Agricultura: ‘No ritmo em que está a destruição dos campos, o Pampa vai acabar’

Planura, bovinos, cavalo e natureza ainda preservada.

https://www.brasildefato.com.br/2024/05/04/no-ritmo-em-que-esta-a-destruicao-dos-campos-o-pampa-vai-acabar-avisa-pesquisador

Katia Marko

 04 de maio de 2024

[NOTA DO WEBSITE: Sem palavras. A própria natureza se mostra como resultado do que o supremacismo, com sua arrogância superior, trouxe como presente para os ‘gaúchos’. Enquanto estavam conectados numa relação parciomoniosa e conectados com as forças da natureza, reonhecendo que a simplicidade era o que os ligava à força telúrica dos Pampas, tudo estava num ritmo mais adequado com os tempos e os ventos. Mas quando chegou a cobiça e a voracidade da ‘revolução verde’ com seus ‘pacotes tecnológicos’, o pé deixou de estar no chão. E na ambição de ser tão grande como os ‘grandes imperialistas’, as voçorocas e a degradação das vidas, dos solos e das pessoas, começaram a criar fissuras em todos os corpos. D’água aos humanos. E a sorte está lançada. O que se vai colher, a Serra Gaúcha, a Depressão Central e a Serra do Sudeste já colhem das posturas equivocadas supremacistas os frutos mais amargos e podres que jamais poderiam em sua ingenuidade tola que os fez seguir a arrogância dos invasores].

Valério Pillar aponta os vilões: monocultura da soja, agrotóxicos, descaso dos governos e fiscalização ausente.

Professor do Departamento de Ecologia do Instituto de Biociências da UFRGS, Valério Pillar há mais de 20 anos adverte para um equívoco que cometem leigos e mesmo conhecedores do meio ambiente: achar que derrubar uma floresta é um problema, mas devastar o campo nativo não é. 

Também editor dos periódicos Journal of Vegetation Science e Applied Vegetation Science, ele nota que o Pampa está no segundo caso. Objeto de estudo de Pillar, é o segundo menor bioma do país – abrange apenas parte do Sul do Rio Grande do Sul – e o mais ameaçado pelo avanço das lavouras de soja e das florestas de eucalipto. Atualmente, o Pampa possui apenas 49 unidades de conservação, alcançando somente pouco mais de 3% de sua extensão de 17,6 milhões de hectares.

devastação da vegetação nativa em favor da agricultura de exportação ignora que a vocação original daquele ecossistema tem a ver com a pecuária, atividade com a qual convive muito melhor. Nesta entrevista ao Brasil de Fato RS, ele questiona o descumprimento da lei que protege o Pampa, o afrouxamento da fiscalização, a opção pela monocultura e os agrotóxicos, o papel cúmplice dos governos com a destruição da natureza e a ação suicida do , entre outros pontos.

Leia abaixo a entrevista completa:

Brasil de Fato RS: O Pampa pode acabar? Você já disse que até 2050, possivelmente, teríamos só cerca de 12% do bioma ainda preservado. 

Valério Pillar: No ritmo em que a transformação dos campos nativos em lavouras e silvicultura está acontecendo, vai acabar. Vão restar as áreas que realmente não podem ser cultivadas, solos muito rasos, rochosos. O mapa atual de remanescentes de campo mostra as áreas que estão sobre solos muito pouco adequados à agricultura mais intensiva.

Estão na região da Campanha, com afloramentos rochosos, na Serra do Sudeste também. Vai sobrar isso. Em todos aqueles campos mais propícios a uma agricultura intensiva a tendência é desaparecer. Praticamente desapareceram nas regiões do Planalto Médio, de Cruz Alta, de Carazinho, de Passo Fundo, nas Missões. 

Em função do agronegócio?

