“A pergunta não é ‘como os índios devem viver?’, mas sim ‘quando vamos parar de inventar pretextos para matar os índios?’. Não sabemos sequer como nós devemos viver. Aliás, é curioso que estejamos interessados em como os outros devem viver quando nos encontramos cada vez mais privados da esfera em que se debatem as formas de vida: a política”, reflete Moysés Pinto Neto, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line.
http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/a-incansavel-denegacao-do-genocidio-e-o-indio-inexistente-entrevista-especial-com-moyses-pinto-neto-e-helena-palmquist
“Seja como for, o índio sempre sai perdendo: se for primitivo, a ‘locomotiva do progresso’ vai ‘tratorá-lo’ de qualquer modo; se não for, não é mais índio e, portanto, não tem direito a nada”, critica o pesquisador.
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De acordo com ele, “como o racismo contra índios não é percebido como racismo, sendo inclusive enunciado livremente na esfera pública, a tendência é que tudo que envolva os índios seja simplesmente considerado como irrelevante. Argumenta-se em torno do tema e as pessoas simplesmente fingem que ele não existe, fingem que os índios não existem mais. Assim, o ignorar o texto seria ele próprio parte do fenômeno do racismo”.
Na avaliação do pesquisador, “um conjunto de naturalizações” orientam ações individuais de racismo contra os indígenas, o qual “não se percebe como racismo”. Ele esclarece: “A naturalização não foi abalada, ela segue sendo utilizada no discurso público como se fosse admissível. Creio que esse elemento de ingresso na esfera pública é importante: é diferente se afirmar, por exemplo, que a tortura é errada, mas não utilizamos tortura (hipocrisia), de explicitamente se afirmar que a tortura é admissível em certos casos. Quando o discurso ultrapassa esse ponto, estamos em um momento muito perigoso. É esse o momento que vivemos em relação aos índios e quilombolas”.
A jornalista Helena Palmquist, que também acompanha as questões indígenas, assinala que “é preciso reafirmar que o intento genocida e o racismo estão implícitos na forma mais frequente de relação do estado nacional brasileiro com os povos originários dessa terra, que é o assimilacionismo, forma essa que constava até 1989 na Convenção nº 107 daOrganização Internacional do Trabalho para Povos Indígenas e Tribais”. Contudo, enfatiza, “particularmente noBrasil esse debate está tão atrasado que na arena pública o que vemos são políticos de todas as matizes ideológicas e autoridades dos três poderes solapando sistematicamente o sentido da autodeterminação e inventando um pretexto após o outro para o genocídio”.
Nesse sentido, acrescenta Moysés Pinto Neto, “a ‘esquerda’ brasileira, no entanto, continua majoritariamente eurocêntrica e não consegue visualizar essa questão senão na melhor das hipóteses como de uma ‘identidade minoritária’ a ser preservada. As possibilidades que o pensamento indígena oferece para a construção de uma nova matriz econômica e social, por exemplo, são amplamente subestimadas. O projeto da esquerda no poder é simplesmente aderir ao modelo de desenvolvimento dos países do Atlântico Norte e repeti-lo nos trópicos, mesmo que hoje o que se demande nesses países mesmos em termos de movimentos sociais seja a transformação desse modelo”.
Moysés Pinto Neto é graduado em Ciências Jurídicas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, mestre em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS e doutorando em Filosofia nessa mesma instituição. Leciona no curso de Direito da Universidade Luterana do Brasil – Ulbra Canoas.
Helena Palmquist é jornalista.
Confira a entrevista.
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IHU On-Line – Quais são os indícios de que os indígenas sofrem mais racismo do que qualquer outro grupo, no Brasil, como apresenta em artigo recente?
Moysés Pinto Neto – A pergunta permite que possa esclarecer um possível equívoco. O título do artigo que escrevi sobre o tema é visivelmente uma provocação que só se torna compreensível após percorrida a totalidade do texto. A que equívoco me refiro? Uma possível leitura, afastada explicitamente no primeiro e no último parágrafo, que envolveria a quantificação e minimização do sofrimento das vítimas de outras formas de racismo. Em nenhum momento esse é o objetivo do texto.
