Amazônia sob fogo: a longa luta contra os barões da terra no Brasil

Forest Fires In The Amazon 3

Um incêndio iniciado para limpar a terra para a agricultura no estado do Pará, na brasileira. DANIEL BELTRÁ / GREENPEACE

https://e360.yale.edu/features/amazon-ranchers-land-grabbers-heriberto-araujo

Yale Environment 360

Publicado na Yale School of the Environment

POR JOCELYN C. ZUCKERMAN

12 DE JANEIRO DE 2023

O jornalista espanhol Heriberto Araújo passou quatro anos relatando a destruição da Amazônia brasileira. Em entrevista ao Yale Environment 360, ele fala sobre seu novo livro, que explora a complexa teia de questões que sustentam o desmatamento da maior floresta tropical do mundo.

Em outubro passado, quando o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva derrotou o titular de extrema-direita, Jair Bolsonaro, nas eleições nacionais do Brasil, ambientalistas de todo o mundo deram um suspiro de alívio. Sob Bolsonaro, que enfraqueceu as proteções ambientais e pressionou para abrir terras indígenas à exploração comercial, o desmatamento na Amazônia explodiu. Lula prometeu proteger as florestas tropicais de seu país, mas, como disse o jornalista espanhol Heriberto Araujo em entrevista ao Yale Environment 360, o trabalho não será fácil.

Para seu novo livro, Mestres da Terra Perdida, Araújo passou quatro anos viajando de sua casa no Rio de Janeiro para Rondon do Pará, uma cidade no leste da Amazônia brasileira, para entender como, em menos de 60 anos, a maior floresta tropical do planeta se transformou em um motor de crescimento econômico. Rastreando a história do ativista dos direitos da terra José Dutra da Costa, ou “Dezinho”, que, antes de seu assassinato em 2000, liderou uma revolução entre os camponeses sem terra, Araújo chega para ver como um punhado de fazendeiros conseguiu se apoderar de enormes extensões de floresta tropical intocada e por que o desmatamento, a violência e a ilegalidade continuam difundidos na região.

Heriberto Araújo.
Heriberto Araújo. 

Quando se trata de controlar a destruição, Araújo diz e360, parar aqueles que seguram as motosserras deve ser apenas o começo. “A questão principal será garantir que os bandidos não possam se beneficiar dos mercados globais. Porque se há uma maneira de lavar sua madeira ou carne bovina relacionada ao desmatamento e vendê-la, você tem um incentivo para continuar fazendo isso.”

Yale Environment 360: O que fez você decidir escrever este livro?

Heri Araújo: Comecei a fazer viagens para a Amazônia para relatar o desmatamento e, a certa altura, alguém do Greenpeace me contou sobre uma cidade chamada Rondon do Pará e uma ativista cujo marido havia sido assassinado – o marido dela havia morrido em seus braços. Então viajei para Rondon e encontrei a Maria Joel. Finalmente, percebi que esta pequena cidade me permitia explicar toda a história da Amazônia brasileira. Em termos de desmatamento, tudo é muito recente. Começou na década de 1960. E toda vez que eu sabia sobre uma nova pessoa ou evento relacionado ao fenômeno, sempre encontrava um link para Rondon ou Maria Joel.

e360: Deve ter sido difícil relatar.

Araújo: Foi um processo complicado. Ajudou o fato de eu ter sido repórter na China por sete anos. Aprendi a lidar com a censura e outros tipos de perigos — talvez não o perigo de ser assassinado, mas de ser expulso do país. E aprendi a evitar anunciar minha presença como repórter estrangeiro. Eu falo um português decente e pareço um brasileiro comum, então as pessoas estavam relativamente abertas para conversar comigo.

Hoje, cerca de 45% das terras no Brasil são controladas por 1% da população.

e360: Fale-me sobre a evolução de Rondon ao longo das décadas.

Araújo: Como costuma acontecer naquela área – a borda leste da Amazônia – começou com um projeto de infraestrutura. Em Rondon, era uma estrada de terra, batizada de Estrada da Castanha. Havia várias trilhas que os coletores de castanha-do-Pará seguiam para entrar na floresta tropical. No final dos anos 60, o estado começou a pensar em desenvolver uma estrada para permitir que esses castanheiros aumentassem sua produção. Assim que as pessoas perceberam que era possível reivindicar um terreno à beira da estrada, começaram a se mudar. Na época, Rondon era uma fronteira. Era habitada por populações indígenas.