Sobretudo da soja. Com o preço do mercado internacional, os agricultores buscam expandir as lavouras sobre áreas não cultivadas. E essa expansão muitas vezes acontece sobre áreas que não são as mais adequadas para o cultivo da soja. Então, qualquer seca já sofre. E aí a gente vê no noticiário que tal município declarou emergência por causa da seca e os agricultores têm apoio do poder público. Mas são regiões que não são adequadas à agricultura.

Por sua vocação, deveriam ser de pecuária sobre campo nativo, muito menos vulnerável a uma seca. Quando temos seca aqui no Rio Grande do Sul, os que mais sofrem são os agricultores. Os que menos sofrem são os pecuaristas. Porque exploram um recurso natural que é muito bem adaptado a essas condições.

Por que não existe – ou existe? – um estudo sobre isso que mostre onde seria melhor ter agricultura e onde seria melhor ter pecuária? 

Um zoneamento. Sim, o ideal seria isso. O problema é que a ambição, o interesse econômico, é tão forte que se sobrepõe a qualquer outro interesse da sociedade. Quer dizer, como sociedade, seria interessante que esses municípios em zonas mais vulneráveis à seca tivessem uma economia menos dependente da agricultura. Mas, não. Eles se metem lá a plantar soja, sabendo que é arriscado e talvez sabendo que, se der ruim, o Estado vai apoiar, aqueles que tiraram financiamento vão poder jogar para diante aquela dívida. Socializa o prejuízo. Estamos nessa há décadas. 

E o bioma é um dos mais devastados do país e também o menos protegido… 

É o menos protegido. Tem várias maneiras de medir esse nível de proteção. Uma delas é quantos parques nacionais, reservas ecológicas, enfim, unidades de conservação existem. É uma porcentagem ínfima. Não chega a 3%. Temos atualmente ainda, no bioma Pampa, cerca de 6 milhões de hectares de campo nativo. Pode parecer muito. São 60 mil quilômetros quadrados. Mas, em relação ao que originalmente tínhamos, representa um pouco mais de 40% da cobertura original.

Uau! 

Sim, já inverteu. 

E de monocultura? 

Monocultura, sim. Se (ainda) fosse uma agricultura diversificada, com rotação de culturas, não só soja, produzindo alimentos para a população. Não, é monocultura, é soja para exportação. Para alimentar vacas na Europa, para suprir o mercado internacional ou para fazer óleo combustível.

Não é uma agricultura para colocar alimento na mesa da população. As áreas agrícolas são muito desfavoráveis à conservação da biodiversidade porque têm só soja. Os organismos de toda essa biodiversidade nativa que não se adaptam à soja, desaparecem. Alguns se adaptam à soja e acabam virando pragas. Antes eram organismos, animais, insetos, que se comportavam bem no meio da natureza, mas, sendo só soja, acabam virando pragas da soja. Muitas pragas hoje eram… 


“Temos atualmente ainda, no bioma Pampa, cerca de 6 milhões de hectares de campo nativo. Isso representa 40% do que existia” / Foto: Katia Marko

E aí tem que usar mais veneno. 

Isso. Está errada essa coisa de expandir a agricultura sem limites. Tem que haver limite. Eu não estou dizendo que não tem que ter agricultura. É importante. A gente precisa produzir não só carne, mas grãos, fibras.

Tem que plantar eucalipto, precisa ter postes, mourões, celulose. A questão é a escala em que essas coisas estão acontecendo. Os limites estão na lei. É só cumprir a lei. Temos a Lei de Proteção da Vegetação Nativa, que substituiu o antigo Código Florestal, determinando que toda propriedade rural tem que ter 20% da sua área de vegetação nativa protegida, seja floresta, seja campo, tem que estar protegida. Nem isso está sendo cumprido aqui no Estado.

E não tem como fiscalizar?

A Secretaria do Meio Ambiente teria a obrigação de fiscalizar. Com a Lei de Proteção da Vegetação Nativa, de 2012, foi estabelecido o Cadastro Ambiental Rural (CAR). E, nesse cadastro, toda propriedade tem que declarar, como se fosse imposto de renda, a área total, tem um mapa. Quanto tem de vegetação nativa? Quanto já está sendo cultivado? Quais são as áreas de preservação permanente, que são aquelas ao longo dos cursos da água ou onde tem um relevo muito íngreme? E onde está a reserva legal? O proprietário tem que declarar.

