os seres (visíveis e invisíveis) e a Terra.”

Dada a relevância de Seligmann no setor de conservação, houve muita especulação em torno da criação da Nia Tero. Durante os primeiros três anos, a organização operou discretamente enquanto angariava fundos, recrutava a equipe, concebia sua estratégia através de um processo consultivo e começava a estabelecer parcerias com as comunidades indígenas. Agora, Nia Tero está mais voltada ao público, conta com um website atualizado, realiza eventos e divulgou um programa para ajudar os povos indígenas a contar suas histórias.

De acordo com Seligmann, a Nia Tero também está estimulando outras organizações de conservação para que se tornem mais inclusivas em suas posições de liderança em relação aos povos indígenas, além de refletir sobre como descolonizar instituições, suas práticas e abordagens.

“Para que os grupos de conservação trabalhem efetivamente com os povos indígenas, eles devem primeiro apoiar sua jornada por direitos e autogovernança”, disse ele. “E o entendimento básico do que isso significa tem que vir primeiro”.

Em fevereiro de 2021, Seligmann conversou com o fundador e CEO do Mongabay, Rhett A. Butler, sobre a missão da Nia Tero, questões mais amplas no setor de conservação, entre outros assuntos.

Mongabay: O que inspirou seu interesse pela natureza e conservação?

Peter Seligmann: Quando jovem, meus pais me levaram para passear nas montanhas de Watchung Hills, no centro de Nova Jersey. Naquela época, eu coletava salamandras e sapos, e pescava em riachos e lagoas. Quando eu tinha 13 anos, minha avó levou os 16 netos dela para um rancho no Wyoming. O encontro de todos era sua maneira de reunir nossa família, que havia sido dispersada ao fugir da Alemanha nazista. Enquanto meus primos caminhavam nos Tetons, eu trabalhava para o fazendeiro, irrigando pastagens. Observei pássaros, insetos e coiotes e observei as nuvens se arrastando sobre as montanhas enquanto trabalhava. Aos 18 anos, comecei a trabalhar como estagiário para Frank e John Craighead em seus estudos do urso-pardo-norte-americano (Ursus arctos horribilis) e das aves de rapina nos parques nacionais norte americanos Tetons e Yellowstone. Foi neste ponto que percebi conscientemente que a jornada de minha vida tinha que se concentrar na inter-relação entre os seres humanos e o mundo natural.

Peter Seligmann with Indigenous leader Beto Marubo in the Javari Valley Indigenous Territory. Photo credit: John Reid
Peter Seligmann com o líder indígena Beto Marubo na Terra Indígena Vale do Javari. Foto: John Reid.

Desde então compreendi e reconheci que minha casa de infância em Nova Jersey está nas terras tradicionais dos povos Lenni Lenape; as terras do Wyoming, que causaram um impacto tão grande em minha vida, são os territórios tradicionais dos povos Blackfeet e Shoshone; e que estas são e têm sido terras indígenas desde tempos imemoriais.

Minha carreira se concentra em ouvir e aprender com os indivíduos e comunidades indígenas. Estou bastante consciente da urgência de reconhecer a sabedoria das culturas indígenas e abordar as distorções e limites do capitalismo. Cometi erros e pisei na bola muitas vezes. Tem sido uma lição de humildade incrivelmente gratificante.

Você é mais conhecido por ser co-fundador da Conservação Internacional (CI), onde segue participando como Presidente do Conselho. Quais são as maiores mudanças que você tem visto no campo da conservação desde o início da CI em meados dos anos 80 até agora?

Hoje, ao contrário de 40 anos atrás, existe um reconhecimento geral de que a degradação ambiental é uma questão de justiça social. Negros, indígenas e povos de cor estão assumindo papéis de liderança: eles têm uma participação maior e estão moldando o diálogo ambiental num nível que era inédito em meados dos anos 80.

This image from the Solomon Islands, is of a young woman returning to her village by boat from Malaita Island, after a long trip to gather supplies and food. Photo credit: Daniel Lin
Mulher retornando de barco da Ilha de Malaita, parte das Ilhas Salomão, à sua aldeia após uma longa viagem para recolher mantimentos e comida no centro urbano. Foto: Daniel Lin.

Outro ponto importante é que agora a maioria dos estados-nações, escolas e empresas adotaram iniciativas de sustentabilidade. As Nações Unidas lideraram os compromissos globais com o clima, a biodiversidade e as metas de desenvolvimento sustentável. O interesse em soluções ambientais na filantropia, nos governos e nas finanças é nitidamente maior.

O que me dá a maior esperança é ver os jovens de todo o planeta exigindo que todas as empresas e governos tomem medidas urgentes em nome da Terra.

A percepção pública da a CI é de que ela tradicionalmente adota uma abordagem verticalizada para a conservação, mas a filosofia de Nia Tero parece um afastamento disto. O que o inspirou a começar a Nia Tero? E qual é a missão e estratégia da Nia Tero?

