‘A dívida grega, assim como a brasileira, é odiosa’.

A brasileira Maria Lúcia Fattorelli recebeu incrédula a notícia de que o governo grego firmou novo acordo para renegociação da dívida pública do país. Um acordo que, se for aprovado pelo parlamento, obrigará a Grécia, em troca de um socorro financeiro de cerca de 80 bilhões de euros, a se submeter ao mais severo programa de austeridade fiscal já proposto na zona do euro.  Auditora aposentada da Receita Federal do Brasil e coordenadora do movimento Auditoria Cidadã, Fattorelli atuou nas auditorias das dívidas públicas brasileira (2009-2010) e equatoriana (2007). Convidada pelo Syriza, o partido de esquerda grego que venceu as últimas eleições, ela agora integra a chamada Comissão da Verdade da Dívida da Grécia, instituída em abril, para avaliar a legalidade dos acordos que a geraram.

 

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“Esse novo acordo é uma grande burrice. Vai reestruturar uma dívida ilegal, correndo o risco de sacramenta-la e, no futuro, tornar muito mais difícil a sua revisão”, afirmou em entrevista exclusiva à Carta Maior, em Brasília, onde passa uma temporada, após a divulgação do relatório preliminar da Comissão da Verdade.

Fatorelli defende a realização da dívida da União e dos Estados | Foto: Caroline Ferraz/Sul21

Para a brasileira que conhece de perto as origens e razões da crise econômica e social daquele país, a dívida grega é mero veículo de corrupção e expropriação, é parte de um grande esquema ilegal criado para salvar os bancos privados europeus. “Para mim, que tive acesso aos contratos, que vi o que ocorreu naquele país e, portanto, tenho a segurança de falar o que estou falando, é muito triste ver que o governo não suspendeu esse pagamento”, lamenta.

A entrevista é de Najla Passos, publicada por Carta Maior, 14-07-2015.

Eis a entrevista.

As notícias que chegam da Grécia, via o relatório preliminar produzido pela Comissão da Verdade da qual você faz parte, revelam que a dívida pública foi imposta ao país como uma operação para salvar os bancos privados europeus, e não foi, em nenhuma medida, revertida em benefícios para o povo. Então, essa é uma dívida ilegal?

Exatamente. A dívida grega é o resultado de um grande esquema idealizado para o salvamento dos grandes bancos privados europeus, afetados pela bolha de 2008. A dívida da Grécia começa a ser um problema lá na década de 1980, em função dos juros sobre juros. Na década de 1990, o processo continuou. Depois, vieram as Olimpíadas, com muita corrupção. O gasto previsto com o evento não chegava inicialmente a 5 bilhões de euros, mas acabou que a dívida já supera 30 bilhões de euros, por causa de aditivos, acréscimos aos contratos, refinanciamentos em condições onerosas. De qualquer forma, a parte mais relevante, sem dúvida, foi a destinada ao salvamento dos bancos, que é esta contraída de 2010 para cá.

Qual é a composição da dívida grega, avaliada hoje em 321 bilhões de euros?

No nosso relatório, por questões metodológicas, nós consideramos o valor total da dívida de 312 bilhões de euros. Deste total, 131 bilhões de euros foram para a empresa de fachada criada em Luxemburgo, a SFS, para operar o esquema. Outros 53 bilhões de euros foram para o chamado acordo bilateral, em que o dinheiro não chegou na Grécia. Foi aberta uma conta no Banco Central Europeu (ECB) e o dinheiro que os países emprestavam ia direto para lá, e de lá para os bancos privados que detinham alguma parcela da dívida. O montante destinado ao Fundo Monetário Internacional (FMI) – que é um empréstimo stand by, que não é entregue ao país, mas fica ali para socorrer os bancos, caso o país não consiga efetuar o pagamento – é de mais 20 bilhões. Além disso, tem a parte do ECB, de mais 20 bilhões de euros, que também está conectado com o salvamento bancário. Só aí temos mais de 220 bilhões de euros.