Podemos separar, no entanto, um aspecto “objetivo” do fenômeno do racismo que consiste em delinear como funcionam os mecanismos forjados nas interações intersubjetivas e que operam como uma rede de palavras, gestos e símbolos, podendo ocorrer inclusive sem a intencionalidade do agente (isto é, inconscientemente), do sofrimento subjetivo de quem é vítima, esse sim irredutível, qualitativo e incomensurável. Quando digo “objetivo” não estou me referindo a uma estrutura imutável, mas sim a um conjunto de naturalizações que orientam as ações individuais no cotidiano. É nesse sentido que afirmei serem os indígenas alvo de um racismo atroz porque ele não se percebe como racismo. Quer dizer: a naturalização não foi abalada, ela segue sendo utilizada no discurso público como se fosse admissível. Creio que esse elemento de ingresso na esfera pública é importante: é diferente se afirmar, por exemplo, que a tortura é errada, mas não utilizamos tortura (hipocrisia), de explicitamente se afirmar que a tortura é admissível em certos casos. Quando o discurso ultrapassa esse ponto, estamos em um momento muito perigoso. É esse o momento que vivemos em relação aos índios e quilombolas.
“Os índios não ‘devem ser’ incluídos na cultura brasileira, eles já são matriz dessa cultura ao lado dos negros e portugueses” |
Por tudo isso é que optei por esse título “bomba”. Como o racismo contra índios não é percebido como racismo, sendo inclusive enunciado livremente na esfera pública, a tendência é que tudo que envolva os índios seja simplesmente considerado como irrelevante.
Argumenta-se em torno do tema e as pessoas simplesmente fingem que ele não existe, fingem que os índios não existem mais. Assim, o ignorar o texto seria ele próprio parte do fenômeno do racismo. Por isso — e não para minimizar outras formas de racismos (todas igualmente graves, espúrias e operando estruturalmente no Brasil; em particular, mencionaria ainda o genocídio da juventude negra da periferia) — optei por um título bombástico, um chamariz provocador para a leitura.
IHU On-Line – Quais as razões de considerar o índio como alguém que deve ser incluído na cultura brasileira?
Moysés Pinto Neto – Os índios não “devem ser” incluídos na cultura brasileira, eles já são matriz dessa cultura ao lado dos negros e portugueses. Uma cultura fundada em um genocídio recalcado e, como tal, evidentemente marcada por sintomas que reaparecem a todo instante. Como dizia Benjamin, todo “monumento de cultura” é também de barbárie. Nesse sentido, a ambivalência da cultura “brasileira” (suspeito um pouco desse rótulo unificador) em relação ao tema é patente: de um lado, sem o elemento indígena ela não poderia ser o que é, e mesmo os pensamentos mais unificadores e autoritários reconhecem isso. De outro, a incansável denegação do genocídio que alcança os dias de hoje e, paradoxalmente, trata o índio atual como inexistente para não se ver com os problemas de um passado que não cansa de bater na nossa porta. Como acontece tantas vezes na América Latina, trata-se de um momento de luto que nos foi roubado e somente a partir do qual poderemos seguir adiante sem repetir os crimes do passado.
IHU On-Line – Em artigo recente, o senhor menciona que “boa parte da esquerda, e em especial a que hoje governa o país”, tenta incluir o índio na cultura. Como a esquerda trata dessa questão? E o que poderia se esperar da esquerda em relação a isso?
Moysés Pinto Neto – Esse é um fato gravíssimo. Sem que alguém (digamos, a “esquerda”) defina na esfera pública o racismo contra indígenas como racismo, mantemos a porta aberta para que seja possível o livre extermínio desses povos. A “esquerda” brasileira, no entanto, continua majoritariamente eurocêntrica e não consegue visualizar essa questão senão na melhor das hipóteses como de uma “identidade minoritária” a ser preservada. As possibilidades que o pensamento indígena oferece para a construção de uma nova matriz econômica e social, por exemplo, são amplamente subestimadas. O projeto da esquerda no poder é simplesmente aderir ao modelo de desenvolvimento dos países do Atlântico Norte e repeti-lo nos trópicos, mesmo que hoje o que se demande nesses países mesmos em termos de movimentos sociais seja a transformação desse modelo. É como se o nosso “atraso” em relação aos países do Norte fosse tomado como vantagem compensatória da nossa falta de imaginação política: podemos continuar repetindo o que se encontra questionado mundo afora enquanto os outros pensam por nós o que fazer até os alcançarmos.