Estou ciente da percepção do público. Desde o início, tenho pensado na abordagem da CI como “Cabeça no Céu e Pés na Lama”. Tentamos ligar a conservação baseada na comunidade com a reforma da política nacional e global. Um bom exemplo foi a criação do Fundo de Parceria para Ecossistemas Críticos (CEPF). Em 2000, a CI projetou e lançou o CEPF em colaboração com o Banco Mundial, o Fundo para o Meio Ambiente Global e o governo do Japão. Esta foi a primeira vez que o Banco Mundial assumiu um importante compromisso ambiental para subsidiar organizações locais ao invés de emprestar aos  governos. O CEPF expandiu-se para incluir a União Européia e o governo da França e, ao longo dos últimos 20 anos, o CEPF concedeu US$ 242 milhões a 2.500 organizações e indivíduos da sociedade civil. Mais de 3.500 comunidades foram beneficiadas diretamente e mais de 70 milhões de hectares de áreas prioritárias da biodiversidade em toda a Terra ganharam maior proteção.

A inspiração para o lançamento da Nia Tero surgiu em 2015, quando os cientistas começaram a reconhecer o importante papel que o mundo natural desempenha na captura e sequestro de carbono. Ao mapear os locais de maior importância para soluções climáticas baseadas na natureza, aprendemos que mais de 40% da Terra está sob a tutela dos povos indígenas e pelo menos um terço do carbono acima do solo está em seus territórios, assim como 80% da biodiversidade global e 40% dos ecossistemas saudáveis da Terra.

Global Forest Watch map showing Indigenous territories in the Amazon and beyond. Photo credit: Global Forest Watch.
Mapa da Global Forest Watch mostrando os territórios indígenas na região amazônica. Foto: Global Forest Watch.

Esta compreensão levou a inúmeras conversas e aprendizados entre amigos indígenas e não-indígenas. Há quinhentos anos, as sociedades ocidentais começaram a colonizar agressivamente as terras indígenas. Em 1452, o Papa emitiu uma bula papal que concedeu aos “príncipes da Europa” o direito de conquistar e matar não-cristãos além de tomar seus territórios. Este decreto foi, essencialmente, o início de um pesadelo colonizador que continua até os dias de hoje.

Como um todo, não reconhecemos plenamente a extraordinária resiliência dos povos indígenas. Apesar dos 500 anos de colonização, os povos indígenas ainda habitam e governam, formal ou informalmente, mais de 40% da Terra. Graças à tutela indígena das terras, a maioria delas manteve sua vitalidade ecológica e sua diversidade. Os povos indígenas não conseguiram isso cercando seus territórios, mas sim através de seus modos de vida. Muitos povos indígenas dedicam suas vidas às suas terras e águas através de uma crença fundamental na reciprocidade – o modo de vida centrado no intercâmbio e compartilhamento mútuo entre todos os seres, visíveis e não visíveis, e a Terra”.

Yanomami community in northern Brazil saying ‘Go away, mining companies’. Image by Victor Moriyama/ISA.
Comunidade Yanomami no norte do Brasil em protesto contra o garimpo. Foto: Victor Moriyama/ISA.

Em 2017, um pequeno grupo de nós decidiu lançar uma nova organização dedicada a apoiar os povos indígenas em seus esforços para proteger seus modos de vida e territórios. Para nós, ficou claro que o destino da humanidade depende diretamente da capacidade das nações, e das pessoas, de apoiar os direitos territoriais indígenas e abraçar a crença de seus povos na relação recíproca entre todos os seres e a Terra. Estávamos determinados a moldar nossa organização em torno de nossa crença compartilhada na reciprocidade como um princípio fundamental para todas as sociedades humanas. Nomeamos a nova organização Nia Tero, que em esperanto significa nossa Terra, com o nossa referindo-se a todos os seres, humanos e não-humanos.

Para alcançar nossa missão, a Nia Tero estabeleceu um princípio fundamental de abraçar e honrar esta conexão espiritual entre a humanidade e todos os outros seres. Temos o compromisso de servir as comunidades indígenas nos caminhos por elas determinados. Esta jornada não é curta e requer perseverança. Para nossa organização, é fundamental o compromisso de respeitar os direitos dos povos indígenas, incluindo o direito à auto governança dos territórios tradicionais. Para ser simultaneamente um forte aliado e uma ponte eficaz entre culturas contrastantes, a Nia Tero construiu uma diretoria e uma equipe que têm, e continuarão a ter, pelo menos 50% de indígenas.

Temos a sorte de ser guiados por uma notável diretoria, presidida por Vicky Tauli-Corpuz, uma líder Kankana-ey Igorot da Cordilheira das Filipinas. A Vicky se une a outros seis líderes indígenas representando uma diversidade de culturas, incluindo os Waorani da Amazônia Equatoriana, os Māori de Aotearoa (Nova Zelândia), os Dene dos Territórios do Noroeste do Canadá, os Miskita da Nicarágua, a Banda Oriental de Cherokee dos Estados Unidos e os Kanaka Maoli do Havaí. A eles se juntam cinco líderes não-indígenas excepcionalmente qualificados dos setores empresarial, filantrópico e acadêmico. Nossa diretoria garante que nos mantenhamos fiéis à nossa missão e nosso compromisso de sermos uma ponte entre as culturas, além de um forte aliado dos povos indígenas.

Guiados por nossa diretoria, assim como por um Conselho Consultivo Indígena excepcional, nossa estratégia evoluiu para duas correntes diferentes, mas interligadas.

