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AGRONEGÓCIO E AGROTÓXICOS VERSUS AGRICULTURA FAMILIAR E ALIMENTOS ORGÂNICOS
“Agrotóxico não faz mal. A agricultura convencional é a responsável pelo aumento da longevidade e diminuição da fome no mundo”
por Elaine de Azevedo
Abril 19, 2019
Nenhum pesquisador inteligente publicaria um estudo com esse apelo em 2019. Se hoje o movimento de extrema direita MBL repete o que Ludwig von Misses disse em 1964 – que os agrotóxicos são os verdadeiros responsáveis pela longevidade – é preciso entender as razões para essa citação. O economista austro-americano nasceu em 1881 e parou de pesquisar em 1968 quando não havia nenhum estudo sobre os impactos dos agrotóxicos sobre a saúde. Viveu 92 anos e não foi graças aos agrotóxicos. Misses era um economista clássico, defensor do liberalismo, diretor da câmara de indústria e comércio de Viena e ferrenho critico do marxismo – razão central pela qual o MBL continua a utilizar sua visão obsoleta sobre os pesticidas. Desse movimento que corrobora com o neoliberalismo e com as conservadoras visões econômicas de Misses não poderia sair outra afirmação a não ser que os agrotóxicos são responsáveis pelo aumento da longevidade; aumento que é, na verdade, atribuído a fatores combinados – a descoberta dos antibióticos, a melhoria de higiene e saneamento e das condições gerais de vida. Essa menção aos agrotóxicos relacionada com a longevidade é desatualizada e irresponsável.
Mas as informações incorretas não são uma novidade e são geralmente veiculadas por jornalistas ou leigos com opiniões preconceituosas, superficiais e inconsistentes, como as do jornalista Leandro Narloch, que, em 2015, afirmou que o Instituto Nacional do Câncer reproduzia mitos e lendas ao relacionar câncer e agrotóxicos. Narloch defendeu que “o limite máximo de resíduos determinado pela Anvisa estava bem abaixo da ingestão diária aceitável (Nota do site: link proposto por este site e não pelo texto original). Por isso, raramente um alimento com mais resíduos que o permitido está contaminado ou é perigoso”. O jornalista, como muitos leigos despreparados para falar do assunto, claramente desconhece que as noções de limite máximo de resíduos ou de ingestão diária aceitável não são aplicadas no controle dos pesticidas no Brasil. Tais noções são vulneráveis e integram o que se chama de amplo repertório da retórica da ocultação que envolve a toxicologia manipulada pelos interesses da indústria química e os contaminantes do sistema agroalimentar moderno.
A questão da toxicidade dos contaminantes da agricultura é preocupante pois não há informações suficientes e seguras sobre o poder cumulativo, o efeito combinado, a mutabilidade (capacidade de sofrer mudanças em seu nível de toxicidade após a ingestão) e as possibilidades de interação no organismo humano dos inúmeros elementos utilizados no sistema agroalimentar. Ou seja, consumimos diariamente agrotóxicos, aditivos sintéticos, fertilizantes, drogas veterinárias em um caldo de contaminantes cujos efeitos nunca foram – nem serão – analisados conjuntamente. Portanto, não é possível estabelecer inter-relações precisas e imediatas entre as consequências do consumo dessas substâncias em longo prazo e as diferentes enfermidades. O único jeito é prevenir. Além disso, essas substâncias são, muitas vezes, ofertadas em doses acima das recomendadas e sem controle adequado por parte dos sistemas de vigilância. A maioria dos países adota sistemas de avaliação para estimar, cientificamente, o risco potencial para a saúde humana da presença de substâncias químicas em alimentos. No Brasil, esse sistema de controle tem muitas falhas e permite brechas que não devem deixar os especialistas nem os consumidores tranquilos.
A agricultura moderna concentrou-se em aumentar o rendimento, sem, no entanto, conseguir acabar com a fome que, em termos gerais, tem relação com a capacidade de acesso aos alimentos e a promoção de condições de vida dignas.
