Agricultura: Assim o “agro” hipoteca o futuro do Brasil

A degradação da agricultura, de produtora de vida, saúde e alimentos, passou a ser o descalabro do , autofágico, excludente e monopolista. Foto: Reprodução/Agro Olhar

https://outraspalavras.net/crise-civilizatoria/agro-mito-que-degrada-custa-caro-hipoteca-futuro/

Daniel Lemos Jeziorny, professor da UFRGS

05/04/2024

[NOTA DO WEBSITE: Reflexão que mostra como realmente a doutrina do supremacismo branco eurocêntrico, plasmado entre nós pela colonialidade que se manifesta por esse capitalismo voraz e excludente que tem se cristalizado pelo famigerado ‘agronecrócio=agronegócio’. Nos últimos anos se adonaram do legislativo brasileiro pela apropriação dos meios políticos do pais travestido de bancada ruralista. Em sua doença, mais e mais fazem leis que aumentam sua doentia fome de mais e mais dinheiro. São os dramáticos Fantasmas Famintos trazidos pelo budismo que mostra que esses pretensos seres jamais terão sua fome saciada. Até a autofagia como Erisícton de acordo com o mito grego. Aí será o fim deles e será que de todos também?].

Ele sintetiza o projeto capitalista de alienar o ser humano da natureza, sob o discurso de “civilização”. Concentra renda, cria poucos empregos e degrada o campo. Não leva comida à mesa. E concentra subsídios do Estado. Alguns ganham; quase todos perdem…

Diferentemente das demais espécies terrenas, a espécie humana concretiza o seu metabolismo com a natureza da qual faz parte de forma não imediata, mas intermediada, tanto por objetos técnicos que desenvolve para trabalhar quanto por significações que atribui a sua ação de reordenamento dos fluxos naturais de matéria e energia. O conceito marxiano de metabolismo social é ferramenta de grande utilidade para se analisar essa interação, especialmente por enaltecer que se trata de uma relação estabelecida a partir de determinada forma sócio-histórica de se organizar a força social de trabalho, ou seja, de uma relação humanidade/natureza a partir de um modo de produção específico – atualmente, o capitalismo – e não de uma relação de indivíduos com a natureza.

Tal perspectiva cobra importância inarredável na quadra histórica que atravessamos, marcada por guerras, disputas sangrentas por bens comuns indispensáveis à existência humana como a água e por uma emergência climática cada vez mais urgente. Afinal de contas, se gases de efeito estufa se acumulam na atmosfera e contribuem para o aquecimento global que traz consequências cada vez mais sérias à manutenção das condições de vida na Terra, uma análise a partir do conceito marxiano de metabolismo social permite ultrapassar aquilo que é manifestação fenomênica – os gases de efeito estufa – e mergulhar na verdadeira raiz dessa contradição, ou seja, na expansão da falha metabólica. Processo que assume lugar a partir da disjunção crescente e radical entre as partes que conformam o metabolismo social do capitalismo, a saber: o sistema econômico regido pela acumulação de capital e as condições naturais de produção. Nesse sentido, nunca é demais lembrar que a biosfera – pelo menos, por ora – é um sistema fechado a entrada de matéria, mas também que a forma hegemônica que empregamos para humanizar/reordenar esse sistema natural possui uma lógica expansível ademais de acelerante. É bastante plausível, portanto, que em algum momento a desorganização das coordenadas do Sistema Terra provocada pela degradação de seus diferentes ecossistemas entregue a conta de um crescimento material ensandecido – para não dizer possivelmente autofágico.

É nessa linha que estudiosos vinculados à Economia Ecológica afirmam necessário controlar o ritmo do sistema econômico colocando-o em consonância com os limites biofísicos do planeta. E aqui a lógica é relativamente simples e talvez possa ser resumida da seguinte forma: se pescarmos peixes mais rápido do que a sua velocidade de reprodução acabaremos com o estoque natural de peixes. Analogamente, se produzirmos lixo mais rápido do que a capacidade de absorção terrena dos dejetos, acabaremos soterrados por uma montanha de sujeira produzida por nós mesmos em nossa relação metabólica com a natureza.