Peter Seligmann listening at a meeting of Indigenous leaders from the Javari Valley in Brazil. Photo credit: John Reid
Peter Seligmann em uma reunião de líderes indígenas do Vale do Javari. Foto: John Reid.

Um pilar da nossa estratégia é focar em mosaicos de territórios em larga escala especificamente sob os cuidados dos povos indígenas e de importância global em termos de segurança climática e biodiversidade. Nesses territórios, colaboramos e apoiamos os povos indígenas e aliados escolhidos por eles. Começamos nos concentrando em três regiões essenciais: as florestas boreais do Canadá, as florestas tropicais do norte da Amazônia, e as ilhas e oceanos do Pacífico ocidental e central. Seguindo adiante, esperamos ser capazes de construir parcerias com comunidades indígenas no continente africano e asiático, entre outros.

Nessas iniciativas focadas em lugares, apoiamos os parceiros indígenas de diversas maneiras, como na concessão de fundos operacionais de curto e longo prazo e apoio técnico para a implementação de suas visões coletivas de bem-estar. Esses compromissos variam com base nas solicitações das comunidades e na realidade de cada território. Eles incluem garantir a segurança das lideranças indígenas; monitorar e proteger seus territórios contra invasões; melhorar as estruturas políticas e legais para direitos e autogovernança; inovar os avanços tecnológicos para a soberania energética e alimentar; aumentar as oportunidades de empreendimento e subsistência por eles definidas; e expandir o apoio do público à tutela indígena.

Esta segunda estratégia concentra-se em iniciativas que não estão focadas em territórios específicos. Ao invés disso, são intervenções regionais e globais com o objetivo de apoiar a tutela indígena de territórios em todos os continentes. Nós investimos onde acreditamos que os impactos da parceria irão abrir precedentes e ter um efeito escalável. Em todas essas iniciativas está a determinação de apoiar e fortalecer as potencialidades dos povos indígenas, e de enfrentar a diversidade de desafios e obstáculos racistas que eles continuam a enfrentar enquanto procuram proteger suas terras, comunidades e culturas tradicionais.

Nossas principais abordagens de amplificação e escalabilidade incluem o apoio aos esforços dos povos indígenas para transformar políticas e estruturas legais com impacto na auto governança territorial; aumentar o acesso dos povos indígenas a recursos financeiros, empresariais e técnicos para a tutela territorial, incluindo a melhoria das tecnologias indígenas; expandir o entendimento e o compromisso público com a tutela e a sabedoria indígenas através da comunicação e da narração de histórias; e lidar com as ameaças feitas por governos corruptos e indústrias ilegais aos líderes indígenas. Além do mais, durante o ano passado, temos apoiado comunidades indígenas em todo o mundo na resposta à crise da covid-19.

Young girl in the Kayapó-Mẽbêngôkre village of Aukre in the Brazilian Amazon. Photo credit: Cristina Mittermeier
Menina na aldeia Kayapó-Mẽbêngôkre de Aukre, na Amazônia brasileira. Foto: Cristina Mittermeier.

Talvez seja útil dar alguns exemplos de nossa política e de nossos compromissos de narração de histórias.

Com grande apoio de estados-nação, fundações e organizações de conservação, a Convenção das Nações Unidas sobre Biodiversidade vem impulsionando um conceito chamado 30X30. A ideia é simples: colocar 30% da Terra em alguma forma de status de proteção permanente até 2030. Como bem mais de 30% da Terra está sob o controle dos povos indígenas, muito do esforço tem sido concentrado em colocar os territórios indígenas em status de proteção. Acreditamos que nenhuma decisão que afete os territórios indígenas deve ser tomada sem a participação e acordo dos povos indígenas, seguindo os princípios do Consentimento Livre, Prévio e Informado (FPIC). Por esta razão, temos apoiado ativamente a participação de líderes indígenas e especialistas em política indígena nestas negociações.

Outra dimensão do engajamento político da Nia Tero é apoiar, formular e permitir avanços nos conceitos políticos. Um exemplo disso é nosso trabalho colaborativo com parceiros no Ocean Kinship, que se esforça para estabelecer uma posição legal para oceanos, rios e montanhas dentro dos sistemas jurídicos nacionais. Este conceito se baseia no precedente inovador de personalidade jurídica para o rio Wanganui na Nova Zelândia. Personalidade de terras e águas é uma parte central da visão de mundo de todos os povos indígenas e é essencial para avançar em direção a uma relação recíproca com a Terra. No entanto, ainda é, por enquanto, um conceito estrangeiro para a maioria das estruturas ocidentais contemporâneas.

Nosso programa de narração de histórias tem uma gama similar de propósitos. Em nossas principais regiões, a narração de histórias eleva e amplia o poder e as vozes dos povos indígenas com o objetivo de promover a tutela indígena. Em escala regional e global, nosso trabalho de narração de histórias visa elevar a apreciação e a compreensão das maneiras e meios indígenas entre o público alvo e o público em geral. A verdade é que as idéias indígenas, e as vozes indígenas que podem genuinamente compartilhá-las, têm sido estranguladas e oprimidas por séculos. A Nia Tero apoia e amplifica ativamente essas vozes e procura envolver outros parceiros nessa jornada.