A outra parte é dívida interna, inclusive dívida interna gerada para pagar os encargos desses empréstimos, que são abusivos. São encargos sobre cada coisa que esses credores fazem, do tipo emitir um documento, emitir um adendo, despesas com advogados, despesas em bolsas, tudo quanto é tipo de taxa que se possa imaginar, é tudo cobrado da Grécia. E esses encargos têm que ser pagos no prazo de cinco dias. Então, a Grécia acaba emitindo dinheiro, aumentando a dívida interna, para gerar liquidez.

Se a dívida grega recente é ilegal, por que o governo se submeteu à pressão para fechar esta nova renegociação anunciada esta semana? É possível o país se reerguer com um acordo que exija esse nível de sacrifício?

Não, não é possível. E mais. Esse refinanciamento que agora eles estão propondo vai pegar toda essa dívida ilegítima e refinanciá-la. Simplesmente, vai jogar para a frente o problema. Como tem acontecido aqui no Brasil desde a década de 1980.

Mas o governo grego tem apoio popular para não pagar esta dívida, manifesto inclusive por meio do plebiscito do último dia 5. Por que ele cede?

A pressão é muito grande. Do jeito que foi feito, o euro virou uma camisa de força. O governo grego está sob forte pressão da troika, que é formada pelo ECB, FMI e Comissão Europeia, todos eles órgãos dominados por interesses do setor financeiro. O FMI não precisa nem falar, sempre foi um órgão de socorro aos bancos, e não aos países. O ECB é dirigido pelos grandes brancos privados, como é também o banco central dos Estados Unidos. É uma instituição privada, independente. E na Comissão Europeia, o setor que coordena esta parte dos empréstimos, e inclusive tem enorme responsabilidade sobre estes tipos de contratos, está totalmente comprometido com este esquema. Além dessa pressão da troika, a Grécia ainda sofre a pressão dos próprios bancos privados e de alguns países europeus, principalmente a Alemanha.

Há o risco concreto da Grécia ser expulsa da zona do euro? Isso inviabilizaria uma retomada do país?

A criação da comunidade europeia foi regida pelos princípios da solidariedade, da cooperação, da colaboração. Por isso, não há previsão legal para expulsar um país, porque isso está totalmente fora de cogitação dos princípios que regeram a criação da comunidade europeia. Então, a Grécia não tem o que temer. Ela pode ser convidada a se retirar, ser pressionada. Mas ela sai se quiser. Expulsa, não. Mas a pressão é brutal.

Muitos economistas já dizem que é melhor a Grécia trabalhar com uma moeda alternativa enquanto não se resolve essa situação, que não finaliza a auditoria. Tem até um economista que já foi do Banco Mundial, Peter Koening, que advoga que o próprio Banco Central da Grécia poderia imprimir euro, que as regras do Banco Central Europeu não impede isso. E olha que não é ninguém de esquerda que está dizendo isso. É um cara de mercado que foi da direção do Banco Mundial por 30 anos.

Como se deu esse processo de salvamento dos bancos privados a partir da imposição de uma alta dívida pública a um país?

Os bancos quebraram em 2008, naquela história da bolha, mas foram considerados grandes demais para quebrar e os países decidiram salvá-los. Então, esquemas ilegais e fraudulentos foram criados para fazer este salvamento. Um desses esquemas foi a criação de uma empresa em Luxemburgo, a FSF, hoje tida como a maior credora da Grécia. É uma empresa que pode ser considerada de fachada, porque envolve países europeus, o que é um escândalo. E isso não é denunciado. Não é dito. E quem dirige de fato esta empresa é a Agência de Dívidas alemã.

O que é exatamente uma agência de dívidas?