Se para os estudiosos vinculados à Economia Ecológica é possível administrar o metabolismo do capital de maneira a controlar-se tanto a sua lógica expansível quanto a sua lógica acelerante, para um seleto grupo de inocentes pensadores isso não é um problema, pois o sistema estaria se “desmaterializando”, especialmente na medida em que a esfera financeira assume a condição de mola mestra da acumulação capitalista. Nada mais desavisado do que isso. Ainda que na fase patrimonial do capitalismo – justamente a que atravessamos atualmente – a extração de renda seja cada vez maior e represente cada vez mais peso na balança da acumulação, nem de longe tal situação implica que o sistema esteja a se “desmaterializar”. Pelo contrário, o consumo de matéria não para de crescer. Um recente relatório da ONU (publicado em março de 2024) mostra claramente que se a população mundial duplicou desde os anos 1970, a extração de matéria-prima triplicou. Ou seja, a humanidade está a consumir cada vez mais planeta para manter o seu modo de vida regido pela acumulação capitalista. Se, em 1970, a extração de matéria da Terra foi da ordem de 30,9 bilhões de toneladas, em 2020 ela atingiu a marca de 95,1 bilhões de toneladas e a estimativa é de que ao final de 2024 chegue a 106,6 bilhões de toneladas. É claro que isso não é nenhuma novidade, visto que o relatório de 2016 já havia chamado a atenção para essa tendência.

Uma tendência desastrosa, haja vista que do ponto de vista do bom funcionamento do planeta aos seres humanos, isto é, da possível efetivação de um metabolismo social que não comprometa  serviços ecossistêmicos indispensáveis como a ciclagem de nutrientes do solo e o controle natural de doenças com potencial pandêmico, o que mais importa são os números absolutos da degradação ecossistêmica em curso. Assim, no que toca a relação humanidade/natureza, de que adianta que a acumulação de capital esteja ancorada relativamente mais na esfera puramente financeira, se a degradação dos ecossistemas que compõem a biosfera não para de crescer, se o desmatamento não para de avançar, se a poluição de aquíferos não cessa de recrudescer ou se o acúmulo de gases de efeito estufa na atmosfera é cada vez maior? Talvez por isso, a Assembleia Geral das Nações Unidas tenha declarado o período 2021-2030 como a Década da ONU sobre Restauração de Ecossistemas. Uma iniciativa que visa intensificar a recuperação de ecossistemas degradados e destruídos como forma de combate ao aquecimento global. No âmbito desta medida (de passagem, não mais do que paliativa), a referida instituição não poupa tinta para chamar atenção à urgente necessidade de melhoras substantivas em aspectos decisivos à evolução da humanidade na Terra, como a segurança alimentar, o fornecimento de água e a preservação da biodiversidade – todos elementos assentes na manutenção e recuperação de ecossistemas terrestres e marinhos. De acordo com a própria ONU, a degradação destes sistemas naturais compromete o bem-estar de 3,2 bilhões de pessoas e custa, ao ano, cerca de 10% da renda global, expressa sobretudo na perda de espécies e serviços ecossistêmicos.

Ora, pelo menos desde que as botas espanholas pisaram por primeira vez as areias brancas das Bahamas, a América Latina é peça decisiva neste quebra-cabeça. Basta ver que Brasil, Colômbia, Equador, México, Peru e Venezuela estão entre as nações consideradas de megadiversidade biológica do mundo, dado que seus ecossistemas abrigam entre 60% e 70% de todas as formas de vida terrena. Além disso, o continente latino-americano recebe cerca de 29% das chuvas mundiais e abriga um terço das reservas renováveis de recursos hídricos – fundamentais não apenas para atividades produtivas como a indústria e a agricultura, mas à própria vida.

É nesse cenário que se torna cada vez mais importante jogar luz sobre os efeitos concretos dos diferentes padrões de reprodução do capital nas formações sociais latino-americanas. Sé é verdade que estas estão involucradas em um movimento de acumulação em escala global no qual se engendra uma certa divisão internacional do trabalho, não menos verdade reside no fato de que os seus Estados têm tido papel decisivo nesse desenrolar. O que não é nada surpreendente, afinal, especialmente por se tratar do aparato mediante o qual se busca concertar territorialmente as escalas do fluxo de poder, ao Estado capitalista cabe controlar e disponibilizar recortes da biosfera ao capital. Portanto, o Estado é engrenagem central na mecânica de reorganização dos fluxos de matéria, energia e poder que consubstancia o reordenamento propriamente capitalista da natureza. Se isso tampouco seria diferente nas economias latino-americanas, vale lembrar que se nos albores do capitalismo o extrativismo na América Latina era organizado por um Estado de natureza colonial, na presente fase do desenvolvimento capitalista, o que muitos estudiosos têm chamado  neoextrativismo concretiza-se nas economias dessa região também mediante a ação estatal. No entanto, não mais através de Estados coloniais, mas do que o mexicano Jaime Osório chama Estados Dependentes, aqueles nos quais as classes dominadas, quando adquirem o direito de administrar os aparelhos estatais, o fazem apenas enquanto aquilo que são – classes dominadas – na estrutura sistêmica de reprodução material. O que significa a dizer que a relação de poder que caracteriza essa estrutura e que passa pelo Estado não é colocada sob verdadeira ameaça.