Jesse Darling pulls a salmon from his gillnet right set in the lagoon right outside of Barrow, Alaska. Older Iñupiat recall that the first salmon only arrived about ten years ago. Prior to that the catch was primarily whitefish and grayling. Photo by Nia Tero Storytelling Fellow Kiliii Yuyan.
Jesse Darling puxa um salmão de sua rede em uma lagoa nos arredores de Barrow, Alasca. Os antigos Iñupiat lembram que o primeiro salmão só chegou há cerca de dez anos. Antes disso, a pescaria era principalmente de peixes brancos e grayling – um parente do salmão. Foto: Nia Tero Storytelling Fellow Kiliii Yuyan.

Estas duas abordagens, baseadas localmente e amplificadoras, estão interligadas e moldaram nossa estrutura, o destino de nossos investimentos, nossa seleção de parceiros e de nosso pessoal. Elas também moldaram nossos princípios e estratégias para apoiar a influência e a contribuição dos povos indígenas em escala global.

Uma das maiores críticas à “Grande Conservação” é que muitas vezes ela falhou em ser inclusiva, especialmente em relação a comunidades historicamente marginalizadas. Será que isso está mudando? O que a Nia Tero está fazendo para mudar o status quo?

As grandes organizações de conservação têm origens variadas. Algumas evoluíram dos esforços europeus para proteger certas espécies de plantas e animais, enquanto outras surgiram em meados do século 20 dos esforços locais para proteger lugares bonitos. Todas essas várias organizações tiveram diferentes missões e trabalharam com uma grande variedade de comunidades. A CI, a que conheço melhor, nasceu no final dos anos 80 com foco na interdependência dos seres humanos e ecossistemas saudáveis. No entanto, todas elas contrataram a partir de grupos semelhantes de seleção, que eram desproporcionalmente brancos e masculinos. A falta de diversidade destas organizações foi uma oportunidade perdida por elas, além de ter sido um reflexo do racismo profundo e sistêmico e da desigualdade nos EUA e na Europa.

Isto está mudando. Hoje, o ambientalismo é visto como mais do que a proteção da natureza e dos recursos naturais. Um meio ambiente saudável finalmente está sendo reconhecido como um direito básico para todas as pessoas. Felizmente, à medida que mais negros, indígenas e povos de cor entram no campo da conservação, eles estão trazendo consigo uma consciência desesperadamente necessária sobre as graves crises de justiça ambiental.

Recomendamos a todas essas grandes organizações que seus conselhos e pessoal incluam líderes indígenas. Também recomendamos oficinas de descolonização lideradas por povos indígenas. Para que os grupos de conservação trabalhem efetivamente com os povos indígenas, eles devem primeiro apoiar a busca deles por direitos e autogovernança e o entendimento básico do que isso significa é primordial.

Opening ceremony from the Pacific Peoples Forum in Vanuatu 2019. Photo credit: Zahiyd Namo.
Cerimônia de abertura do Fórum dos Povos do Pacífico, em Vanuatu, 2019. Foto: Zahiyd Namo.

Os fundadores da Nia Tero são indígenas e não-indígenas. Desde nossas primeiras conversas, nos comprometemos a construir uma organização com múltiplas perspectivas e múltiplas culturas. Em nossa carta constitutiva, convocamos a liderança indígena tanto na diretoria como na equipe. Conseguimos isso. Como mencionei anteriormente, o presidente da nossa diretoria é indígena e mais da metade da nossa diretoria se identifica como indígena. Nosso pessoal é constituído por uma mistura similar de culturas e identidades. Embora eu seja um CEO não indígena, assumi o compromisso de que meu sucessor será de identidade indígena.

Para cumprir nossa missão, este compromisso com a diversidade é essencial. O DNA de nossa organização deve estar alinhado com as comunidades e culturas que apoiamos. Nossos líderes de programa são predominantemente indígenas, assim como nossos principais parceiros. A maior parte de nossos recursos vai para as organizações indígenas ou para os aliados que as organizações indígenas selecionam. Por exemplo, no Vale do Javari, no Brasil, lar de cerca de 16 comunidades indígenas em isolamento voluntário, nosso trabalho tem sido apoiar uma ONG indígena que trabalha pelos direitos e a segurança do povo desta região tão grande e sem estradas. Nas florestas boreais dos territórios do noroeste do Canadá, nosso apoio vai para a Iniciativa de Liderança Indígena, uma iniciativa das Primeiras Nações (termo utilizado para se referir aos nativos canadenses) dedicada a fortalecer a nação indígena no cumprimento das responsabilidades culturais em suas terras. E em Pasifika (Oceania), a Nia Tero trabalha com líderes tradicionais das nações das Ilhas do Pacífico na busca da soberania sobre seus territórios oceânicos.

O futuro de toda a humanidade depende da saúde da Terra. Os povos indígenas têm suas culturas, os conhecimentos ancestrais, as experiências vividas e os territórios essenciais para que a humanidade possa escapar da atual crise ecológica global. Contudo, os esforços dos povos indígenas para manter esses bens interligados estão constantemente sob ameaça.