Para nós é um pouco difícil entender o que é uma agência de dívidas, porque quem gerencia a dívida pública aqui é o tesouro nacional, mas lá na Alemanha é uma agência independente, como aqui tem a Anatel, a Aneel etc. Essa agência é que dirige a empresa de Luxemburgo. É uma fachada e o objetivo dessa empresa é trocar garantias emitidas pelos países. Garantia é igual dívida. Tem outro nome, mas é uma obrigação que você tem que honrar em determinado momento, e que também rende juros. Então, todos os países que compõem esta empresa emitem garantias milionárias. Quando ela foi aberta, eram 440 bilhões de euros. Depois passou para 779 bilhões de euros. E essa empresa troca as garantias dos países por papéis podres em poder dos bancos, usando o sistema da dívida.

Se o salvamento dos bancos fosse anunciado dessa forma, exatamente com esse nome, seria um escândalo e, talvez, essas medidas não passassem. Então, a Grécia foi colocada como cenário. E está sendo colocada como cenário até hoje. Se você pegar o noticiário desde 2010, a Grécia é manchete sempre. Tudo é culpa da dívida da Grécia.

E por quê justamente a Grécia? Por que a dívida pública grega é um problema tão grande para o mundo?

A questão é que, lá em 2010, estavam em curso todas essas medidas de salvamento bancário. Em 2010, no mesmo dia em que foi endereçado o plano para a Grécia, foi criada essa empresa de Luxemburgo. O mesmo ato da Comissão Europeia que menciona o socorro para a Grécia, também menciona a criação dessa empresa em Luxemburgo, dando a entender que era tudo para ajudar a Grécia. Neste mesmo dia, o EBC lançou também no mercado um programa de compra de ativos, principalmente títulos públicos de dívidas dos países, que é ilegal. Se você pegar o artigo 123 do Tratado Comum Europeu, vê que é expressamente ilegal fazer isso. E, no entanto, o programa foi lançado e está operando, para ser possível a transferência da bolha do balanço dos bancos para a dos países. Porque, pelos princípios contábeis, qualquer transferência de bem, se não for uma doação, exige uma operação de compra e venda. Mas isso não poderia ser feito. Então, a Eurostat, que é o órgão que cuida de todas as regras estatísticas e contábeis da Europa, mudou a norma e permitiu a mera transferência de papéis, sem operação de compra e venda, justificando essa aberração dos princípios contábeis por conta da “turbulência econômica”. Tudo isso ficou escondido. E, quando eu denunciei em uma artigo, economistas gregos vieram comentar comigo que ainda não tinham visto toda essa relação entre as operações.

E como você concluiu que a Grécia era apenas o cenário deste esquema muito maior?

Por que eu me fazia a mesma pergunta que você fez: por que a Grécia? Aí eu descobri que a Comissão Europeia já vinha fazendo um monitoramento das estatísticas e dos dados da Grécia. Como se houvesse um grande problema com esses números e a Grécia tivesse um déficit maior do que estava apresentando. Só que outros países também tinham problemas estatísticos e de déficits. E chegou um momento em que a Comissão Europeia começou a isolar a Grécia, sem razão aparente. Citaram um grupo de países, que deveriam corrigir seus problemas de uma maneira. Apontaram um outro grupo, que deveria corrigir de outra. E isolaram a Grécia, dizendo que a Grécia era diferente. E a Grécia foi colocada na berlinda, tendo que receber esse pacote de ajuste.

A desculpa era que o déficit estava alto demais e poderia afetar a economia de toda a região. Então, eu fui pesquisar este déficit e tentar entender porque toda essa narrativa diferenciada com a Grécia. E quando eu comecei a pesquisar, encontrei denúncias públicas de ex-chefes da ElStat, o órgão que cuida das estatísticas da Grécia, equivalente ao nosso IBGE, de que, em apenas uma noite, colocaram cerca de 50 bilhões de euros na dívida grega. Primeiro, essas denúncias de falsificação do déficit – que foi a justificativa para a Grécia ser colocada nessa berlinda – foram ignoradas.