Esse é o caso do Brasil, onde em vez de arrefecerem-se mediante um conjunto de possíveis mudanças estruturais como a reforma agrária, os interesses das velhas oligarquias parecem solidificar-se como emblema de uma sociedade fortemente marcada pela desigualdade e por uma escorchante concentração de riqueza. Por conseguinte, onde o agronegócio merece um exame crítico minimamente aprofundado a respeito de seu real papel no desenvolvimento econômico, sobretudo pelo fato de receber vultosos e crescentes subsídios estatais. Ao fim e ao cabo, quando falamos do agro/pop/tudo brasileiro estamos diante de um padrão de reprodução do capital ao qual os meios de comunicação não se cansam de atribuir um papel de pujança e sucesso econômico. Setor supostamente tido como produtor da riqueza nacional, mas que na verdade comemora grandes resultados através da exploração do espaço agrário de um país onde – entre 2019 e 2021 – 61 milhões de brasileiros e brasileiros enfrentaram dificuldades para se alimentar e 15 milhões de pessoas passaram fome.

Vale atentar que se ao padrão de reprodução do capital de natureza neoextrativista que caracteriza o agronegócio brasileiro é atribuída a ideia de produtor da riqueza nacional, entre 1996 e 2022 a sua participação média no PIB brasileiro caiu de 35% para 25%. E isto de acordo com uma metodologia de cálculo que lhe é francamente favorável, dado que há estudos de renomados pesquisadores que indicam que este número é superestimado; ao ponto de a participação efetiva do agro no PIB brasileiro ter sido de apenas 5,4% entre os anos de 2002 e 2018. Além disso, há de se destacar que o estímulo a esse padrão de reprodução do capital traz sérias consequências no que toca à reprimarização da economia brasileira e a redução de sua pauta exportadora. De tal forma que a soja, uma cultura altamente dependente de agrotóxicos e que em 2000 representava 5% das exportações nacionais passou a representar 16,8% destas exportações em 2020. Um fato que traz repercussões ecológicas preocupantes, visto que aprofunda tanto o que muitos chamam consenso de commodities quanto o pernicioso consenso do glifosato que lhe acompanha. Nesse caso, são dramáticos os efeitos sobre a degradação ecossistêmica, e não apenas pela escalada do envenenamento de solos, aquíferos e pessoas (especialmente trabalhadores e trabalhadoras rurais), mas também pelo desmatamento que abre espaço ao avanço da chamada fronteira agrícola, cujo aumento não tem sido capaz de mitigar a estarrecedora realidade de que num país como o Brasil – com inquestionável abundância de recursos hídricos, terras agriculturáveis e força de trabalho disponível no campo – seja preciso importar-se arroz e feijão, produtos básicos da dieta alimentar da população em todas as regiões. Portanto, ademais de ecologicamente desastroso, o padrão de reprodução do capital típico do agronegócio brasileiro ainda se estabelece como um entrave à soberania alimentar num país que desafortunadamente não erradicou a fome – em que pese a alardeada pujança de seu agro/tudo/pop. Também pudera, o agro/tudo/pop ocupa cerca de 77% das terras para cultivar commodities, como a soja exportada para a China (destino de cerca de 70% da soja brasileira), enquanto a produção de comida fica a cargo da agricultura familiar, que ocupa os 23% restantes das terras agriculturáveis para produzir arroz, feijão, mandioca, batata … enfim, alimentos à mesa dos brasileiros e brasileiras. Vale atentar ainda que apesar de ocupar uma quantidade muito menor de terras do que o agronegócio para produzir alimentos para pessoas e não para porcos, a agricultura familiar é responsável por 67% das pessoas ocupadas em atividades agropecuárias no Brasil. No campo brasileiro, portanto, quem de fato produz comida e gera empregos não é o agro/tudo/pop, mas os agricultores familiares, os ribeirinhos, os quilombolas…

