Agrofloresta possibilita resgate da cultura alimentar quilombola ameaçada em Ubatuba (SP)

Quilombo Floresta

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Pedro Stropasolas

de Fato | São Paulo (SP) | | 22 de Novembro de 2022

No Quilombo da Fazenda, 71 famílias resistem produzindo alimentos orgânicos em sintonia com a Mata Atlântica.

“Ser quilombola para mim é ser negra, é a minha origem, é ser um povo que sofreu muito, muito mesmo, que veio para cá sem querer vir, que não sabia nem onde estava vindo, mas enfiaram num navio e trouxeram para cá. É um povo sofrido, mas um povo de luta. Isso é ser quilombola“.

É assim que Laura de Jesus Braga define suas origens no Quilombo da Fazenda, comunidade que remonta à própria história da região de Ubatuba, no litoral norte de São Paulo.

No século XIX, a compra de grandes lotes de terras na região por colonos estrangeiros resultou na vinda de um grande contingente de negros escravizados vindos da África.

Mas com o declínio da produção do café, veio o abandono e a venda de muitas fazendas na região.  As propriedades passaram então a ser ocupadas ou até mesmo doadas a ex-escravos. 

“Aqui era uma fazenda. Aqui era cheio de escravos. Mas quando a fazenda piorou que acabou o povo foi embora. Deixaram o meu tio tomando conta dessa fazenda. Aí nós viemos formar o quilombo aqui da fazenda”, conta o produtor rural Cirílio Braga. 


Círilio cultiva na agrofloresta do quilombo cambuci, araçá do cerrado, araçá boi e o cupuaçu para a produção de polpas / Pedro Stropasolas

“Para mim o quilombola veio desde o tempo da independência do Brasil. Do tempo dos escravos. Aí que foi nascer a geração dos quilombolas”, pontua o agricultor.

No início de tudo eram 12 famílias. E a subsistência do quilombo vinha do cultivo agrícola em pequenas lavouras e também da pesca artesanal. 

“Era uma comunidade isolada, a gente não tinha nenhum meio de transporte, nenhum meio de comunicação, mas a gente vivia da roça e da pesca. Então a gente na cidade, fazia a troca. E a gente trocava apenas o sal e o querosene. Porque a gente não tinha energia. Então era só isso”, relembra Dona Laura.

“Os demais nós tirávamos da roça, o nosso peixe era fresquinho, e a gente só pescava para consumo. A gente comia peixe todos os dias. Porque a gente tinha esse cuidado de pegar apenas o que ia se alimentar”, completa.

As famílias trabalhavam com a prática tradicional da coivara, uma técnica que faz parte do Sistema Agrícola Tradicional Quilombola e prevê a queima das áreas de plantação entre uma safra e outra. A intenção era de preparar e adubar o solo. Mandioca, milho, feijão e abacaxi estavam no centro da produção.

As roças de coivara estão hoje em processo de reconhecimento como patrimônio imaterial pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.

Os desafios com a chegada do parque


Habitantes do Quilombo da Fazenda não foram escutados durante a criação do Parque Estadual da Serra do Mar (PESM), na década de 1970 / Unesp

Mas na década de 1970, outro cenário é colocado às famílias quilombolas. A criação do Parque Estadual da Serra do Mar (PESM) passa a impor a uma série de restrições às práticas ancestrais da comunidade.

O parque restringiu a presença dos quilombolas na região, proibindo a construção de moradias e o plantio tradicional por meio da coivara.

O Mapa de Conflitos organizado pela Fiocruz destaca que a área da unidade de conservação foi delimitada em apenas dois dias, utilizando cartas topográficas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Sem qualquer levantamento antropológico, a demarcação não considerou a existência de possíveis comunidades habitando a área, e os habitantes do Quilombo da Fazenda ficaram à margem das discussões sobre o parque. 

“Eles vieram com o modelo da Alemanha, onde não poderia ter gente. Só mata e os animais. Vieram tirando todo mundo. Nessa época eu estava grávida do Cristiano de cinco meses. Eles chegaram na minha porta, 30 homens armados de facão e revólver e me falaram que eu não poderia mais estar aqui, porque agora era do governo”, lembra Dona Laura.

“A gente não morava mais, ninguém construía, ninguém pescava, ninguém plantava. Aí a nossa cultura enfraqueceu muito”, completa.

Na mesma época, a comunidade isolada em meio a floresta, as cachoeiras e praias também é impactada pela construção da rodovia rio Santos, que iniciou suas obras em 1973.