Segundo, vários economistas gregos, especialistas, servidores e até o representante da Grécia junto ao FMI diziam que o pacote proposto não interessava à Grécia, que era melhor fazer uma reestruturação. E isso tudo foi ignorado porque, naquele momento, o que interessava era fazer essa troca da bolha dos bancos. Eles queriam este esquema. Agora, depois do esquema todo implantado, estão falando em reestruturação. Mas, agora, esse acordo vai ser uma grande burrice. Vai reestruturar uma dívida ilegal, correndo o risco de sacramenta-la e, no futuro, tornar muito mais difícil a sua revisão.

A Alemanha é a grande detentora da dívida grega, mas também possui uma dívida histórica com a Grécia, em função da ocupação nazista. O valor dessa dívida histórica alemã é, de fato, como dizem, suficiente para cobrir a dívida pública grega?

O parlamento grego criou a nossa comissão, para fazer a auditoria, e criou uma outra comissão para verificar esse crédito. Então, essa apuração está em andamento, mas é feita por outro grupo. E é extremamente relevante porque há uma dívida que, se corrigida, é muito superior a esses 321 bilhões da dívida da Grécia. E a própria Alemanha já recebeu uma grande ajuda mundial para se reerguer, quando perdeu a guerra.

Você acaba de chegar de uma temporada de dois meses na Grécia. Qual a situação econômica e social do país hoje?

É uma situação de crise humanitária. A própria presidente do parlamento já repetiu isso várias vezes. E é fato. Quando você olha o encolhimento do PIB de 2009 a 2014, de 22%, dá pra estimar o dano. O orçamento caiu 40 bilhões de euros. As privatizações que o país já fez, o patrimônio que entregou de forma criminosa. Porque quando o FMI entrou lá, junto com a troika, em 2010, ao mesmo tempo em que ele determinou o corte de várias instituições de saúde, educação, assistência, também determinou a criação de duas estruturas caríssimas: um Fundo para Recapitalização de Bancos Privados e um Fundo para Privatizações.

O site desde último fundo é deprimente. É como se você estivesse olhando um catálogo do Shoptime. É o país colocado a venda. Tudo vai passando e você pode escolher: terra, infraestrutura, água, ilhas, trens, portos, marinas, aeroportos… tudo colocado a venda. E na internet. Triste. E o Brasil está assim também. O que a Dilma foi fazer nos Estados Unidos é a mesma coisa: colocar o país a venda. Já o outro fundo grego, o dos bancos, já deixa claro: “O objetivo é contribuir para a manutenção e estabilidade dos bancos e do sistema bancário”. Então, ao mesmo tempo em que o FMI cortou tudo que era essencial, mandou construir essas duas estruturas caríssimas. Eu estudei os relatórios. O Fundo de Privatizações não tem transparência nenhuma, mas o dos bancos produz relatórios. Daqueles 131 bilhões euros que a Grécia recebeu da empresa de Luxemburgo, 48,8 bilhões de euros entrou direto neste fundo para salvar bancos. É escandaloso.

Aqui no Brasil, a gente escuta a mesma cantilena há anos: se não pagar a dívida, o país fica isolado e quebra. Mas, no Equador, a suspensão do pagamento da dívida, da qual você também participou da auditoria, funcionou. Por quê?

A diferença é que o Equador tinha dinheiro para recomprar a dívida.

Mas o presidente Rafael Correa não reconheceu e pagou apenas 30% do total?

Sim, foi o que ele fez. Mas no nosso relatório zerava a dívida e ainda deixava o Equador com crédito. Só que ele fez um cálculo político da corresponsabilidade dos equatorianos, porque os políticos anteriores foram coniventes, que houve uma corresponsabilidade. Por isso, o Rafael Correa anunciou que recompraria os títulos por no máximo 30% e, quem não quisesse vender, que entrasse na Justiça. Os detentores dos títulos da dívida, claro, concordaram, porque sabiam que, se entrassem na justiça, não receberiam nada, por causa do relatório. Na Grécia, a situação é diferente, porque o país está quebrado. As reservas já se foram todas.