É verdade que o agro/tudo/pop não produz apenas grãos para exportação e locupletação de uma pequena parcela da sociedade brasileira. Ele também cria gado. E quando se mira para o que ocorre nas cadeias produtivas dos sistemas alimentares, é possível perceber que dada a dimensão do rebanho bovino no Brasil, bem como das áreas de pastagem que crescem mediante a grilagem de terras e o desmatamento, a produção de carne bovina é a que mais tem contribuído para as emissões de gases de efeito estufa. Em 2021, a estimativa é de foram 1,4 GtCO2 produzidas pela indústria da carne bovina, ou seja, 78% das emissões produzidas em âmbito dos sistemas alimentares ficaram a cargo dos Reis do Gado.

Diante do que fora exposto até aqui, parece bastante plausível asseverar-se que o agro pode ser tudo, menos sustentável. Além disso, diferentemente do mantra veiculado diariamente pelos veículos de comunicação, o agro não carrega o Brasil nas costas, mas justamente o contrário. Sobretudo quando se observa que os subsídios ao setor tenham atingido R$ 24,4 bilhões em 2022. Cifra que não inclui os subsídios financeiros concedidos aos Fundos de Investimento do Agronegócio (instituídos durante o governo Bolsonaro pela Lei 14.130/2021), as Letras de Crédito Agrícolas (LCAs) e aos Certificados de Recebíveis Agrícolas (CRAs), instrumentos financeiros isentos de tributação e que em conjunto tornam o financiamento do agro/tudo/pop mais barato frente outros setores da economia, que precisam encarar custos mais elevados para financiar suas atividades visto que não dispõem de tais vantagens tributárias. Além disso, cifra que tampouco inclui os subsídios condidos a sementes, muitas vezes transgênicas, mercantilizadas por grandes corporações internacionais como a Monsanto e que requerem aplicações cada vez mais gigantescas de agrotóxicos. Sementes estas cujos valores subsidiados aparecem de forma conjunta [e disfarçada?] aos subsídios concedidos aos produtos da cesta básica.

Infelizmente, quando se joga luz sobre o padrão de reprodução do capital do agronegócio brasileiro, fica bastante claro que este custa caro e traz profundas consequências negativas, especialmente quanto à possibilidade de se concretizar no espaço rural brasileiro um metabolismo social ecologicamente saudável ademais de minimamente justo do ponto de vista distributivo. Isto é, um metabolismo social que não alargue ainda mais a já preocupante fratura metabólica que se estabelece entre o sistema produtivo e a natureza, mas também que seja capaz de contribuir para a segurança alimentar e atacar mazelas vexatórias como a fome. Se – conforme apontado pelo historiador Maurice Dobb – no período de transição do feudalismo ao capitalismo as cidades europeias colonizaram o campo através de um mecanismo de transferência de valores via controle de preços e troca desigual, parece que no Brasil se tem feito o caminho de volta, ou seja, de transferência de valores da população urbana para os senhores do agro/tudo/pop, que se locupletam via subsídios concedidos pelo Estado em franco desfavor do resto da sociedade, sobretudo da parcela dos mais necessitados. A seguir por essa trilha, talvez não nos reste muito mais do que torcer, para que os senhores do campo não venham a se unir com certas igrejas para mobilizar um bando de fanáticos religiosos a espalhar fogueiras inquisitórias pelo país.

Referências

Estimativa de Emissões de Gases de Efeito Estufa dos Sistemas Alimentares no Brasil, 2023

Jeziorny, D. L., Rech, L. T., Kuhn, D. D., & Santos, H. H. K. dos. (2024). Caminhos do capital financeiro no espaço agrário brasileiro: elementos para o debate dos conflitos hídricos no Mato Grosso, Brasil. Revista Brasileira De Estudos Urbanos E Regionais, 26(1). https://doi.org/10.22296/2317-1529.rbeur.202412pt

Sacco dos Anjos, F., Froehlich, J. M., & Velleda Caldas, N. (2024). Tres mitos, tres incómodas verdades sobre el agronegocio brasileño. Estudios Rurales, 14(29). https://doi.org/10.48160/22504001er29.530

United Nations Environment Programme (2024): Global Resources Outlook 2024: Bend the Trend – Pathways to a liveable planet as resource use spikes. International Resource Panel. Nairobi. https://wedocs.unep.org/20.500.11822/44901