Os proprietários começaram a fazer esse cadastro. E a Secretaria do Meio Ambiente do Rio Grande do Sul não fez a verificação. Imagina, tu fazes uma declaração de renda hoje e, daqui a 10 anos, a tua declaração ainda não foi verificada pela Receita Federal. Fica por isso mesmo. Podes ter declarado qualquer coisa e o Estado não verificou. O que temos no cadastro hoje são irregularidades. Proprietários que declararam área de campo nativo como sendo de uso consolidado. Como se tivesse sido transformada em lavoura ou em pastagem plantada.

A lei diz o seguinte: ele tem que ter 20% ou ele restaura, deixa a vegetação nativa regenerar em 20% da propriedade, mesmo que seja lavoura, ou ele compensa, pagando um outro proprietário que tenha preservado a vegetação nativa. 

Os campos seriam previstos como dentro desses 20%? 

Seja floresta, seja campo, estão igualmente protegidos. Pela lei atual, não há diferença no nível de proteção. Só que, na percepção do público em geral, parece que a floresta merece uma proteção maior do que os campos. Para muita gente, esses campos seriam áreas desmatadas.

Às vezes, tu vês árvores no meio nos campos de altitude – não do bioma Pampa e sim campos do bioma Mata Atlântica – e muitas vezes tem araucárias no meio do campo. E aí a pessoa “ah, as araucárias, pobres, só elas sobraram da mata que tinha ali”. Não é verdade. Aquelas araucárias foram os indivíduos que conseguiram se estabelecer e crescer. Os campos estão aqui há milhares de anos. Estão antes das florestas chegarem. As florestas chegaram depois. Então, essa vegetação… 

Há quanto tempo?

Milhares de anos. Colaboramos com pesquisadores na área da ecologia, que são paleoecólogos, estudam a ecologia do passado. E a gente consegue recuperar a história de dezenas de milhares de anos. No município de São Francisco de Assis, só para dar um exemplo, isso é feito por meio de extração de matéria orgânica em turfeiras.

Na Campanha, essas áreas são conhecidas como tremedal, uma área que treme. Quando pulamos, aquele solo parece que está flutuando, porque tem muita água. São turfeiras, acúmulos de matéria orgânica. Essa matéria orgânica preserva os grãos de pólen das plantas que estavam ali há milhares de anos. E aí, por técnicas de datação, por radiocarbono, é possível saber qual é a idade. Em Cambará do Sul, campos de altitude, temos dados de mais de 40 mil anos mostrando que eram campos. Esses campos estão aí há milhares de anos. Eu diria, milhões de anos.

Esse projeto de lei, o PL 364, já aprovado em comissão na Câmara dos Deputados, vem justamente para (favorecer) aqueles que já burlaram a lei. É o marco temporal do agronegócio? 

O PL 364, de 2019, foi proposto justamente para mudar a lei. A lei diz que tem que proteger os campos, que são vegetação nativa. Podemos provar que são vegetação nativa. Temos dados de composição de espécies. Mesmo que estejam esses campos sendo usados para produção pecuária, o uso pastoril desses campos não transforma esses campos em pastagem plantada, como se fosse uma lavoura. Não!

As plantas que caracterizam esses campos são muito bem adaptadas ao uso pastoril. É a vocação dessas áreas. Ou seja, temos uma vegetação nativa de campo, que é riquíssima em biodiversidade, tanto de plantas como de fauna. Permite usar essa vegetação nativa para a produção de carne de graça. É o que a natureza oferece.

Melhor ainda: ao usar esse campo para produção pecuária estou beneficiando aquela biodiversidade. E explico porquê.  Esses campos se desenvolveram com animais grandes, pesando mais de uma tonelada, animais que se extinguiram há 10 mil anos. Então, tem uma longa história de coevolução.

