Vista geral da comunidade (favela) de Paraisópolis, ao lado do bairro do Morumbi. Fotos aéreas da cidade de São Paulo.
PAULA LOPES BARBA
São Paulo, Brasil –31 DE DEZEMBRO DE 2022
O Brasil voltou a figurar no mapa da fome da FAO, de onde saiu em 2014 após os governos Lula e Dilma. A horta comunitária orgânica Agro Favela Refazenda combate a insegurança alimentar na segunda maior favela de São Paulo.
Passam-se alguns minutos depois do meio-dia e Maria Carvalho Santos anuncia a uma dezena de pessoas que esperam à porta do pavilhão social de Paraisópolis que a comida acabou. Ele não perdeu o sotaque baiano de sua terra natal, mesmo morando há 35 anos nesta favela agreste, uma das duas maiores de São Paulo , onde vivem cerca de 100 mil pessoas. Era um dos últimos de uma fila que começava a se formar às dez da manhã, como todos os dias. Quem chega cedo senta-se e espera mais de uma hora pelas panelas, embalagens de comida para levar, acabadas de fazer pela iniciativa solidária Mãos de Maria.
Hoje já foram distribuídos cerca de 200, com arroz, feijão e hortaliças da horta orgânica comunitária na qual alguns, como Carvalho, colaboram. Nascida há 62 anos no estado da Bahia, no Nordeste do Brasil, ela veio para São Paulo na década de 1980 com o pai em busca de melhores oportunidades de trabalho e se estabeleceu em Paraisópolis, como milhares de migrantes nordestinos. E ela os encontrou, trabalhava como empregada doméstica na casa de uma família, mas perdeu o emprego e ficou sem renda durante a crise da covid-19. “Quando a pandemia começou, a situação era horrível e, graças a esses projetos de entrega de alimentos, sobrevivemos”, diz Carvalho.
Vista da horta orgânica na grande favela paulistana.
Maria Carvalho Santos colabora na grande horta do bairro e é a beneficiária das cestas de hortaliças orgânicas.
Segundo dados do bloco de lideranças e empresários G10 Favela, mais de três milhões de potes foram entregues em seu pavilhão social desde o início da pandemia e 2.700 toneladas de hortaliças cultivadas ali mesmo, na horta orgânica Agro Favela Refazenda. São 900 m² dedicados à produção de alimentos orgânicos para os habitantes de Paraisópolis.
Uma das prioridades da volta de Lula será tirar da miséria os 33 milhões de brasileiros que sofrem com a insegurança alimentar.
Carvalho é uma das 2.500 beneficiadas e, embora ainda precise de doações de alimentos para sobreviver, ela admite que “a situação melhorou muito desde que o Auxílio Brasil começou”. Refere-se ao subsídio antipobreza que o governo Jair Bolsonaro lançou no último ano do seu mandato e graças ao qual recebe 600 reais, pouco mais de 100 euros. Um valor que chega a substituir e dobrar o Bolsa Família, o renomado programa de transferência de renda do governo Lula que por 18 anos tirou milhões de pessoas da extrema pobreza e que Bolsonaro desmantelou para criar a sua. Após as eleições de 30 de outubro, o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva anunciou que o subsídio continuará a partir de 1º de janeiro, mas que passará a se chamar Bolsa Família.
Uma das prioridades da volta de Lula será tirar da miséria os 33 milhões de brasileiros que sofrem com a insegurança alimentar. O Brasil voltou ao Mapa da Fome da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO), de onde havia saído em 2014, após os governos do Partido dos Trabalhadores (PT). “Esse país é o terceiro maior produtor de alimentos do mundo, o que falta é vergonha na cara das pessoas que o governam”, concluiu Lula em tom inflamado em frente à lotada Avenida Paulista no dia 30 de outubro, poucos minutos depois vencendo as eleições e diante do silêncio de milhares de pessoas que o escutavam atentas e emocionadas.
Laeso, outro nordestino de Paraisópolis, também aguarda a volta de Lula. “Ele estava trabalhando na obra, mas parou por causa da pandemia e as coisas ficaram mais difíceis. Voltarei a trabalhar, mas ainda há poucas oportunidades, espero que com o novo presidente melhore”, comenta com as duas embalagens de alimentos doados que acaba de pegar, empilhadas em suas mãos.
