Agora os ecofascistas exploram o clima contra os migrantes

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Refugiados

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17 Dezembro 2021

“Embora seja verdade que nos últimos anos aumentou a sensibilidade da opinião pública sobre questões ambientais, o apoio às políticas climáticas cai vertiginosamente quando se trata de impor medidas que comportam a tributação da gasolina ou outras normas que tenham um impacto direto na vida cotidiana do cidadão comum. A ideia de sacrifício pessoal continua difícil de digerir, é muito mais fácil culpar os migrantes também pelo aumento das emissões de gases de efeito estufa”, escreve Francesca Santolini, jornalista, autora, entre outros, do livro Profughi del , em artigo publicado por La Stampa, 16-12-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.

Eis o artigo.

Foi um dos símbolos do assalto ao Capitólio, em 6 de janeiro passado, e ficou famoso por usar um chapéu com chifres de bisão de inspiração indígena. Jake Angeli, nascido Jacob Chansley, voltou às manchetes por se recusar a comer as refeições servidas na prisão por serem preparadas com alimentos não orgânicos. Angeli, também conhecido como “o xamã do QAnon” (QAnon é uma teoria da conspiração para a qual existe um poder mundial secreto ligado a Barack ObamaHilary ClintonGeorge Soros; tal poder está ligado a redes de pedofilia e ocultismo), no passado tinha participado de marchas pelo clima e declarado que tinha interesse em “limpar os ecossistemas”.

Essa ligação entre alimentação orgânica e supremacismo branco, o fascínio pela cultura Viking e os delírios conspiratórios do QAnon não é casual.

A perspectiva ecológica

As novas ideologias fascistas são cada vez mais caracterizadas por uma distorcida perspectiva ecológica.

Embora o termo ecofascismo seja relativamente novo, o ecologismo de extrema direita não é nada novo. O famoso lema nazista “Blut und Boden” (sangue e terra) evocava uma síntese da necessária purificação do mundo através do retorno à terra e da relação profunda e estável das comunidades humanas com seu território.

“A ideologia nazista da terra, que poderíamos chamar de ‘econazismo‘, foi o fruto envenenado da convergência de muitos elementos bem enraizados na cultura alemã do início do século XX: misticismo, esoterismo, teoria racial e nacionalismo”, comenta o professor Emanuele Conte, professor titular de História do Direito na Universidade RomaTre. “Seu ecologismo era fortemente reacionário: considerava a pureza do sangue como uma condição indispensável para a realização de um verdadeiro equilíbrio entre a terra e as comunidades humanas, e por isso aderia com entusiasmo às doutrinas antissemitas”.

Negacionismo climático

Dos Estados Unidos à Europa, estão se espalhando correntes de pensamento reacionário que passaram do negacionismo climático à interpretação instrumental de seus efeitos para reforçar conteúdos ideológicos e muitas vezes racistas.

Nos Estados Unidos, o Procurador-Geral republicano do Arizona pediu a construção de um muro na fronteira para impedir a chegada de migrantes do México, argumentando que são pessoas que “emitem substâncias poluentes, como dióxido de carbono e outros gases de efeito estufa na atmosfera”. Uma manipulação que ignora as verdadeiras causas do desastre ecológico, confundindo-as com as preocupações, o medo dos fluxos migratórios. Uma narrativa nascida nos movimentos de extrema direita nos Estados Unidos e que agora está contaminando o discurso político e a propaganda de muitos partidos de direita também na Europa.

Causa e efeito

Na EspanhaSantiago Abascal, líder do populista partido Vox, pediu o retorno a uma “Espanha verdelimpa e próspera“. No Reino Unido, o Partido Nacional Britânico, de extrema direita, afirmou ser “o único verdadeiro partido verde” no país devido ao seu enfoque nas questões de migração. E na Alemanha, o partido populista de direita, Alternativa para a Alemanha (AfD), que durante anos ridicularizou e desacreditou a ciência do clima, agora adverte que “difíceis condições climáticas” na África e no Oriente Médio verão uma “enorme migração em massa para os países europeus “, que requer um controle mais rigoroso das fronteiras. Enquanto isso, na França, a Frente Nacional, que já foi um baluarte da negação do clima, fundou uma ala verde chamada Nova Ecologia, com Marine Le Pen, presidente do partido, prometendo criar a “civilização ecológica líder do mundo” com foco em alimentos cultivados localmente.

Meio ambiente e patriotismo

“O ambientalismo é filho natural do patriotismo, porque é o filho natural do enraizamento”, disse Le Pen em 2019, acrescentando que “se você for um nômade, não será um ambientalista. Quem é nômade… não se preocupa com o meio ambiente; os nômades não têm pátria”. Um pensamento já batizado de “localismo verde nacionalista”. Ignorar ou denegrir a ciência do clima já é agora uma estratégia politicamente impraticável. Hoje, com o desafio do clima no topo das agendas dos governos em todo o mundo, as tendências na retórica populista da direita mudaram. Como já não é mais possível negar a mudança climática em curso, um núcleo substancial e perigoso de populismo ambiental vai se afirmando cada vez mais, que combina a preocupação da opinião pública com a crise climática, o desprezo pelas elites no poder, uma abordagem paternalista e anticientífica para os temas da natureza e especialmente os apelos para deixar os imigrantes além das fronteiras.