Quando as plantas se desenvolveram, desenvolveram adaptações para os animais que pastejavam essas espécies. São plantas que, quando um animal vai lá com a boca e pasta e deixa lá bem raspadinho, a planta rebrota porque tem as gemas de rebrote bem junto ao solo. O animal que pasta não consegue removê-las. São plantas que têm gemas subterrâneas.

Então, quando o gado foi introduzido pelos jesuítas, em 1630, se espalhou naturalmente por esses campos daqui até o Uruguai. O gado se deu muito bem, os cavalos também. 

Entre os animais que se extinguiram há 10 mil anos estavam cavalos. Praticamente a mesma espécie que se extinguiu há 10 mil anos aqui na América, mas que já migrou para a Ásia e a Europa e lá foi domesticada 6 mil anos atrás. E depois foram trazidos de volta. Então, provavelmente por isso que se deram muito bem.

Podemos, ao mesmo tempo, preservar a biodiversidade usando (os campos) para a pecuária. Os que melhor entendem essa questão são os pequenos pecuaristas, pecuaristas familiares. Talvez por perceberem a importância de preservar aquela vegetação nativa.

E vivem em uma harmonia maior.

Estamos buscando desenvolver técnicas, práticas de manejo, que sejam mais interessantes, também do ponto de vista produtivo, para que o pecuarista não se sinta pressionado a transformar aquele campo em uma lavoura que produz mais em curto prazo. Ele vai ter um ganho econômico maior no curto prazo do que continuar com a produção pecuária. Às vezes, é uma pressão familiar. Por que não planta soja? Por que não arrenda para a soja? O arrendamento vai render muito mais do que… 


“Por que os campos têm menor valor? Porque as pessoas não veem essa riqueza toda. Não percebem que é vegetação nativa” / Foto: Katia Marko

Vemos isso até dentro de assentamentos…

É uma visão muito de curto prazo. Mas o fato é que esse campo tem uma riqueza de plantas. Em um metro quadrado 56 espécies de plantas foram encontradas em campo nativo, pastejado com gado. Espécies nativas. Inacreditável. Toda essa riqueza de plantas está ali. E aí vem o deputado lá que defendeu o PL 364 dizendo “não, esses campos já foram convertidos, já foram transformados. Não tem mais vegetação nativa. Não precisa, para plantar soja ali, não precisa desmatar”.

Quer dizer, por que os campos têm menor valor? Porque as pessoas não veem essa riqueza toda. Não percebem que é vegetação nativa. Não percebem que não é o fato de não ter uma floresta que tem menor valor para a conservação. Animais nativos dependem desses campos. São aves, são mamíferos, são insetos que se não tiver campo, não vão ter onde viver. 

É uma compreensão da biodiversidade. O que a natureza precisa para continuar. O que essa destruição tem a ver com as mudanças climáticas? Primeiro seca, depois enchente, está havendo um total desequilíbrio… 

As mudanças climáticas resultam das emissões de gases de efeito estufa. Agora, temos que lidar com as consequências das mudanças climáticas em cada área. O clima vai ser cada vez mais extremo. Extremos de seca, extremos de chuva. No Sul, a tendência é chover mais. Vamos ter anos muito chuvosos, chuvas intensas como estão acontecendo. Mas também vamos ter anos ou meses com secas extremas.

Como lidar com isso? Temos que ter sistemas agrícolas menos vulneráveis a esses eventos. Como se consegue? Diversificando. Se acharmos que o Rio Grande do Sul vai se dar bem nessa perspectiva de eventos extremos tendo esses milhões de hectares de soja está muito mal.

