A luta dos Yanomami da Amazônia brasileira ganha vida através da arte

A exposição Luta Yanomami estreou em Nova York com fotografias de Claudia Andujar e artistas Yanomami (Imagem: Flávia Milhorance)

https://dialogochino.net/en/extractive-industries/62958-struggle-brazilian-amazons-yanomami-art

Flávia Milhorance

09 de fevereiro de 2023

Ativistas visitam Nova York pedindo apoio contra a invasão do garimpo ilegal em seu território.

Uma fina camada de neve cobre os arranha-céus de Hudson Yards, o mais novo bairro do crescente distrito comercial de Manhattan. Mas dentro do The Shed há uma explosão de cores tropicais, enquanto artistas e ativistas Yanomami com rostos pintados e ornamentos indígenas se juntam à fotógrafa Claudia Andujar para o lançamento de sua mais recente exposição. 

O icônico centro cultural de 16.000m 2 recebe “A Luta Yanomami”, com desenhos, pinturas e de artistas da etnia, acompanhados de fotografias de Andujar. 

A fotógrafa suíça, cuja família foi vítima do Holocausto durante a Segunda Guerra Mundial, dedicou grande parte de sua vida à proteção dos Yanomami. O acervo de 200 fotografias da exposição retrata uma cultura permeada pelo xamanismo e uma relação intrínseca com a floresta amazônica, além de uma longa história de violência, mas também de resistência.

“Trabalho com os Yanomami há 50 anos e continuarei defendendo o povo e suas terras, que estão sendo invadidas por garimpeiros”, diz Andujar, que mora em São Paulo. Com saúde frágil, a idosa de 91 anos só confirmou sua presença alguns dias antes do evento.

Claudia Andujar no The Shed, em Nova York. A fotógrafa suíça passou mais de 50 anos tentando proteger o povo Yanomami na Amazônia (Imagem: Flávia Milhorance)

O show itinerante percorre cidades do Brasil e da Europa desde 2018. Mas ganhou peso político sem precedentes à medida que os Yanomami enfrentam uma crise humanitária crescente, com a invasão de garimpeiros ilegais em seu território, trazendo doenças, desnutrição e violência. 

Para os mais jovens da delegação, é a primeira vez no inverno do Hemisfério Norte. Mas não para o xamã e líder indígena Davi Kopenawa, 66 anos. Em dezembro de 1992, ele representou os povos da Amazônia em evento na sede da ONU, em Nova York. Naquele ano, após mais de uma década de ativismo, o governo brasileiro finalmente reconheceu a Terra Indígena Yanomami. Tem 96 mil quilômetros quadrados, uma área maior que Portugal, e está localizada no norte do Brasil, próximo à fronteira com a Venezuela. 

Em anos anteriores, Kopenawa havia visitado a Europa e os Estados Unidos como parte de uma intensa campanha internacional de apoio para proteger seu povo de uma violenta corrida do ouro que avançava sobre a região ocupada há milênios pelos antigos Yanomami.

Davi Kopenawa é um xamã e líder indígena que defende a proteção do povo Yanomami no Brasil e no exterior (Imagem: Instituto Socioambiental)

“A história é longa, mas se repete como em uma novela”, diz Kopenawa ao Diálogo Chino .

História de violência que se repete

Mais de 70% dos cerca de 27 mil Yanomami que vivem hoje têm menos de 30 anos, reflexo do quase extermínio sofrido por essa população nas últimas décadas. 

A primeira onda de mortes veio das incursões de missionários religiosos, agentes do governo e militares nas décadas de 1950 e 1960. Naquela época, ainda criança, Kopenawa perdeu os pais e outros familiares para epidemias de sarampo transmitidas por forasteiros.

Na parede, fotos de Claudia Andujar tiradas durante campanha de vacinação dentro do território Yanomami. A mostra de arte mostra o povo Yanonami em suas diversas facetas: o estilo de vida, a religiosidade e suas lutas com a invasão de não índios em suas terras (Imagem: Flávia Milhorance)

No início da década de 1970, o governo militar iniciou a construção da rodovia Perimetral Norte na parte sul da terra Yanomami. A obra foi abandonada anos depois, mas chamou a atenção pela presença de ouro e outros metais valiosos, levando a mineração ao cerne da densa floresta tropical, até então quase intocada.