Viver de doações não é um caminho com futuro.
Assim como Carvalho e Laeso, quando a ajuda oficial não chegou, milhares de pessoas puderam comer em Paraisópolis graças às iniciativas solidárias do pavilhão social. Graziela Soares, gerente administrativa do pomar, foi um dos 658 presidentes de rua, voluntários que cuidaram de seus vizinhos nos dias mais difíceis do início da pandemia. Quando centenas de milhares de pessoas morriam no Brasil, Soares garantiu que as 50 famílias sob seus cuidados não faltassem comida ou atendimento médico. “Levamos dignidade e carinho para eles”, destaca.
Comida com conhecimento
Mas para Soares não adianta dar comida sem dar conhecimento. “417 pessoas já se formaram aqui como horticultores urbanos, a grande maioria mulheres.” Ela a conta rodeada de folhas brilhantes no exuberante pomar, um oásis entre os tijolos à vista da maioria das casas da favela.
Uma das principais responsáveis por deixar tudo tão apetitoso é Maria Adélia de Oliveira, ou Dona Adélia, que cuida das plantas com máscara, junto com outra jardineira. “Era um estacionamento que virou a maravilha que vocês estão vendo”, diz, sorrindo entre as mais de 60 espécies. Árvores de fruto, alfaces, couves, alhos franceses, espinafres, pimentos, cenouras e beterrabas. Cheira a manjericão, tomilho e menta. Sem produtos tóxicos. Em 2021, o governo brasileiro registrou o recorde de agrotóxicos utilizados em seus produtos agrícolas, vários deles proibidos em outros países devido à sua composição perigosa.
O Brasil é um dos líderes mundiais na produção de carne e no uso de agrotóxicos, a alimentação de seus 214 milhões de habitantes tem grande impacto.
Aqui, técnicas de cultivo ecológico são usadas para economizar espaço, tão escasso nas favelas. “São cultivos aeropônicos, com raízes aéreas. Fazemos um nutriente com ferro, cálcio e potássio e usamos uma bomba de aquário para fazer o líquido circular entre as raízes. As estruturas são feitas para nós por um menino de São Paulo”, explica, mostrando reluzentes couve, salsinha, rúcula e acelga espiando pelos buracos dos tubos de aço. Ele diz que os dois tipos de cultivo sem substrato que utilizam preferem a aeroponia à hidroponia, porque esta última precisa de um tecido para reter água e exige mais manutenção. “A aeroponia é mais prática porque após a colheita, as colunas são lavadas e plantadas novamente”, relata Dona Adélia.
Que os telhados das casas são verdes
A ideia de produzir alimentos orgânicos diretamente em Paraisópolis, aproveitando os poucos espaços disponíveis para plantar sem substrato, dá tanto certo que a Agro Favela Refazenda foi replicada em Heliópolis, maior favela de São Paulo, e outro canteiro do projeto está em as obras no estado de Minas Gerais. O idealizador dessas hortas comunitárias é Gilson Rodrigues, presidente do G10 Favelas e doutor honorário por seus serviços prestados à sociedade. Aquele que foi presidente da associação de moradores e é conhecido como o “prefeito de Paraisópolis” por ter comandado as aclamadas medidas emergenciais de sobrevivência à pandemia de covid-19.
A Agro Favela Refazenda foi uma delas, mas a ideia de plantar hortaliças ali começou antes, explica Gilson. “Percebi que viemos do nordeste do Brasil, onde se pratica a agricultura familiar, mas chegamos a São Paulo, uma cidade cinza e cheia de prédios, e perdemos a tradição de cultivar a terra.” Quando viajou para a Bahia em 2017 e visitou a tia-avó Vitória Cruz de Alencar, que aos 104 anos ainda cultivava em casa, ela se perguntou por que Paraisópolis não tinha horta. “Provavelmente porque o preço do metro quadrado é um dos mais caros das favelas do Brasil, ninguém vai parar de construir para plantar hortaliças”, pensou. Mas quando voltou para São Paulo e subiu no telhado da associação de moradores que dirigia, percebeu que ali havia lugar para um. E ele começou a trabalhar.