Voluntarily isolated people in the Javari Valley in the Brazilian Amazon. Photo credit: FUNAI.
Pessoas isoladas voluntariamente no Vale do Javari, na Amazônia brasileira. Brasil, Colômbia e Peru destinaram grandes áreas de floresta para as chamadas “tribos não contatadas”, ou povos indígenas que vivem em isolamento voluntário do resto da humanidade. Foto: Funai.

Para enfrentar essas ameaças, governos, instituições bilaterais e outros financiadores devem aumentar consideravelmente os ativos financeiros que fluem para os líderes indígenas. E devem fazê-lo de forma flexível e respeitosa, que fortaleça as organizações dos povos indígenas, sem camadas e mais camadas de burocracia.

Apoiamos e valorizamos a transmissão de experiência, treinamento e capacitação para a próxima geração de povos indígenas e de seus aliados. Acreditamos em programas de bolsas que proporcionem oportunidades para eles. Acreditamos que todas as decisões e políticas que os afetam devem ser tomadas em sua presença, e é por isso que trabalhamos para fortalecer as habilidades legais e políticas de nossos parceiros indígenas. Acreditamos que os povos indígenas devem ser ouvidos e incluídos em todas as instâncias, seguindo os princípios da autodeterminação e do Consentimento Livre, Prévio e Informado.

Estamos comprometidos a elevar e ampliar as vozes indígenas cujas histórias podem compartilhar idéias de reciprocidade e de relação respeitosa entre a humanidade e a natureza. Estas narrativas pessoais compartilhadas através de filmes, rádio, poesia, dança, canções, arte visual e histórias escritas têm o poder de inspirar milhões de pessoas em todo o mundo.

Outra crítica a alguns grupos de conservação é que muitos estão confortavelmente próximos a grandes corporações, algumas das quais geram pegadas ambientais significativas. Argumenta-se muitas vezes que o engajamento é uma estratégia eficaz para impulsionar mudanças, mas no contexto de povos indígenas que foram vitimizados por essas empresas, a dinâmica é diferente. Frente a isso, como a Nia Tero encontra recursos para realizar seu trabalho?

Concordo que muitas corporações, movidas pela necessidade de relatar os ganhos trimestrais e o foco míope em lucros maximizados, causaram danos sociais e ambientais muito sérios. Felizmente, devido ao poder das mídias sociais e às expectativas dos funcionários, acionistas e clientes, muitas empresas e suas lideranças estão trabalhando arduamente para mudar de comportamento. Se a pressão social continuar, espero que esta tendência se acelere e que os impactos sociais e ecológicos nocivos das corporações diminuam.

Entretanto, isto não reduz a dura realidade de que governos e corporações, particularmente aquelas de indústrias extrativas, exploraram os povos indígenas durante séculos. Em todo o mundo, governos e corporações têm constantemente confiscado as florestas, minerais, a pesca e terras dos povos indígenas. Desde o nascimento dos EUA, o governo norteamericano assinou e violou centenas de tratados, assassinou centenas de milhares de nativos americanos e roubou a grande maioria de suas terras. Os maus-tratos de nossa nação [Estados Unidos] aos povos americanos nativos são uma mancha em nossa história.

Men standing with pile of buffalo skulls, Michigan Carbon Works, Rougeville Michigan in 1892. Photo credit: Burton Historical Collection, Detroit Public Library
Homens em pilha de crânios de bisão, usados para fabricar fertilizante. Imagem feita em Rougeville, Michigan, Estados Unidos, em 1892. Foto: Burton Historical Collection, Biblioteca Pública de Detroit

A Nia Tero se esforça para ser uma aliada confiável e de credibilidade para os povos indígenas. Procuramos direcionar recursos financeiros e não financeiros aos nossos parceiros indígenas, que se esforçam para sustentar suas culturas e territórios prósperos. Nossa intenção não é competir com as organizações indígenas por fundos escassos. Nosso trabalho é aumentar a disponibilidade de fundos assegurando fontes de financiamento, de forma a melhor ajudar nossos colegas e aliados indígenas.

O financiamento que recebemos provém de filantropos que compartilham do nosso compromisso com os povos indígenas. Eles compartilham nossa crença de que garantir os direitos desses povos é absolutamente essencial para que a humanidade enfrente as mudanças climáticas, e para garantir que a Terra mantenha sua saúde, diversidade ecológica e vitalidade – também para os nossos descendentes. Neste momento, nossas despesas são cobertas por nossos membros fundadores. Cem por cento dos fundos adicionais doados para a Nia Tero vão diretamente para nossos parceiros indígenas.

Também esperamos que os governos se juntem aos nossos esforços através do apoio financeiro para a tutela indígena e aprovem legislações que garantam os direitos de controle e governança dos povos indígenas sobre suas terras e territórios tradicionais.

Muitas comunidades indígenas estão alavancando tecnologias como ferramentas na luta para ganhar o reconhecimento das terras tradicionais, proteger seus territórios, e até mesmo administrar o conhecimento tradicional. A Nia Tero realizou recentemente uma conferência sobre este tema. Quais foram as principais conclusões do encontro?