IHU On-Line – Quais são as alternativas à não inclusão? Como os índios deveriam viver?
Moysés Pinto Neto – A pergunta por si só já é problemática. O que chamamos de “inclusão” é simplesmente o extermínio da cultura indígena para que o índio seja colocado às margens da nossa forma de vida baseada no trabalho e no consumo. Em outros termos, é a transformação do índio em pobre, já que ele não “tem” coisas e tampouco cultua o trabalho como quintessência humana. Como ainda vivemos sob a égide do racismo eurocêntrico, muita gente acredita que uma forma de vida baseada em outras relações entre sociedade e natureza seja “atrasada” e por isso que é normal ao índio ocupar o espaço inferior da pirâmide social, já que estaria atrás dos mais atrasados. A violência desse“progressismo” é patente e é curioso que, depois de tudo que aconteceu no século XX, ainda haja quem considere a diferença como sinal de atraso na flecha da História.
“Imaginar que o contato com o outro descaracteriza a cultura é um pensamento duplamente viciado: pelo colonialismo da locomotiva do progresso e por uma xenofobia projetada” |
Não cabe a nós dizer como os índios devem viver. Perguntamos como os canadenses ou japoneses devem viver? Não. Logo, não faz sentido pensar dessa forma. A pergunta não é “como os índios devem viver?”, mas sim “quando vamos parar de inventar pretextos para matar os índios?”. Não sabemos sequer como nós devemos viver. Aliás, é curioso que estejamos interessados em como os outros devem viver quando nos encontramos cada vez mais privados da esfera em que se debatem as formas de vida: a política.
IHU On-Line – Quando se trata dos direitos indígenas, há argumentos como o de que o índio já aderiu à cultura do branco ao utilizar celular, ter acesso à internet, etc. Qual é o limite ante a adesão parcial de outras culturas e a manutenção da sua própria cultura?
Moysés Pinto Neto – Não existe esse limite. As culturas não são oásis de pureza, mas zonas de contaminação constante. O que não significa, por outro lado, a dissolução de toda alteridade em um hibridismo generalizado. O múltiplo não é um “Um” que ainda não se realizou. Por isso, querer descaracterizar a cultura indígena pela incorporação de tecnologia é um exercício da mentalidade genocida: ou os indígenas rejeitam toda transformação e mudança nas suas culturas, ou devem desaparecer enquanto cultura própria. Em outros termos, ou você segue “primitivo”, ou não é mais índio. Seja como for, o índio sempre sai perdendo: se for primitivo, a “locomotiva do progresso” vai “tratorá-lo” de qualquer modo; se não for, não é mais índio e, portanto, não tem direito a nada.
Isso piora se levarmos em consideração o que interessou a vários pensadores brasileiros, Oswald de Andrade, por exemplo, que é o papel da antropofagia na cultura indígena. A antropofagia é o inverso da xenofobia do pensamento ocidental de matriz grega. Ela é a incorporação do outro como fratura do eu, um si-mesmo que nunca é próprio, está em permanente transformação na medida em que se define em relação a uma exterioridade (o inimigo, por exemplo, como nos mostrou o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro). Ao contrário da cultura ocidental, que é um constante desejo xenófobo de plenificação do “Um” e erradicação da diferença estrangeira, a cultura antropofágica somente faz sentido na relação com a alteridade. Por isso, imaginar que o contato com o outro descaracteriza a cultura é um pensamento duplamente viciado: pelo colonialismo da locomotiva do progresso e por uma xenofobia projetada.
“Querer descaracterizar a cultura indígena pela incorporação de tecnologia é um exercício da mentalidade genocida” |
IHU On-Line – O que significa manter o modo de vida indígena?