O problema se agravou quando o governo federal, na ditadura militar, apresentou um plano diretor para desenvolver toda a Bacia Amazônica. Introduziu incentivos fiscais e financiamento, incluindo alguns de credores internacionais, para construir rodovias e distribuir grandes áreas de terra aos colonos. Foi muito improvisado. As pessoas lutavam pelo acesso à mesma terra. As populações indígenas tiveram que lidar com colonos que chegavam armados e dispostos a matá-los. Conversei com a primeira mulher a construir uma casa ali. Ela tinha 90 e poucos anos. Ela me disse que comprou uma arma para se defender dos outros colonos porque todos estavam armados. As pessoas relutavam em relembrar aqueles dias e não queriam falar sobre o que havia acontecido com as populações indígenas, porque percebiam que as tribos haviam sofrido.

Maria Joel Dias da Costa em frente ao prédio do sindicato dos trabalhadores em Rondon do Pará. HERIBERTO ARAUJO

E360: Dezinho, como presidente do sindicato dos trabalhadores rurais, instituiu uma série de ocupações de terras que tiveram muito sucesso. Como isso funcionou?

Araújo: Um dos principais problemas que a Amazônia herdou dos anos 60 e 70 é a extrema desigualdade fundiária. Hoje, cerca de 45% das terras do Brasil são controladas por 1% da população. Por alguns anos, o governo federal quis dividir áreas da Amazônia e dar lotes de 30, 40 ou 50 hectares para agricultores familiares. Mas esse não é o modelo que prevaleceu. O que prevalecia era um único proprietário com vários milhares de hectares. Então, você tinha um grande número de pessoas se mudando do leste e sudeste do Brasil, esperando ter um lote, mas descobrindo que a terra já era controlada por uma minoria.

Havia má governança, mas também havia corrupção, suborno e grilagem de terras. E a ditadura [que governou de 1964 a 1985] era obcecada por comunismo, socialismo, qualquer coisa que parecesse gente se reunindo para tentar fazer algo juntos. Os sindicatos e outras instituições não tinham permissão para opinar sobre a forma como as coisas eram administradas.

E então, de repente, no final da década de 1980, você tinha democracia. O Brasil conseguiu implementar uma nova constituição que mudou o jogo em termos de direitos dos povos. As populações indígenas têm o direito de permanecer nas áreas onde viviam antes da expansão da fronteira. Cerca de 13% das terras brasileiras, principalmente na Amazônia, são de usufruto sem terem a propriedade, de grupos indígenas. A constituição também permitia a expropriação de fazendas improdutivas. O governo queria implementar a reforma agrária e pegar as populações pobres que viviam nas favelas e dar-lhes lotes para que pudessem melhorar de vida.

“Alguns argumentam que Dezinho foi muito direto ou muito franco. Ele disse à esposa e aos filhos que estava disposto a morrer por essa causa”.

E então você tinha a igreja e a esquerda se unindo para dizer: “Ei, queremos o que a Constituição diz. Queremos a nossa parte da riqueza do país.” Fazendeiros que haviam se apropriado dessas áreas anos ou décadas antes, e que talvez não estivessem preocupados em obter documentos porque achavam que ninguém jamais os reivindicaria, de repente perceberam que poderiam ser levados a tribunal e perder suas terras. Foi quando você teve esse confronto violento.

Em Rondon, você tinha a extrema concentração de terras em poucas mãos – alguns proprietários de terras tinham extensões de 200.000 hectares – e trabalhadores e trabalhadores migrantes estavam começando a falar sobre as condições que eles estavam enfrentando naquelas fazendas. Dezinho sugeriu aos trabalhadores que se unissem e ocupassem alguns dos lotes dos mais poderosos. Essa foi uma forma de fazer com que as autoridades investigassem a propriedade da terra. Ele sabia de antemão que aquelas terras haviam sido griladas e eram produto da corrupção. A Igreja Católica desempenhou um papel fundamental, no sentido de que havia pessoas bem instruídas, principalmente advogados, que poderiam ajudar os ativistas a entender a situação. Eles souberam como fazer com que as autoridades fornecessem documentos oficiais sobre os lotes. Nos últimos 30 ou 40 anos, mais de 350 famílias conseguiam lotes no Brasil por meio de ocupações de terras, muitas vezes seguindo o modelo em que entravam em loteamentos maciços reivindicados por uma única pessoa ou empresa.