Os povos indígenas utilizam, e sempre utilizaram, todos os tipos de tecnologia desde tempos longínquos. Essas ferramentas e tecnologias geralmente são derivadas de uma profunda compreensão da existência recíproca da humanidade com outros seres. A tecnologia, tanto a antiga quanto a contemporânea, ajuda a apoiar os valores de reciprocidade que são de vital importância para os povos indígenas em seus esforços para garantir e proteger lares e lugares prósperos. Na Nia Tero, estamos trabalhando arduamente para que estejamos alinhados com essa sabedoria.

Os tecnólogos geralmente empregam tecnologias ocidentais contemporâneas em territórios indígenas sem envolver totalmente os povos indígenas no projeto, adaptação ou implantação de tecnologia. A Nia Tero e nossos parceiros do The Tenure Facility procuram usar o encontro indígena Technodigenous como uma forma de reunir os inovadores indígenas e os tecnólogos. Nossa esperança é criar um engajamento que leve a um melhor entendimento em torno do projeto, da adaptação e implantação de tecnologias importantes junto aos povos indígenas.  Mais do que adaptar ferramentas e plataformas existentes projetadas para outros ambientes, a ideia é que os conceitos indígenas impulsionem a inovação. O resultado trará inovações tecnológicas de ponta, nascidas da urgência dos povos indígenas que estão cuidando de seus territórios.

O primeiro encontro Technodigenous foi realizado em outubro de 2020. Concentramos essa reunião na soberania do transporte, porque os povos indígenas muitas vezes dependem de combustíveis fósseis para se locomoverem. Em muitos lugares do mundo, o único acesso dos povos indígenas aos combustíveis fósseis é através de governos, ONGs e corporações. Isso afeta negativamente a liberdade dos povos indígenas de alcançarem a auto-regulação total e prejudica a capacidade de protegerem seus territórios. Na conferência virtual, os povos Pasifika compartilharam como eles reavivaram as canoas polinésias – o que os levou a serem finalmente reconhecidos como excelentes navegadores. O povo Achuar, do Equador, compartilhou seu trabalho com a Kara Solar para testar diferentes protótipos de canoas movidas a energia solar. Como resultado do trabalho da Technodigenous, os povos indígenas da Amazônia e Melanésia estão agora trabalhando para projetar e testar suas próprias canoas movidas a energia solar em colaboração com os técnicos da Achuar e da Kara Solar. Esperamos que até o final de 2021, algumas dessas canoas estejam em pleno funcionamento ajudando os povos indígenas a protegerem seus territórios.

The second solar canoe has the same design as the first, only smaller. Both vessels will serve nine remote Achuar communities, enabling residents to move between them more easily. Image by Fundación Kara Solar.
Uma canoa movida a energia solar que atende nove comunidades Achuar remotas no leste do Equador. Foto: Fundação Kara Solar.

A Nia Tero também está trabalhando com parceiros e tecnólogos indígenas, incluindo pessoas com profunda experiência em tecnologia de satélite e de informação, para projetar o que um dia poderia se tornar uma plataforma de monitoramento de alcance global gerenciada por povos indígenas. Esta plataforma de monitoramento de terras ajudaria os guardiões indígenas a mapear, monitorar e proteger seus territórios. Ela os ajudará a detectar riscos em tempo real; a tomar medidas rápidas e eficazes; a deter futuras invasões; e a reduzir a perda de habitat vital e de biodiversidade. Esta plataforma irá exemplificar uma abordagem “biocultural” que coloca os interesses indígenas em primeiro lugar, abraça perspectivas culturais ligadas ao território e reconhece a interdependência mútua entre as diversas ecologias e o bem-estar humano.

Até recentemente, algumas questões ambientais, como a conservação da natureza selvagem, tinham apoio bipartidário. Você vê oportunidades para a conservação para unificar os americanos politicamente divididos?

Não acredito que a conservação da natureza selvagem vá unificar um EUA politicamente dividido. Será, entretanto, um bom lugar para colaboração e abrigo contra estes ataques ideológicos.

Certamente, o apoio bipartidário à conservação da natureza continuará nos EUA. Tanto os democratas quanto os republicanos apoiam a conservação das regiões selvagens como um conceito, mas não podemos baixar nossa guarda. O apoio à conservação se desfaz quando a ganância começa a fluir. Pense na enorme luta para que a Mina de Pebble pare, mesmo quando ficou claro que ela representava um perigo real e atual para as dramáticas corridas de salmão da Baía de Bristol. E hoje, o Refúgio Nacional de Vida Selvagem do Ártico está dominado pelos interesses dos combustíveis fósseis estimulados pela administração anterior.

Canning River, Arctic National Wildlife Refuge, Alaska. Photo credit: Jan Reurink CC BY 2.0.
Canning River, Refúgio Nacional de Vida Selvagem do Ártico, Alasca. Foto: Jan Reurink/CC BY 2.0.

Há uma chance de que a dor indiscriminada causada pela mudança climática e pela degradação ambiental seja tão amplamente sentida que os círculos republicanos e democratas exigirão que seus representantes políticos trabalhem em colaboração em busca de soluções. Infelizmente, isto só ocorrerá quando o sofrimento humano se estender para além dos negros, indígenas e povos de cor (BIPOC), da classe trabalhadora e das comunidades pobres para afetar as classes média e alta – isto é, quando não puder mais ser ignorado pelos que estão no poder.