O sistema agroalimentar moderno produz alguns alimentos mais baratos, mas não são saudáveis. Essa é, na verdade, a grande ironia da união da Monsanto com a Bayer, uma empresa de venenos e outra de medicamentos sintéticos.
A questão a ser discutida é a longevidade a qualquer preço. Em termos gerais, vivemos mais do que no século XX, porém sem garantia de uma vida com saúde, como mostram, por exemplo, as taxas de crescimento do câncer e do autismo, ambas enfermidades com íntima relação com uso de agrotóxicos.
A OMS alerta que diversos tipos de câncer afetarão 1 milhão de brasileiros e o Instituto Nacional do Câncer estima, no biênio 2018-2019, a ocorrência de 600 mil casos novos da doença, para cada ano no Brasil. Por outro lado, artigo publicado na revista JAMA por pesquisadores franceses em 2018 afirma que o consumo de alimentos orgânicos está associado a um menor risco de câncer.
O Relatório de 2018 do Centro de Controle de Doenças dos Estados Unidos mostra um aumento significativo na porcentagem de crianças com autismo. O estudo revelou que 1 em cada 59 crianças tem autismo, o que corresponde a um aumento de 15% em relação aos últimos dois anos. A pesquisadora Stephany Sennef, do Massachusetts Institute of Technology, alerta que uma vez mantidas as taxas atuais de uso de pesticidas, por volta de 2025, uma em cada duas crianças estadunidense será autista.
Nem vou mencionar aqui outros estudos que relacionam agrotóxicos a infertilidade e diversas disfunções respiratórias, endócrinas, dermatológicas e neurológicas – que vão desde depressão e doença de Parkinson até o suicídio. Eu venho acompanhando tais estudos desde a primeira versão do meu livro Alimentos orgânicos, publicada em 2003, assim como a Associação Brasileira de Saúde Coletiva, a Fiocruz, a Comissão de Saúde da Assembleia Legislativa de São Paulo, a FAO, a Organização Mundial da Saúde e outras instituições dedicadas à saúde coletiva têm feito. Ignorar tais estudos e propagar inverdades sobre os agrotóxicos é uma irresponsabilidade que deveria ser punida em um país sério.. Claro que há histórias do tipo “meu pai fumou a vida toda e não teve câncer de pulmão…”. Naturalmente relacionar qualquer doença a um só tipo de agente causal (seja alimento, fumo, poluição ou genética), sem considerar a multicausalidade das doenças é uma afirmação frágil. Por outro lado, é justamente esse campo de causas variadas para as enfermidades que dá espaço para driblar a responsabilidade dos agrotóxicos em causar câncer por exemplo. Naturalmente, a etiologia de doenças tem uma complexidade que exige atenção, mas dizer hoje que agrotóxicos não causam alguns tipos de câncer é tão absurdo como dizer que o fumo não tem nada a ver com o câncer de pulmão.
Mas nem só os agrotóxicos devem nos preocupar. Há outros contaminantes do sistema agroalimentar – fertilizantes e aditivos sintéticos, drogas veterinárias e sementes transgênicas – que causam danos à saúde. Quando o holofote dos agrotóxicos tornar-se desfocado como ocorreu com o tabaco, devem surgir pesquisas com outros contaminantes do sistema agroalimentar que podem estremecer sua hegemonia. A batalha está só começando.
E qual é o sentido de produzir comida que cause problemas de saúde e repetir que o importante é ter o que comer – não importa qual alimento? A persistente ideia que ronda incansavelmente o governador de São Paulo de que para os pobres qualquer comida (e condição de vida) serve, além de ser eticamente contestável, é uma grande armadilha social mantida no Brasil desde sua colonização. Dar comida envenenada a quem já é vulnerável só continua gerando mais indivíduos doentes, vulneráveis e incapazes de alcançar equidade social. O que nunca foi prioridade nesse país. E ainda reclamamos de insegurança e desejamos mais ordem, mais segurança e mais prisões, culpando a vítima, que nem recebe o direito humano a uma alimentação saudável. Ou enaltecemos países que conseguiram minimizar suas desigualdades sociais fazendo reforma agrária, distribuição de renda e políticas de segurança alimentar e bem estar social.