Helena Palmquist – Temos no mundo pelo menos 5 mil povos indígenas e só no Brasil mais de 240, com seus particulares modos de vida. Portanto não existe “o” modo de vida indígena a ser mantido e é evidente que todos esses povos têm que ter seus modos de vida respeitados, o que é impossível no cenário de ordem e progresso já desenhado nas questões anteriores. Se existe algo de comum aos modos de vida indígenas no território brasileiro é a necessidade de manutenção das terras ancestrais, onde precisamente está a raiz da maior parte dos problemas. Não é à toa que a Confederação Nacional da Agricultura lançou uma ofensiva midiática para tentar demonstrar que os índios não precisam de terras e sim de saúde e educação. A mensagem bem clara é: agora que vencemos essa conversa de reforma agrária (Brasília se rendeu aos ruralistas nisso faz tempo), vamos avançar nas terras dos índios e assimilá-los às periferias das cidades, onde podemos prometer a cada dois anos nas eleições que eles um dia terão melhores escolas e postos de saúde.
IHU On-Line – Quais são as principais dificuldades enfrentadas pelas comunidades indígenas em relação à tentativa de manter seu modo de vida?
Helena Palmquist – É preciso reafirmar que o intento genocida e o racismo estão implícitos na forma mais frequente de relação do estado nacional brasileiro com os povos originários dessa terra, que é o assimilacionismo, forma essa que constava até 1989 na Convenção nº 107 da Organização Internacional do Trabalho para Povos Indígenas e Tribais. Então, manter e respeitar os vários modos de vida indígenas sobreviventes — à custa de muita resistência, diga-se — não é como se fosse o terceiro segredo de Fátima. Porque o assimilacionismo foi ultrapassado formalmente, no marco do direito internacional, em 1989 com a Convenção nº 169 da OIT, que consagra o princípio da autodeterminação dos povos e o direito de que cada população indígena ou tribal possa escolher seus próprios caminhos para o futuro. Esse princípio consta ainda na Declaração das Nações Unidas sobre os direitos dos povos indígenas e na Constituição Federal brasileira que, como todos deviam saber, é uma carta guiada pelo sentido do multiculturalismo e da autodeterminação.
Particularmente no Brasil esse debate está tão atrasado que na arena pública o que vemos são políticos de todas as matizes ideológicas e autoridades dos três poderes solapando sistematicamente o sentido da autodeterminação e, como se disse acima, inventando um pretexto após o outro para o genocídio — seja a necessidade irracional de uma quantidade infinita de energia elétrica, seja o direito sagrado de mineradoras multinacionais saquearem o subsolo, seja o dever cívico de grileiros de terra plantarem soja transgênica, dendê ou qualquer outra commoditie não comestível em territórios indígenas.
IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
Moysés Pinto Neto – Outra dimensão do problema que o texto não aborda: a completa ausência de discussão sobre a cultura indígena no ensino superior, com exceção da antropologia, obviamente. É estranho que o estudante de Direito, Filosofia ou Jornalismo, por exemplo, saia como um completo ignorante acerca dessas questões a partir dos currículos das universidades que recebemos. Nas áreas que conheço melhor, por exemplo, que são o Direito e a Filosofia, não há qualquer debate sobre o assunto. O estudante pode conhecer os detalhes do pensamento germânico, se quiser, mas nada da filosofia indígena. Nomes básicos da antropologia cultural como Pierre Clastres e Lévi-Strauss são completamente desconhecidos nesses cenários.
O resultado é a repetição de um “universalismo” eurocêntrico ou norte-americanófilo de matrizes kantianas que desconhece totalmente outras tradições culturais, postulando-se como racional e necessário e reconhecendo a diferença cultural no máximo como “exotismo”. Exótico é sempre o outro, afinal. Normal é basear o modelo político-econômico em um crescimento infinito que coloca em xeque o planeta (incluídos os “exóticos”), por exemplo. É urgente revisar essas matrizes de pura cópia de modelos teóricos vindos das “potências” do Atlântico Norte numa relação colonizada (nada contra ler autores estrangeiros, obviamente) que acaba por ocultar os reais problemas vividos hoje em dia no Brasil.
Há, no entanto, iniciativas muito positivas vindas à sociedade nos ventos de Junho, por exemplo, a campanha Índio é Nós e uma forte solidariedade nas redes sociais e protestos das ruas, sem esquecer que os próprios indígenas estiveram na vanguarda das mobilizações do ano passado. Nesse sentido, parabenizo o trabalho do IHU por tomar a violência contra os indígenas como uma pauta constante em um cenário onde ela geralmente é ignorada, inclusive na Universidade.
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