Alface produzida pelo sistema aeropônico, que consiste no processo de cultivo de plantas em ambiente aéreo sem uso de solo. PAULA LOPES BARBA
Mas não apenas para montar um pomar, ele aproveitava a beleza da vegetação para criar um espaço agradável “como os telhados dos bairros abastados vizinhos Morumbi ou Jardins, também queríamos ser chiques”. Gilson buscou aliados e conseguiu patrocínio do instituto Stop Hunger de combate à fome, da multinacional de alimentos Sodexo, para criar em 2019 a Horta na Laje, a primeira horta comunitária em telhado de Paraisópolis. Foi a semente do Agro Favela Refazenda, o robusto projeto que até hoje luta contra a insegurança alimentar.
Dona Adélia ainda se emociona ao lembrar da senhora que, ao pegar sua cesta de verduras, disse-lhe chorando que era a única coisa que ela tinha em casa naquele dia. “Me partiu o coração, mas é muito gratificante ajudar quem realmente precisa.” Embora acredite que a melhor forma de ajudar é ensiná-los a plantar em casa, algo que também os beneficia psicologicamente. “Quem já montou sua própria horta me conta que quando está deprimido sobe ao telhado e depois de colocar as mãos no chão se sente muito melhor. Nosso principal objetivo é incentivar as pessoas a terem uma alimentação de qualidade, produzida por elas mesmas”, afirma Dona Adélia.
Porque viver de doações não é um caminho com futuro. O jornalista Joildo dos Santos é claro sobre isso. “Não queremos dar comida, queremos que as pessoas tenham condições de se sustentar. Aconselhamos que os candidatos a emprego se inscrevam no Emplea comunidade, o Linkedin da favela. Procuramos criar mecanismos de empreendedorismo para que as pessoas sejam independentes”. É fundador e diretor do jornal local de Paraisópolis Espaço do Povo e da agência de comunicação Cria Brasil. “Publicamos notícias equilibradas, porque até pouco tempo atrás só se falava em Paraisópolis negativamente e aqui tem histórias de todo tipo.” Da redação onde trabalha é possível ver as casas superlotadas de seus vizinhos. “É importante esverdear as favelas, ainda há espaços. Graças às oficinas, algumas pessoas passaram a plantar, e não só a comer, porque perceberam que ajudam a regular a umidade e a melhorar o ar”, argumenta dos Santos.
Em 2021, o governo brasileiro registrou o recorde de agrotóxicos utilizados em seus produtos agrícolas, vários deles proibidos em outros países por sua composição perigosa.
Melhorar a qualidade do ar é outro dos grandes desafios da megalópole paulista, com uma quantidade de substâncias tóxicas poluentes acima dos limites recomendados pela Organização Mundial da Saúde (OMS) há mais de 20 anos, segundo o Instituto de Energia e Meio Ambiente (IEMA, por sua sigla em português). Além da capacidade da vegetação de purificar as substâncias nocivas do ar, as hortas urbanas locais podem reduzir as emissões relacionadas ao consumo de alimentos, pois ter produtos vegetais locais economiza combustível e incentiva o consumo de vegetais em detrimento da carne.
O Brasil é um dos líderes mundiais na produção de carne e no uso de agrotóxicos, a alimentação de seus 214 milhões de habitantes tem grande impacto. Também os dos 17 milhões que vivem em favelas. “O potencial econômico e empreendedor aqui é enorme”, diz Gilson. Por isso criou o G10 Favelas em 2019, quando foram divulgados os dados de potencial de consumo das 10 maiores favelas do Brasil, incluindo Paraisópolis. Inspirado no G7 dos países ricos, o bloco une forças para promover o desenvolvimento dessas comunidades e apoiar suas iniciativas de impacto social. Como as da agricultura comunitária de Paraisópolis, que desde seu lançamento contribuíram para a instalação de mais de 200 pomares em suas lajes.
Tradução livre, parcial, de Luiz Jacques Saldanha, janeiro de 2023.