Uma palavra sobre a reforma agrária que tem íntima relação com agricultura familiar (que produz quase 80% da alimentação orgânica no Brasil) e com soberania e segurança alimentar. Reforma agrária é um projeto de países desenvolvidos; não é “coisa de esquerda”, não é partidária, mas é uma reorganização da estrutura fundiária que quase todos os países desenvolvidos já fizeram para minimizar desigualdades sociais e étnico-raciais e distribuir terras improdutivas. Mais de quarenta países já experimentaram projetos de redistribuição da posse da terra neste século – e nenhum deles permaneceu o mesmo depois disso. Quase a metade – 46% – das terras brasileiras estão nas mãos de grandes latifundiários que não produzem comida, mas produtos de exportação, PIB e acumulação de riquezas. Impossível haver segurança alimentar e nutricional e desenvolvimento socioeconômico onde há alta concentração de renda e desigualdades sociais. Sem abrir mão de privilégios jamais chegaremos a um desenvolvimento social pleno.
Por sua vez, a agricultura familiar orgânica não foca só a produtividade. O sistema considera, como mostra o gráfico abaixo (resumo do estudo de John Reganold e Jonathan Wachter), todas as dimensões implícitas para o alcance da sustentabilidade: ambiental, econômica e social e também o impacto sobre a saúde humana, além da dimensão cultural (não estudada por esses pesquisadores da Washington University).
Por isso, o embate entre o alimento orgânico e o agrotóxico, apesar de se configurar um Dom Quixote frente aos moinhos de vento, amedronta a bancada ruralista e o agronegócio. A agricultura convencional sustenta-se em um só parâmetro; o econômico, com base na ilusória produtividade de comida do agronegócio. O debate conceitual é frágil porque a abordagem da agricultura convencional é reducionista.
Já começamos a perceber uma reação do setor rural na tentativa de revelar a sociedade brasileira uma positiva dimensão ambiental relacionada ao agronegócio. Enquanto a Embrapa Florestal enaltece o polêmico Código Ambiental Florestal de 2012 e libera notícias de que o setor rural “está mais atuante na preservação ambiental”, mostrando um país com 63% de cobertura “natural”, o Projeto MapBiomas exibe imagens detalhadas e factíveis sobre ocupação de terra alertando que o Brasil perdeu 71 milhões de hectares (equivalente aos estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Paraná e Espírito Santo somados) entre 1985 e 2017, período em que ás áreas destinadas à agricultura triplicaram e as áreas para pecuária aumentaram 43%.
*Elaine de Azevedo é nutricionista e doutora em Sociologia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina, professora do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Espírito Santo e pesquisadora em Sociologias da Saúde, Ambiental e da Alimentação.
Série – Agronegócio e agrotóxicos versus agricultura familiar e alimentos orgânicos
A produção é da professora da Universidade Federal do Espírito Santo e pesquisadora em Sociologias da Saúde, Ambiental e da Alimentação, Elaine de Azevedo. Construída a partir de controvérsias que circulam na mídia, esta série pretende analisar as dimensões éticas, sociais, econômicas, políticas, ambientais e de saúde implícitas a esses dois sistemas agroalimentares que não encontram sintonia entre si porque têm diferentes objetivos, os quais precisam ser compreendidos. Confira os artigos:
1 A agricultura orgânica e sua capacidade de produzir comida para alimentar a população mundial
2 “Agrotóxico não faz mal. A agricultura convencional é a responsável pelo aumento da longevidade e diminuição da fome no mundo”
3 “Alimento orgânico é uma questão de esquerda e é inacessível para a maior parte da população” (no ar a partir de 26 de abril de 2019)
4 “O agronegócio é que produz comida” (no ar a partir de 3 de maio de 2019)
5 Venenos na agricultura: quem ganha com isso e como diminuir? (no ar a partir de 10 de maio de 2019)
6 “A qualidade do alimento orgânico é igual ao alimento convencional” (no ar a partir de 17 de maio de 2019)