A economia do estado vai sofrer se depender de um cultivo. Temos que manter a pecuária sobre o campo nativo. De todas essas atividades econômicas, é uma das menos vulneráveis. Pastagem cultivada pode produzir mais no curto prazo, mas ela tem um ciclo e aí quando termina aquele ciclo não tem pasto. Aí vem uma seca e só tem uma espécie de planta, uma forrageira, e ela é vulnerável à seca.  Não vai ter pastagem e aquele produtor de leite vai sofrer.

No campo nativo existe toda uma diversidade de plantas que se adaptam bem ao solo úmido ou ao solo seco. Quando tem muita chuva há plantas que vão produzir bem. Quando vem a seca também tem plantas ali que se dão bem. Imagina que, havendo um metro quadrado com 50 espécies, em um hectare temos muitas mais. E no Rio Grande do Sul são quase três mil espécies de plantas nos campos.

agricultura também tem que ser diversa. Não depender só da soja. Tem que diversificar. Então tem que ter políticas públicas para incentivar a diversificação ou impedir a monocultura. Assim seremos menos vulneráveis.

Do jeito que está indo o mundo, com todos esses esforços para diminuir as emissões de gases de efeito estufa… Ninguém cumpre as metas de redução de emissões e continuam explorando petróleo e emitindo gás carbônico. E aí vem nos dizer que o gado é o culpado porque emite metano.

Metano é um dos gases de efeito estufa que tem um poder de aquecimento muito maior do que o gás carbônico. Parece que é consenso no mundo todo que temos que reduzir a criação de bovinos porque emitem metano. Mas não se faz uma diferenciação sobre como estamos criando. Se esses animais são estabulados, produzidos no confinamento, sendo alimentados com grãos, produzidos lá na lavoura, então é um sistema que realmente está emitindo metano e aquela produção de alimentos também está emitindo.

Agora, na produção de carne em campo nativo, temos dados mostrando que, em vez de emitir mais gases de efeito estufa, estamos fixando gases de efeito estufa e diminuindo as emissões. O balanço de emissões é negativo quando fixa mais no solo do que emite. Então, as plantas, quando elas fazem fotossíntese, crescem raízes, essas raízes constituem matéria orgânica, contêm carbono, ficam no solo e a matéria orgânica fica no solo e vai enriquecendo o solo com carbono. 

E isso poderia ser em grande escala? 

Em grande escala. Tem países que já estão vendendo crédito de carbono em função disso. 

Esse estudo é teu? 

Não, colaboro com pesquisadores. Temos um grupo de pesquisa na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), liderado pela professora Débora Roberti. Trabalha com torres de fluxo, que são torres que têm sensores que medem o quanto se está emitindo de gases na atmosfera e quanto se está fixando. É uma técnica sofisticadíssima. São físicos que lidam com esses dados. Os campos nativos sendo usados para produção pecuária estão produzindo carne. Ou seja, carne que é produto da biodiversidade e estão contribuindo para a mitigação das mudanças climáticas.

Quer dizer, estamos produzindo alimento, estamos ajudando a diminuir o impacto das mudanças climáticas e também temos um sistema muito menos vulnerável aos eventos extremos.  Um ano com uma seca moderada é favorável à produção pecuária porque tem menos problemas sanitários, menos carrapatos, etc. Então, é isso.

Quando as lavouras se expandiram para a Campanha, inclusive com os assentamentos, nos primeiros anos os assentados achavam que poderiam ter lavoura ali como tinham no Planalto Médio ou no Alto Uruguai, suas regiões de origem, e se deram mal. Com o tempo, perceberam que a vocação é a pecuária. Muitos assentamentos começaram a produzir leite.

Tem um outro problema que é a água. Como a falta de preservação do Pampa também vai influenciar na questão da água? 