No livro A Queda do Céu: Palavras de um Xamã Yanomami, Kopenawa e o antropólogo Bruce Albert contam como os garimpeiros começaram a se infiltrar na região em pequenos grupos, primeiro oferecendo alimentos e mercadorias aos índios. Ao longo da década de 1980, no entanto, sua presença crescente tornou-se hostil e causou a poluição dos rios, a escassez de caça e a disseminação de novas doenças infecciosas. No auge, a indústria contava com 40 mil pessoas físicas e 90 pistas clandestinas, o que facilitava a entrada e saída dos garimpeiros em pequenos aviões.

Os índios se viram diante de um dilema que, segundo os autores, está no cerne da maioria dos conflitos: “Os Yanomami tornaram-se dependentes da economia que girava em torno das minas no exato momento em que os garimpeiros não mais precisavam comprar a paz com os índios”. 

Essas tensões chegaram ao auge com o massacre de Haximu em 1993, no qual 16 indígenas, incluindo crianças, e dois garimpeiros foram assassinados. O massacre chamou a atenção internacional e levou a uma condenação sem precedentes por tentativa de genocídio, embora os acusados ​​tenham sido libertados posteriormente. A demarcação do território Yanomami ajudou a esfriar a crise, e as operações da Polícia Federal e de órgãos governamentais controlaram a mineração. Mas agora o número de garimpeiros aumentou – e Kopenawa está novamente tentando chamar a atenção da comunidade internacional. 

Vídeoinstalação da mostra em Nova York reúne fotos do povo Yanomami de 1989 e 2018 de Claudia Andujar (Imagem: Flávia Milhorance)

“Esperamos expulsar os garimpeiros de lá novamente – isso foi uma promessa do governo Lula”, diz Kopenawa. “Jair Bolsonaro não quis ouvir, não quis cuidar do meu povo.”

Além de abrir a exposição, Kopenawa falou nas universidades de Princeton e Columbia e novamente na sede da ONU em fevereiro. Ele então viajou por Washington em busca de apoio para a campanha contra a mineração em territórios indígenas.

Devastação socioambiental recente

A última crise Yanomami está se formando desde 2019, impulsionada pelo aumento do preço do ouro junto com as políticas permissivas do governo de Jair Bolsonaro. Como deputado federal nas décadas de 1990 e 2000, Bolsonaro tentou por quatro vezes suspender a proteção da terra Yanomami, sem sucesso. Durante sua presidência, entre 2019 e 2022, Bolsonaro desmantelou órgãos de fiscalização ambiental e de proteção indígena, além de pressionar pelo relaxamento das leis contra a mineração em áreas protegidas. Embora essa nova legislação ainda não tenha sido aprovada, sua retórica tem incentivado a devastação da Amazônia por atividades ilegais. Em diversas ocasiões, Bolsonaro sugeriu que havia “terra demais para pouco Yanomami” (nt.: quando é um só produtor de soja, supremacista branco eurodescendente, invasor de terras dos , usando todo tipo de veneno e devastação ambiental, com área de 600 mil hectares, não é terra demais para ele, não é?).

Aprofundando a crise, há suspeitas de que militares enviados à região estariam recebendo propina para vazar informações sobre as poucas operações de fiscalização e permitir a livre circulação de ouro e drogas. As riquezas minerais dessa área de fronteira também atraíram grupos envolvidos com o narcotráfico, como o ‘PCC’, hoje a maior facção criminosa do Brasil, provocando uma escalada de violência física e sexual.

Ehuana Yaira se juntou à turnê em Nova York para mostrar sua arte. Artista Yanomami retrata mulheres indígenas, muitas delas sujeitas à violência de garimpeiros ilegais (Desenho de Ehuana Yaira e imagem de Flávia Milhorance)

É o que a artista Yanomami Ehuana Yaira, de 38 anos, mostra em seus desenhos. Ela diz que quer denunciar o sofrimento de crianças morrendo de fome e malária e de mulheres exploradas sexualmente por invasores. “Os garimpeiros estão nos fazendo sofrer em todos os cantos da nossa terra”, diz Yaira em Nova York. 