“Ela trouxe comunicação, ela trouxe transporte, o progresso, mas junto veio muita coisa ruim, veio a especulação imobiliária começou a tirar as terras dos caiçaras, quilombolas. Os grileiros chegaram”, conta.

É nesse momento que se inicia a luta pela permanência no território e a criação da Associação Comunitária dos Remanescentes do Quilombo da Fazenda, um marco para o reconhecimento das 71 famílias como pertencentes a uma comunidade quilombola.


Primeiro registros da criação do Parque Estadual da Serra do Mar (PESM) / Divulgação

Rodovia Rio Santos

Sirílio, irmão de Laura, conta das dificuldades para continuar o cultivo de subsistência. “Depois que o que aqui foi tombado para parque acabou a cultura da roça do povo. Aí depois ninguém planta, porque se mexer é multado essas coisa tudo. Foi mudando as coisas para a gente”, pontua.

Para manter a produção de alimentos no Quilombo da Fazenda foi necessária a introdução de agroflorestas, uma das únicas atividades de subsistência permitida pelo parque.

Em 2006, com ajuda do Instituto de Permacultura e Ecovilas da Mata Atlântica (Ipema), foi iniciado o processo. A transformação trouxe não só uma diversidade de culturas, especialmente frutíferas, em sintonia com a Mata Atlântica, mas também o resgate da cultura e identidade da comunidade por meio da produção na terra.

“Como passou por geração a gente pretende preservar esse cultivo até hoje, né? E viver dele. A agrofloresta ela planta a vida. A partir da recuperação do solo, você recupera uma área degradada, você está plantando a água que está brotando ali nas nascentes, os afluentes de rio. Às vezes uma antiga nascente ali que secou, você recupera e a partir disso se foram uma floresta. Então você planta água, planta vida, planta alimento e tudo isso é muito gratificante para nós”, explica Cristiano de Jesus Braga, comunicador e guia turístico de base comunitária do quilombo.

Cris, como é conhecido, explica que a recuperação do solo com o uso de plantas que servem como cobertura verde é o primeiro passo para o bom funcionamento do sistema agroflorestal.

É o caso de espécies como mucuna preta, feijão de porco, guandu, margaridão e girassol. “São espécies que vão produzir nutrientes para o solo e recuperar ele”, conta.

Polpas e geração de renda

Da Agrofloresta da Fazenda, são colhidas as frutas que serão transformadas em polpas, como cambuci, o araçá do cerrado, araçá boi e o cupuaçu. 

Além das polpas das frutas da região, a agrofloresta quilombola produz banana, cacau, abacate e abacaxi. Tudo abastece o restaurante Sabor Quilombola, cujos pratos tradicionais são feitos por Dona Laura. Um dos destaques é o uso do coração da bananeira para a tradicional salada quilombola.

“É o carro chefe do restaurante, a salada quilombola. Aí a gente criou também o bolinho de taioba, além de comer ela refogadinha, o bolinho, a torta”, conta a cozinheira.

A colheita também chega a outros estabelecimentos de Ubatuba. E a ideia, para o futuro, é passar a integrar o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE).

“Eu costumo dizer que a alimentação é tudo, porque antigamente as pessoas morriam de velhice. E não de doença. Porque a comida era saudável. A comida era saudável, não tinha veneno, não tinha nada. Hoje está todo mundo doente. As crianças já nascem doente. Porque elas compram lá no supermercado industrializado. Está lá no vidro, sabe? Há quanto tempo que está um palmito no vidro? Cheio de coisas lá dentro para ele não estragar”, questiona Dona Laura.


Cristiano Braga mostra a colheita do coração da bananeira e do cacau / Pedro Stropasolas

Ser quilombola é preservar tudo

Atualmente, o Quilombo da Fazenda integra o Fórum de Comunidades Tradicionais da Bocaina e inicia a prática do Turismo de Base Comunitária. 

Mesmo com toda documentação e registro na Fundação Palmares, a comunidade ainda aguarda a homologação de seu território tradicional e trava na Justiça uma disputa sobre a titulação da terra junto ao estado de São Paulo.

“Ser quilombola é preservar tudo, né? Todo aquele costume do passado, dos nossos ancestrais. E permanecer no território, como quilombola, permanecer no território com esses costumes, lutar pelos nossos direitos. Porque antes os quilombolas, eles eram refugiados”, opina Cris.

“Eles fugiam das grandes fazendas, dos antigos senhores dos engenhos. E fugiam para a floresta e lá eles formavam a comunidade, que davam o nome de Quilombo. Ali eles passaram a ter a liberdade. Então o quilombo para gente representa liberdade”, finaliza.

Edição: Thalita Pires