Valério – Quando temos uma fonte de água, um poço, por exemplo, de onde vem aquela água? É a água que infiltrou acima, na bacia. A água da chuva que não escorreu porque a que escorre vai encher um açude. E na época da chuva porque, depois, não vai ter realimentação. Então, aquele escorrimento superficial vai alimentar um açude. Se tiver uma barragem, a barragem vai encher. Encheu e aquela água segue adiante. Mas o mais importante é que aquela água que infiltra realimenta as fontes. Realimenta todo aquele reservatório que tem no subsolo. Isso temos que trabalhar. Há evidências de que, dependendo do tipo de uso da terra, escorre mais ou menos. Em um solo bem conservado, a água infiltra. Em uma agricultura em solo descoberto, compacto, vai escorrer mais e causar erosão.

A vegetação de campo protege o solo da erosão e melhora a infiltração, realimentando as fontes. Se a gente quiser garantir o abastecimento e ter as fontes com água o ano todo, temos que preservar a vegetação nativa. Por isso é importante a reserva legal. É uma maneira de preservar as fontes. 

Pode-se dizer que o agronegócio está se autodestruindo?

Sem dúvida. É uma visão de curto prazo, muito limitada, que não percebe que prejudica a si mesmo. Na última seca, o governo do estado chamou uma audiência pública. Questionei o que adianta reservar água se não tiver produção de água. O tipo de uso da terra está prejudicando a produção de água. Temos dados que comprovam que provavelmente se reduz a produção de água quando se converte o campo nativo para eucalipto ou quando para soja.

O problema é a escala em que essas coisas estão acontecendo. Contamina-se a água também com agrotóxicos, com adubos, com sedimentos. As sangas e arroios ficam assoreados. Diminui até a capacidade desses rios conduzirem aquela água e aí temos as catástrofes, as enxurradas, as cheias.

Como as pesquisas da universidade podem contribuir para esse processo de preservação? 

É um problema crônico. A gente acha que basta gerar uma informação e que ela, automaticamente, vai ser compreendida pelas pessoas que podem se beneficiar daquela informação. Mas a sociedade está tão impregnada de outras informações, tipo “ah, tem que plantar soja porque é o que dá mais” ou “ah, esses campos aí já não vale a pena conservar, isso é tudo desmatado. Não precisa desmatar para plantar soja, está ali já aberto”.

É um equívoco. Esses campos são vegetação nativa. Mas há uma enxurrada de informações no sentido contrário na televisão, no noticiário. As autoridades não entendem. E aí a pessoa toma a decisão: “eu vou plantar soja aqui e, se não der certo, no ano que vem a gente volta ao campo nativo”. Negativo. Não vai voltar. Vai levar décadas se voltar ao campo nativo.

No momento em que ele converte aquilo numa lavoura e depois resolve abandonar a lavoura, ele vai perder o campo nativo. E aí o que vem depois? Vem o capim Annoni, que é uma praga, uma planta invasora, uma espécie que foi introduzida aqui nos anos 1970. Para o gado, é um desastre. É muito fibrosa e pouco nutritiva. O capim Annoni foi introduzido em várias regiões do estado e, hoje, deve estar em dois milhões de hectares. 

O que os governos e o Congresso Nacional deveriam fazer para preservar o bioma Pampa? 

Vamos começar pelos governos. Primeiro, cumprir a lei. Ela existe. É só cumprir a lei. Não precisamos negociar nada. Está na lei. Se a lei fosse cumprida, não teríamos esse desastre que é a situação dos campos no Rio Grande do Sul. Teríamos um estado que teria analisado o cadastro ambiental rural obrigando s proprietários que não têm mais área de vegetação nativa a ter a reserva legal. Teriam que compensar. E aqueles que tivessem preservado a vegetação nativa poderiam se beneficiar do mecanismo de cota de reserva ambiental que está na lei. A cota de reserva ambiental é a seguinte: se o proprietário tem vegetação nativa para além dos 20% da propriedade, pode receber um pagamento aquela área além dos 20% a ser feito por outro que não tem mais área de vegetação nativa. Teríamos uma situação muito melhor.