Furacões, inundações, secas e desertificação podem deixar milhões de pessoas sem perspectiva de vida e causar ondas de migração em massa. Isso já está acontecendo na África Subsaariana, no Oriente Médio e no Sul da Ásia.

Os deslocados da Terra

De acordo com as Nações Unidas, até 2050 o número de pessoas deslocadas por desastres naturais em todo o mundo aumentará para 1,2 bilhão. E embora a maioria se deslocará dentro de seus próprios países, espera-se que milhões de pessoas busquem refúgio além da fronteira. Esses deslocamentos forçados de populações, alerta o Pentágono, causarão conflitos internos e externos, semeando guerras e violências.

Um estudo da Universidade de York chamou de “ecobordering” a tendência dos partidos de extrema direita de culpar os países em desenvolvimento pela , com o objetivo de fortalecer as restrições à imigração. A defesa das fronteiras é considerada essencial para proteger a gestão nativista da natureza. O ecobordering busca obscurecer as causas principais da crise climática, bem enraizadas nos modelos ocidentais de produção e consumo, retratando os efeitos como causas e normalizando as práticas racistas de fronteira.

Além disso, o vínculo entre clima e migração facilmente pode ser encaixado em velhos clichês de direita, como o que considera a superpopulação nos países mais pobres uma das principais causas dos problemas ambientais. De maneira mais geral, essa nova (e distorcida) atenção às questões ambientais é uma tentativa das direitas de ocupar âmbitos cada vez mais atuais na política e que há muito foram prerrogativa dos partidos de centro-esquerda e dos ambientalistas.

As “culpas” dos migrantes

Na Europa, a extrema direita tem uma plataforma anti-imigração precisa e pretende enfrentar a questão das alterações climáticas numa perspectiva eleitoral, no quadro dessa plataforma. Ainda de acordo com o estudo da Universidade de York, que analisa vinte e dois partidos europeus de extrema direita, os migrantes são culpados essencialmente de duas formas: por terem contribuído para aumentar as emissões de gases com efeito de estufa com os seus deslocamentos e por terem trazidos hábitos destrutivos e poluentes de seus países de origem.

Um exemplo dessa propaganda etno-nacionalista é encontrado em um folheto político do SVP, o partido nacionalista e conservador suíço, que mostra uma cidade lotada de pessoas e carros que poluem, com o slogan “parar a imigração maciça“, porque um milhão de migrantes vai se traduzir em milhares de quilômetros de novas estradas e “qualquer um que quer proteger o meio ambiente na Suíça deve lutar contra a imigração em massa“. Também aqui se confundem os efeitos com as causas, jogando com a ideia de que impedindo a chegada de imigrantes à Europa estaria se apoiando a defesa do ambiente. Mas, para a ciência não há dúvida, os principais responsáveis pela atual crise climática são os países desenvolvidos: no período de 1990 a 2015, o 1% mais rico da população mundial emitiu duas vezes mais CO2 na atmosfera do que a metade dos mais pobres do planeta, com os Estados Unidos liderando em termos de emissões per capita.

Respostas reacionárias

Com relação às migrações climáticas, há tempo se discute a necessidade de redefinir um novo pacto internacionais que garanta proteção a quem foge de territórios que se tornaram inabitáveis devido a eventos climáticos extremos. A Convenção de Genebra de 1951 não reconhece as e seus efeitos como motivo para conceder o status de refugiado. No entanto, a ciência vem alertando há anos que em um futuro não muito distante o aumento de migrações forçadas causadas por secas, inundações e outros desastres, representará um sério problema de gestão de enormes fluxos migratórios que poderiam levar a um verdadeiro remapeamento da população mundial.

Em uma época de crescente populismo, abrir a convenção a uma renovação que leve esses dados em consideração parece um caminho que dificilmente será percorrido. O mundo está se movendo na direção contrária, com os Estados Unidos e o Reino Unido, por exemplo, tornando os requisitos para pedido de asilo cada vez mais restritivos. Em última análise, a extensão do sofrimento causado pelo e as respostas cada vez mais urgentes para enfrentá-lo correm o risco de determinar respostas reacionárias, com as direitas que tentarão rotular como ingerências das elites quaisquer medidas impostas pelos governos em termos de proteção ambiental global.

O ataque aos privilégios

A interação da política de direita com as questões climáticas é muito mais do que uma simples questão de fronteiras: está alimentando os temores populares de que as prerrogativas dos cidadãos sejam atacadas por elites ligadas às altas finanças, ao capital mundial, aos consórcios ocultos. Essa reação é visível nos movimentos de protesto como aquele dos gilets jaunes (coletes amarelos) na França, o mais longevo no país desde a Segunda Guerra Mundial, nascido em oposição ao imposto sobre o carbono aplicado aos combustíveis.

Embora seja verdade que nos últimos anos aumentou a sensibilidade da opinião pública sobre questões ambientais, o apoio às políticas climáticas caiu vertiginosamente, quando se trata de impor medidas que comportam a tributação da gasolina ou outras normas que tenham um impacto direto na vida cotidiana do cidadão comum. A ideia de sacrifício pessoal continua difícil de digerir, é muito mais fácil culpar os migrantes também pelo aumento das emissões de gases de efeito estufa. Essas são questões a serem levadas em consideração por aqueles que – contrastando o populismo ambiental das direitas – desejam elaborar estratégias climáticas eficazes, equitativas e politicamente sustentáveis.

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