Como o Equador se beneficiou com a revisão desta dívida?

Em 2007, quando o Rafael Correa assumiu, o valor destinado ao pagamento da dívida já deu uma caída. Em 2008, depois que a gente entregou o relatório da auditoria e ele suspendeu o pagamento dos juros da dívidas, caiu ainda mais. A partir daí, a equação se inverteu e os gastos sociais que eram irrisórios até então, passaram a ser muito maiores, só com o montante dos juros. E em 2009, quando ele recomprou a dívida, os gastos sociais ficam maiores que os gastos com a dívida pela primeira vez na história. Assim, o Equador triplicou o salário dos professores. Voltou a investir em saúde pública, que tinha sido suspensa desde 2000 por causa do peso da dívida. Quando eu estive no Equador pela primeira vez, em 2001, vi aquelas favelas horizontais enormes, todas elas cercadas, e questionei o que acontecia quando uma pessoa dali adoecia. E me explicaram que ou ela achava uma alma caridosa para pagar um remédio ou simplesmente morria. Com a revisão da dívida, tudo isso foi revisto. Tudo foi reconstruído. É por isso que o Correa está sendo reeleito, reeleito e reeleito.

Já na Grécia, ocorre o movimento contrário e, pelo jeito, agora, com a complacência do novo governo de esquerda, eleito para fazer diferente…

No nosso relatório preliminar, nós trazemos uma lista de tudo o que eles perderam. E, além disso, apresentamos as ilegalidades dos acordos com os maiores credores. O Banco Central Europeu não poderia ter o programa que teve. A empresa de Luxemburgo é uma aberração. E este acordo bilateral é um arranjo para reciclar os papéis podres em poder nos bancos. Para mim, que tive acesso aos contratos, que vi o que ocorreu naquele país e, portanto, tenho a segurança de falar o que estou falando, é muito triste ver que o governo optou por não suspendeu esse pagamento.

Há perigo de um giro à direita do governo grego, que alguns já vêm sinalizado desde o pedido de demissão do ex-ministro das Finanças, Yanis Varoufakis

Eu não tenho como dizer isso. Porque ele também vinha negociando desde janeiro. Agora, ele não tinha esse resultado da auditoria que temos agora. E que faz a diferença. Porque aí, coisas que não estavam conhecidas vieram à tona. É ainda um relatório preliminar, claro, mas já consegue mostrar a ilegalidade da dívida. E que já foi mostrado, na minha opinião, é suficiente para um passo mais firme de repúdio a essa situação. Não há porque continuar com isso aí, refazer esse tipo de acordo, porque é claro que vai dar errado.

Voltando à composição da dívida grega, é verdade que parte dela, aquela parte mais antiga, foi contraída devido à necessidade de gasto em armamento para a entrada do país na OTAN?

Nesta nossa análise preliminar, nós focamos a dívida de 2010 para cá, porque é a vigente, mas na dívida anterior, a maior parte dela é, sim, para comprar armamento. A Grécia é um país da OTAN e nós sabemos que todos os países da OTAN são bases militares dos Estados Unidos, que exigem o cumprimento da cota de armamento. É um problema sério, mas, esta parte, ainda não investigamos. Eu sei tanto quanto você.

Nesta análise da composição dívida antiga podem também surgir mais informações relevantes….

Sim, essa dívida é o que juridicamente chamamos de dívida odiosa. E o termo não tem nada a ver com ódio ou odiar. A dívida odiosa é uma dívida contraída contra o interesse do povo que vai pagá-la. É, por exemplo, como a origem da nossa dívida externa, contratada para financiar a ditadura. Ditadura era algo de interesse do povo? Não, o povo queria democracia. Então, uma dívida contraída para financiar um regime despótico, uma ditadura, ela é contrária ao interesse do povo. O governante ditador vai contrair e ainda vai botar o povo, que é a vítima desse poder, para pagar. Então, a dívida brasileira, assim como a grega, é odiosa.