A covid-19 tem causado rupturas em uma escala não vista em gerações. O que você acha que aprenderemos com a pandemia, e será que ela apresenta oportunidades para mudar o relacionamento da humanidade com o mundo ao nosso redor? Você vê uma oportunidade para a conservação fazer parte da recuperação econômica pós-covid?

A conversa em torno da covid-19 tem sido em grande parte sobre a relação entre humanos e vírus perigosos, bem como nossas relações com outras espécies. A maioria da população está muito distante dos focos de comércio onde animais selvagens vivos são vendidos e onde vírus perigosos fazem o salto das espécies animais para os humanos. O perigo, no entanto, não vem apenas de lugares distantes. O abate de milhões de martas infectadas pela covid-19 em fazendas industriais na Dinamarca diz respeito a perigos adicionais na forma como criamos animais para carne e outros produtos. Esses cenários de alta densidade apresentam grandes perigos éticos e epidemiológicos para a sociedade.  Vírus ainda mais mortais do que a covid-19 continuarão a infectar as populações humanas enquanto continuarmos subsidiando e fornecendo incentivos à produção ou comércio de animais em larga escala, e enquanto as comunidades locais continuarem a consumir de “wet markets” de animais selvagens. [Os “wet markets”, “mercados molhados” ao pé da letra, são mercados que comercializam produtos perecíveis como frutos do mar, carnes, frutas e vegetais. Alguns mercados vendem e abatem os animais in loco, incluindo frango, peixe, crustáceos e, em alguns casos, animais selvagens.]

Estratégias de desenvolvimento econômico que não levam em conta a saúde e a conservação do meio ambiente são um perigo real e presente para as famílias e comunidades. É por isso que as Nações Unidas estabeleceram as Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, que ligam diretamente saúde, pobreza, direitos das mulheres, segurança alimentar, oportunidade econômica e justiça social às mudanças climáticas e à proteção dos oceanos, rios, florestas, ecossistemas e biodiversidade da Terra.

Zacambu river and an oxbow lake in the Peruvian Amazon
Rios na Amazônia peruana. Foto: Rhett A. Butler.

Felizmente, há uma nova geração de consumidores que se comunicam poderosamente através das mídias sociais. Os jovens estão desafiando como os alimentos são produzidos em termos de produtos químicos que afetam a saúde pessoal, emissões que ameaçam a estabilidade climática e cadeias de fornecimento que destroem os sistemas ecológicos e as espécies.

As empresas e os reguladores do mercado começaram a ouvir. Eles estão cientes do poder das redes sociais e que as empresas são imediatamente rotuladas como um bom parceiro ou um predador, o oposto da forma como desejam ser percebidas. O velho argumento de que a proteção ambiental diminui a vitalidade econômica está sendo vista pelo que sempre foi: como egoísta e de visão míope. Pedir a uma comunidade ou nação que escolha entre saúde ambiental ou empregos é tão ignorante quanto pedir a uma pessoa que escolha entre ter um coração saudável ou pulmões saudáveis. Não podemos viver, e muito menos prosperar, sem ambos.

Estamos em uma nova era: a era da sustentabilidade. As inovações em sustentabilidade abundam em todos os aspectos da empresa, desde a indústria até a produção de alimentos e o desenvolvimento energético. Essas inovações estão aumentando a eficiência, reduzindo o desperdício, economizando dinheiro e criando oportunidades econômicas notáveis ao mesmo tempo em que melhoram a vida de bilhões de pessoas. Nossa responsabilidade é assegurar que todos compreendam o quanto o futuro da humanidade depende de que o mundo natural permaneça saudável.

Os EUA têm um novo presidente. Quais deveriam ser as principais prioridades da administração Biden para o clima, conservação e biodiversidade?

A administração Biden empregou alguns grandes nomes indicados em várias frentes ambientais. Talvez a mais significativa seja a nomeação de Deb Haaland, cidadã da Laguna Pueblo Peoples, para liderar o Departamento de Interior. Esta seleção reconhece a poderosa verdade de que existe uma ligação direta entre a segurança ambiental e a justiça social.

Protest camp at Standing Rock in 2016. Photo by Dark Sevier.

Campo de protesto na reserva Sioux de Standing Rock, na divisa dos estados Dakota do Norte e Dakota do Sul (Estados Unidos), em 2016. Foto: Dark Sevier.

A administração Biden vai pressionar fortemente a justiça climática em casa. Trabalhará com legisladores democratas e republicanos na elaboração de marcos regulatórios para incentivar reduções significativas nas emissões de CO2. A administração voltará a se envolver com a comunidade das nações globais para impulsionar as metas climáticas e ações climáticas, e enfatizará que os momentos de transição oferecem oportunidades excepcionais para inovação e crescimento econômico. Também reforçará a proteção da biodiversidade e da natureza selvagem através da assistência estrangeira e da ação legislativa e executiva.

Com certeza haverá intensos debates políticos, mas o público, especialmente os eleitores mais jovens, já demonstrou ser uma força poderosa para a mudança. Eles esperam que a Administração Biden esteja igualmente empenhada em abordar a justiça social e a saúde ambiental.