Décio José Barroso Nunes em julgamento por participação no assassinato de José Dutra da Costa. ASSESSORIA DE COMUNICAÇÃO DO TJPA

e360: É um grande legado para ativistas da terra como Dezinho e sua esposa.

Araújo:. Alguns argumentam que Dezinho foi muito direto ou muito franco. Ele disse à esposa e aos filhos que estava disposto a morrer por essa causa. Mas se você perguntar a Maria Joel e seus filhos, eles não acreditam que são os vencedores da história. Eles se lembram da luta daqueles anos, do sofrimento e do medo. Como pai, imagino a dor que aquelas crianças e Maria Joel devem ter sentido, não só quando ele foi morto, mas quando ela decidiu permanecer em Rondon do Pará. Todos esperavam que essa pobre mulher pegasse seus filhos e fosse embora. Mas ela decidiu continuar a luta de Dezinho, pois percebeu que se não continuasse, ele teria sido morto em vão. Foi doloroso relatar, porque tive que sentar com ela por horas, voltando a questões que eu sabia serem muito delicadas, e todas elas estavam chorando.

e360: Como os supostos mandantes do assassinato de Dezinho, os fazendeiros Josélio de Barros e Décio José Barroso Nunes, conseguiram consolidar tanto poder?

Araújo: No caso de Josélio, ele teve uma juventude difícil e aprendeu a lutar para prevalecer sobre outras pessoas violentas. A violência e a criminalidade o ajudaram a consolidar um mito tal que as pessoas temiam apenas ouvir seu nome. Ele tinha uma forma polêmica de fazer negócios, mas se via como um pioneiro e alguém que contribuía para o desenvolvimento de Rondon.

Se Lula quer acabar com o desmatamento, uma das principais coisas que precisam ser enfrentadas é a responsabilização.

Nunes era muito mais sutil. Ele era um empresário moderno que decidiu fazer negócios de uma maneira muito diferente. Enquanto os outros empresários extraíam as toras mais valiosas e revendiam ou vendiam para corretores, ele se dispunha a controlar toda a cadeia de abastecimento. Ele poderia vender sua madeira e seu gado por um preço muito mais alto, o que lhe permitiu reinvestir em Rondon e se tornar o empresário número um. Hoje ele é dono da indústria frigorífica de Rondon, que exporta carne para Hong Kong e couro para a Europa.

Segundo a Justiça, Nunes era o mandante do assassinato de Dezinho. Mas o fez sem se expor, usando um intermediário e um pistoleiro. Documentos judiciais dizem que Josélio [que havia ameaçado Dezinho e se gabado de matar outras pessoas] estava envolvido em crimes.

e360: Há vislumbres de esperança no livro, com criminosos sendo condenados, mas os malfeitores sempre parecem fugir da justiça no final. Em relação ao sistema judiciário brasileiro, você tem esperança de que as coisas estejam melhorando?

Araújo: Estou otimista. Tive a oportunidade de falar com muitos juízes, estaduais e federais. E eu vi uma nova geração que foi educada em democracia e que percebe os desafios de implementar o estado de direito, e eles estão tentando lutar contra essas coisas. Um juiz me disse que, ao pensar que estava sendo ameaçado por um dos grandes fazendeiros, seus colegas lhe disseram: “Ei, é só pedir para ser realocado e esquecer esse assunto”. E ele disse: “Eu não poderia fazer isso, porque se eu fizesse, estaria aceitando que alguém, um fazendeiro, pudesse ditar as regras. E em uma democracia, as coisas não funcionam assim.” Então eu vejo esperança. Em algumas áreas, o Brasil é uma democracia muito avançada. Mas há outras áreas, especialmente em termos de governança e estado de direito, onde é preciso melhorar.