A saúde das pessoas também foi abandonada. O bloqueio de recursos para a infraestrutura indígena e a difícil logística no território remoto, em sua maioria sem estradas ou comunicação, deixou os postos de saúde sem suprimentos básicos e pessoal. Profissionais médicos foram embora, temendo por sua segurança no ambiente cada vez mais hostil. No início de 2021, a situação já era drástica. A fome e a doença já estavam tomando conta por motivos semelhantes aos da década de 1980. Os mais vulneráveis, principalmente as crianças, morriam de Covid-19. Houve também uma grave epidemia de malária, mas um medicamento básico, a cloroquina, estava em falta – em parte porque Bolsonaro estava promovendo seu uso para combater o coronavírus, apesar das evidências científicas indicarem sua ineficácia.

Vista aérea de garimpo dentro do território Yanomami, próximo a um rio na região de Surucucu, em fevereiro. Mineração ilegal tem escalado desde que Jair Bolsonaro assumiu o cargo em 2019 (Imagem: Fernando Frazão / Agência Brasil)

Um ponto de viragem?

Brasília permaneceu cega à crise até o primeiro mês do governo de Luiz Inácio Lula da Silva. Novas imagens chocantes de crianças frágeis e desnutridas foram divulgadas pelo site de jornalismo independente Sumaúma em janeiro. Instado pela ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara, o presidente desembarcou no epicentro da crise, em Boa Vista, um dia depois.

Com o tema já ganhando destaque internacional, uma força-tarefa ofereceu tratamento aos pacientes mais graves e a Força Aérea assumiu o controle do espaço aéreo sobre o território, fazendo com que garimpeiros fugissem de barco – embora muitos não se intimidem com a presença das forças de segurança.

Yanomamis, principalmente mulheres com seus filhos, aguardam ajuda do mutirão de saúde montado para enfrentar a crise humanitária em Boa Vista, próximo ao território Yanomami, em fevereiro (Imagem: Fernando Frazão / Agência Brasil)

Kopenawa diz que a retirada dos garimpeiros não será uma missão simples: “Nossa terra é rica, e onde há riqueza, as invasões não param”. A demarcação do território Yanomami, diz ele, não garante proteção contra o avanço ilegal do garimpo e de outras atividades como a pecuária e o cultivo da soja, que se expandem em menor escala.

As empresas já fizeram mais de 500 solicitações de extração mineral ativa à Agência Nacional de Mineração, abrangendo mais de 30% do território. Embora as áreas estejam atualmente fechadas para exploração, possíveis mudanças legais, como as propostas por Bolsonaro, podem eventualmente mudar esse cenário. E embora as atividades ilegais tenham diminuído desde a década de 1990, elas nunca pararam.

Arte como ativismo

“Há um pico nessa crise, claro, mas o maior problema foi sua invisibilidade”, diz Hervé Chandès, diretor geral artístico da Fondation Cartier, uma das entidades por trás da exposição.

Artistas e aliados Yanomami se reuniram para o lançamento da exposição em fevereiro em Nova York (Imagem: Flávia Milhorance)

Ele acompanha a situação Yanomami há mais de duas décadas, quando conheceu Andujar e Albert em um encontro que resultou na exposição Espírito da Floresta em Paris em 2003. Para essa exposição, artistas não indígenas, incluindo Andujar, passaram meses no território trabalhando com os Yanomami em peças que buscavam expressar os modos de vida e a espiritualidade indígena. 

Com o tempo, Chandès diz ter compreendido melhor sua posição como patrocinador do projeto. O grande diferencial da nova exposição é que “em vez de irem para o território deles, eles vêm aqui, em Nova York, para falar por si mesmos”. Pela primeira vez, ativistas de longa data dos Yanomami e da floresta amazônica se reuniram no mesmo espaço. “Eles estão todos juntos aqui, o palco é deles”, diz Chandès. “Isso é muito simbólico.” 

Joseca Mokahesi retrata o xamanismo Yanomami e a luta de seu povo em seus desenhos (Foto de Flávia Milhorance e desenho de Mokahesi)

Entre eles está Joseca Mokahesi, um dos artistas indígenas que expôs suas ilustrações na mostra de 2003. Nascido em 1971, sem registro da data de nascimento, Mokahesi fala a língua Yanomami e precisa de tradutores para se comunicar. Mas seus desenhos ultrapassaram fronteiras e hoje servem de chave para o universo de seu povo.

“Minha arte é minha luta. O povo Yanomami está sofrendo, mas nós estamos lutando”.

Flávia Milhorance é editora brasileira do Diálogo Chino, baseada no Rio de Janeiro.

Tradução livre, parcial, de Luiz Jacques Saldanha, fevereiro de 2023.