Hoje, há descumprimento da lei pelo governo estadual porque a lei diz que o órgão ambiental de cada estado é obrigado a verificar se o cadastro ambiental está correto. Se não estiver, deve obrigar o proprietário a se ajustar. Tem um programa de regularização ambiental que está na lei também. Quem não tem reserva legal, vai ter que dizer o que vai fazer. “Olha, senhor, o que vai fazer? Vai diminuir a sua lavoura e deixar a vegetação nativa regenerar, seja campo ou floresta em 20% da propriedade/ Ou o senhor vai compensar na outra área?” Isso é obrigação do governo do estado, mas, sistematicamente, ele não fez. Desde 2015, existe decisão judicial liminar obrigando a Secretaria do Meio Ambiente/RS (SEMA) a não aceitar cadastros ambientais rurais em que os proprietários declararam o campo nativo como área rural consolidada. Está na decisão.  

No governo do Sartori [José Ivo], na regulamentação do cadastro ambiental rural, colocaram lá uma categoria esdrúxula, que não estava prevista na lei, tipo “Olha, os proprietários podem declarar remanescentes de vegetação nativa sob uso pastoril como sendo as áreas em que houve a supressão da vegetação nativa”. É um absurdo. É o contrário. O uso pastoril beneficia aquela vegetação nativa. O proprietário não pode declarar aquele campo nativo como área rural consolidada. Quando o campo nativo é usado para produção pecuária e a vegetação nativa é preservada, não há supressão da vegetação, ela não é convertida, e sim é mantida.

E o Congresso? 

O Congresso foi inspirado pelo que eles fizeram aqui porque, em 2015, teve esse decreto estadual que criou essa categoria esdrúxula e, na prática, desprotegeu os campos nativos.

Os deputados do Rio Grande do Sul propuseram na Câmara uma lei fazendo a mesma coisa nos campos da Mata Atlântica. Então, na discussão dessa lei, que é o PL 364, teve uma emenda do deputado Lucas Redecker (PSDB) que propôs estender essa desproteção para todos os campos em todos os biomas brasileiros que estejam sob uso pastoril. Diz que o uso pastoril destrói a vegetação nativa. É a visão que querem passar. E aí desprotegeram milhões de hectares no Cerrado, no Pampa, no Pantanal e na Amazônia. Todos os campos de altitude e todos os do bioma Pampa. E os proprietários, com isso, na prática, não terão obrigação de ter reserva legal… 

Estão tentando destruir a lei. 

Descumpriram a lei e, agora, mudam a lei para beneficiar quem a descumpriu. Qual é a mensagem que passa para as pessoas? “O deputado lá vai mudar a lei e não vai ter punição nada. Vai ter uma anistia depois”. É a mensagem que passa.

Há quanto tempo você estuda a questão do bioma? 

Comecei a trabalhar com vegetação nativa no Pampa em 1986. Minha especialidade, em que fiz doutorado, não é a vegetação de campo. Trabalhei no doutorado com ecologia quantitativa. Ou seja, como analisar dados para compreender sistemas complexos, que são os sistemas ecológicos. Além dessa linha de pesquisa com a conservação dos campos, tenho outra linha que é mais teórica, abstrata…

Lido com perguntas sobre por que em determinado lugar encontro muito mais plantas e diversidade de espécies do que em outro? Em uma distância de poucos metros. Procura-se compreender como funciona esse sistema. E, claro, na questão dos campos, é a aplicação disso. Será que campos que têm mais espécies são menos vulneráveis a eventos climáticos extremos? Descobrimos que sim. Quanto maior a riqueza de espécies, maior a chance de ter espécies ali que vão se dar bem, mesmo que a situação seja muito extrema naquele ano. 

Será que a gente pode dizer o mesmo para a humanidade? Quanto mais diverso… 

Isso. Diversidade em todos os sistemas. As universidades perceberam isso. Por que se abriram para a diversificação étnica e cultural? Porque ela melhora as oportunidades de desenvolver novas ideias. Um grupo diverso é muito mais interessante para criar novas ideias do que um grupo que só tem pessoas com mais de 50 anos, brancos. Traz perspectivas diferentes de vida. A chance de encontrar saídas é muito maior. 