Uma fazenda de gado na Estância Bahia na Amazônia brasileira. DANIEL BELTRÁ / GREENPEACE

e360: Os cientistas dizem que a Amazônia pode estar chegando a um ponto crítico onde se transforma em savana, com implicações de longo alcance para os ecossistemas e o clima global. O que Lula e a comunidade internacional podem fazer para que isso não aconteça?

Araújo: Se Lula quer acabar com o desmatamento, uma das principais coisas que precisa ser enfrentada é a responsabilização. O Brasil possui um dos sistemas de monitoramento florestal mais avançados do mundo. Eles têm satélites, algoritmos, forças-tarefa. Depois de saber onde está acontecendo o desmatamento, você manda sua equipe e pega os pequenos infratores, os que estão segurando as motosserras. Mas não são eles que você precisa obter. Porque muitas vezes o sistema e os tribunais estão respondendo de forma que os responsáveis ​​pelos crimes possam permanecer foragidos, mesmo que sejam condenados. Se você tiver os recursos financeiros e bons advogados, poderá escapar da pena de prisão. Lula precisa responsabilizar aqueles que cometem crimes – crimes ambientais e todos os crimes relacionados, de fraude a corrupção e assassinato.

Outro fator chave são os mercados globais. Em 2022, o Brasil exportará algo como US$ 160 bilhões em agronegócio, de soja a couro e suco de laranja. Não há como frear o desmatamento se houver mercado para produtos ilegais vindos da Amazônia. A União Europeia está prestes a aprovar uma legislação que pela primeira vez proibirá, ou pelo menos tentará proibir, produtos relacionados ao desmatamento. Este é um importante passo adiante. Mas a China é o principal comprador dos produtos brasileiros. A escala do comércio bilateral Brasil-China é algo como US$ 120 bilhões por ano. Portanto, a questão principal é garantir que os bandidos não possam se beneficiar dos mercados globais. Porque se houver uma maneira de lavar sua madeira ou carne bovina relacionada ao desmatamento e vendê-la, você terá um incentivo para continuar fazendo isso.

As pessoas no nível local, desde populações indígenas até agricultores familiares, precisam saber que há ajuda financeira vinda de países ocidentais.

Os mercados também devem recompensar aqueles que seguem as regras. Tem que haver uma forma de, se estivermos importando açaí, pagarmos um prêmio para quem estiver produzindo bem. [As pessoas] estão desmatando porque precisam de emprego. Se você oferece às pessoas a chance de ter um emprego legal, essa é uma ótima estratégia.

Por fim, as pessoas no nível local, desde populações indígenas até agricultores familiares, precisam saber que há ajuda financeira vinda de países ocidentais. Isso foi algo que aprendi bem cedo quando viajei para a Amazônia. Eu estava entrevistando madeireiros ilegais, gravando com meu iPhone, e um cara me disse: “Você quer saber por que estou fazendo isso? Você tem um iPhone, certo? Presumo que você tenha um carro. Presumo que você tenha uma casa. Também quero ter, além de uma grande floresta, uma chance de melhorar de vida.”

É difícil responder a isso. Quer dizer, é justo. Então, a comunidade internacional precisa encontrar uma estratégia. Minha preocupação é o que acontecerá se, por exemplo, Estados Unidos, Japão, União Europeia e Índia disserem juntos: “Ok, vamos implementar uma estratégia abrangente para punir os infratores e recompensar aqueles que seguem as regras”. Mas então a China, que é o principal comprador, simplesmente ignora. Isso será um desafio. E tendo morado na China, posso ver isso acontecendo. Espero que eu esteja errado.

Jocelyn C. Zuckerman é autora de Planet Palm, um relato de como o crescente uso global de óleo de palma em alimentos e produtos de consumo teve impactos devastadores nas florestas tropicais, na biodiversidade e nas comunidades de subsistência. Escritora do Brooklyn especializada em meio ambiente, agricultura e o Sul Global, Zuckerman foi vice-editora da Gourmet. Seu trabalho apareceu no The New York Times Magazine, Fast Company e Audubon , entre outros espaços. 

Tradução livre, parcial, de Luiz Jacques Saldanha, janeiro de 2023.