Uma tendência em conservação tem sido colocar um valor econômico nos serviços oferecidos por ecossistemas saudáveis e produtivos. Isto se destina a colocar a conservação em termos que as corporações e governos geralmente usam para a tomada de decisões; no entanto, ela considera que a terra seja valorizada exclusivamente para seu uso econômico, ignorando seu valor espiritual, intrínseco e cultural, bem como os direitos e o bem-estar de seus habitantes e do próprio ecossistema. Os povos indígenas frequentemente têm uma perspectiva muito diferente, vendo a terra que administram como uma parte central de sua identidade. Na sua opinião, o que a sociedade ocidental deveria aprender dessa mentalidade enquanto trabalhamos para enfrentar os desafios que enfrentamos?

Não discordo do esforço dos ambientalistas para atribuir um valor econômico aos serviços que o mundo natural fornece para nossas necessidades sociais. Nosso sistema baseado no mercado, que se concentra em ganhos econômicos de curto prazo e retornos trimestrais, certamente continuará desenvolvendo abordagens para avaliar o valor econômico dos serviços ambientais, tais como água e polinizadores, tanto em termos de suas contribuições para a indústria agrícola quanto nas despesas que são incorridas quando esses serviços não estão disponíveis.

Entretanto, a atual abordagem baseada no mercado é notoriamente míope e não tem a capacidade de antecipar os custos da destruição ambiental para a sociedade humana, incluindo os custos astronômicos da mudança climática. Nossa mentalidade ocidental precisa de alguma estrutura para destacar a forma como toda a humanidade depende de um planeta saudável. Como incêndios bíblicos, tempestades, secas e pragas virais se tornam nossa experiência comum em todo o mundo, a ideia de que devemos valorizar a Terra parece tão óbvia quanto os outros princípios fundamentais abraçados pelas fés de bilhões de pessoas. Talvez tivesse sido sábio ter um 11º Mandamento: Tu deverás cuidar da Terra.

Gold mining in the Peruvian Amazon. Photo by Rhett A. Butler.
Mineração de ouro na Amazônia peruana. Foto: Rhett A. Butler.

Esta ideia não é novidade. Ela é fundamental para a grande maioria dos povos indígenas, que acreditam que o destino e o bem-estar de toda a vida estão sempre entrelaçados. O Maori de Aotearoa (Nova Zelândia), os Waorani da Amazônia equatoriana e os Inuit da Groenlândia são apenas algumas culturas indígenas em todo o mundo que compartilham a profunda crença de que todos os seres e toda a vida são parentes.

Em 2019, Donald Trump fez uma proposta para comprar a Groenlândia. Quando o Premier Inuit da Groenlândia, Kim Kielsen, foi questionado sobre esta oferta por um jornalista de negócios da Bloomberg, ele respondeu que achava que a oferta era uma piada. Quando pressionado sobre o porquê, o Premier Kielsen respondeu que a terra dos inuit era um parente do povo, e a oferta era semelhante a pedir-lhes que vendessem sua irmã, seu irmão ou sua mãe. Ele prosseguiu dizendo que os inuítes, como a maioria dos outros povos indígenas, não vêem suas terras ou qualquer uma de suas criaturas como mercadorias a serem vendidas. Eles são relações.

Imagine se a sociedade ocidental tomasse a mesma abordagem. Nós não monetizaríamos um acre na Terra. Em vez disso, valorizaríamos cada lugar e daríamos graças pelos dons de sustento que a Terra e seus habitantes fornecem para nossas famílias e nossos filhos.

O que você diria aos jovens que estão angustiados com a atual trajetória do planeta?

Compartilho a preocupação dos jovens com a desumanidade da destruição e dos danos ao planeta. Tenho dedicado toda minha carreira profissional para ajudar a nos afastar desse caminho destrutivo. Com estes esforços e experiência, fico otimista e sinto um profundo e permanente respeito pela Terra e sua incrível resistência. Minha mensagem para os jovens é que permaneçam preocupados, se engajem e mantenham sua esperança. A Mãe Terra vai sobreviver, mas uma questão importante para a humanidade é: será que nós sobreviveremos? Então eu digo: aguente firme. A humanidade ainda não está terminada. Temos a capacidade e a sabedoria de mudar a forma como nos relacionamos com a Terra. Tome o tempo que for para aprender com as culturas indígenas.

Os jovens têm o espírito inovador e a mente aberta para desafiar a sabedoria convencional e assegurar que a saúde de nossa Terra não seja sacrificada por benefícios econômicos de curto prazo, e para poucos.

A todos os jovens que lêem isto, eu digo: vocês têm as plataformas e o poder da bolsa, agora e no futuro, para forçar as empresas a mudar a forma como elas operam. Seu poder coletivo está em sua energia e dedicação para transformar o DNA das empresas para que elas não prejudiquem mais a Terra e as comunidades nos próximos anos. Mantenha a pressão. Use sua voz e seu voto para responsabilizar os políticos por seus votos, por suas declarações e seus comportamentos. Vocês têm os números, quando coletivamente mobilizados, para garantir que os políticos tomem decisões corretas sobre nosso futuro coletivo.

E lembre-se: esteja vigilante. Permaneça resiliente.