“Quanto maior a riqueza de espécies, maior a chance de ter espécies ali que vão se dar bem, mesmo que a situação seja muito extrema naquele ano” / Foto: Katia Marko

O agronegócio também está destruindo uma cultura, que é a cultura gaúcha do Pampa. Andar pelo Pampa já não é a mesma coisa de anos atrás… 

Não falo da cultura do gaúcho, aquele do CTG. O homem do campo, aquele que trabalha naquele ambiente, cuja cultura e linguagem tem tudo a ver com o campo. Isso está se perdendo. Alguns se adaptam às novas lavouras, ao eucalipto. Outros não. Está se preservando ainda naqueles ambientes de resistência. Tem comunidades que estão resistindo. Os quilombolas.

Há regiões onde predominam pequenos pecuaristas que estão resistindo. Estão dizendo “não, peraí. Não queremos mineração aqui. Nós não queremos essa expansão da soja do jeito que está acontecendo”. Os assentamentos poderiam também ter uma ação mais clara sobre essa questão. O sentimento de pertencimento tem a ver com essa identidade.

Quando o ambiente não corresponde mais àquela cultura, é complicado. Como vai se vai preservar um conhecimento sobre plantas quando aquelas plantas não estão mais ali? Aquele conhecimento tradicional. Muitas plantas desaparecem do ambiente. Só tem soja, só tem veneno. As pessoas não sentem mais prazer de estarem naquele lugar. Estão aqui sentadas admirando a paisagem e tem alguém aplicando herbicida e vem aquele cheiro.

As famílias não vivem mais no campo. Não tem mais escolas rurais. O campo se despovoou. Está sendo habitado por trabalhadores temporários, pessoas que vêm, trabalham ali e depois voltam, não tem mais nenhum apego. Não têm mais aquela coisa das crianças se criarem naquele ambiente e aprenderem.

Para valorizar aquele ambiente, precisa gostar daquilo. A pessoa que se cria ali vai ser muito mais propícia a proteger. Isso está se perdendo no Rio Grande do Sul. As famílias não moram mais no campo, porque houve uma política de tirar as escolas rurais, as estradas. O transporte escolar é muito precário.

Há, pelo menos, 20 anos temos alertado, falando as palavras mais amenas. E hoje eu perdi… O governo do estado, por exemplo, descumpre uma decisão judicial. Como é que pode? Quase 10 anos descumprindo uma decisão judicial e não acontece nada. Onde estamos? O setor do agronegócio, a Farsul [Federação da Agricultura do Estado do Rio Grande do Sul], há uns 10 anos ainda tinha um setor que valorizava a pecuária sobre o campo nativo. A Farsul já está em outra. É a pecuária intensiva, sobre pastagens plantadas, com a visão de que o campo é improdutivo. A própria formação dos técnicos valoriza a aplicação de insumos, tem uma visão muito nessa linha. 

Pelas universidades?

Pelas universidades, infelizmente. Há alguns núcleos com uma visão distinta, mas o que predomina, infelizmente, é essa visão de agregar insumos, adubos, agrotóxicos, sementes, mudar aquele sistema, substituir o campo nativo e não buscar manejá-lo. O insumo principal deveria ser o conhecimento, observação, persistência. Mas você tem que ter essa capacidade de observar e valorizar aquele sistema que está ali, de graça, pela natureza. 

Para isso, a sociedade precisa entender a importância…

Está ali. Ninguém precisa plantar o campo nativo. Aquelas espécies estão muito bem adaptadas. Às vezes, os agrônomos, principalmente, observam que os solos do Rio Grande do Sul são pobres em nutrientes. Pobres em nutrientes para uma planta cultivada. Mas, para as plantas nativas, estão muito bem, obrigado. Elas estão ali crescendo bem. E aí vem um verão chuvoso como esse e os campos estão verdes. E o gado, enchendo a boca com pasto.