A Grécia também passou por uma ditadura durante um período, o que é até uma contradição para o país que é o berço da democracia. E o berço da democracia passa agora pela ditadura do capital. Eu havia comemorado o plebiscito do último dia 5, dizendo que, com ele, a Grécia voltava a ser o berço da democracia porque submeteu ao povo uma decisão econômica importante. Mas, agora o governo não está acatando a decisão, eu fico muito triste. Porque o povo votou contra a austeridade. Isso é lamentável e só pode ser decorrente da enorme pressão que faz com que o governo não enxergue saída dentro da estrutura criada pela União Europeia.

 

Estamos vivendo a Grécia desde 1983, diz brasileira que auditou dívida grega

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Fatorelli defende a realização da dívida da União e dos Estados | Foto: Caroline Ferraz/Sul21
Fatorelli defende a realização da dívida da União e dos Estados | Foto: Caroline Ferraz/Sul21, 

Luís Eduardo Gomes

22/jul/2015, 18h21min

A auditora aposentada da Receita Federal e fundadora do Movimento Auditoria Cidadã da Dívida, Maria Lucia Fatorelli, esteve recentemente na Grécia participando do Comitê pela Auditoria da Dívida Grega, processo promovido pelo Parlamento do país com o auxílio de 30 especialistas internacionais. Nesta quarta-feira, ela concedeu uma entrevista coletiva para o Centro de Auditores Públicos do Tribunal de Contas do Estado/RS (Ceape), em que comparou a situação grega com a brasileira e salientou a necessidade de ser realizada uma auditoria nas dívidas da União e dos Estados, incluindo o Rio Grande do Sul.

Para tentar escapar do colapso financeiro gerado por uma dívida impagável, a Grécia vem recebendo desde 2010 resgates da chamada Troika – Comissão Europeia, o Banco Central Europeu (BCE) e o Fundo Monetário Internacional (FMI) – em valores superiores a 200 bilhões de euros em troca da adoção de políticas de austeridade.

Apesar dos bilhões europeus, a economia da Grécia vem naufragando nos últimos cinco anos (o PIB do país decaiu 25% no período) em decorrência da combinação de pagamentos de juros e implementação de políticas de austeridade. Segundo ela, este cenário estaria se repetindo no Brasil desde 1983, quando o governo brasileiro recebeu um pacote de socorro financeiro do FMI. A diferença seria que o Brasil tem mais riqueza para “sangrar”.

“O que aconteceu na Grécia, de 2010 a 2015, quando o FMI passou a intervir na Grécia, é exatamente o que vem acontecendo no Brasil desde 1983, quando o FMI passou a intervir aqui. E hoje, apesar de ter pago a dívida para o FMI e até emprestar ao fundo, estamos sujeitos a mesma política, ao mesmo receituário que a gente já sabe que é um veneno: política de juros altos, privilégio para o setor financeiro, privatizações e o ajuste fiscal (corte de gastos)”, afirma. “É um modelo que o FMI impõe aos países, mas não deu certo em lugar nenhum. Inclusive, tem estudo publicado no site do FMI que diz isso”, complementa, salientando que, caso as medidas não sejam adotadas, há a ameaça de isolamento financeiro.

Segundo cálculo do Movimento Auditoria Cidadã da Dívida, em 2015, o governo federal deve gastar aproximadamente R$ 1,35 trilhão com o pagamento da dívida público (entre juros e amortização), o que representa aproximadamente 47% do orçamento da União.

Dívida gaúcha também é impagável

No Rio Grande do Sul, o quadro da dívida é grave. O Ceape prevê que o gasto com a dívida pública chegue a R$ 3,5 bilhão, entre juros e amortização. Contudo, como o gasto do Estado com a dívida com a União está limitado constitucionalmente a 13%, mas os juros que incidem sobre a dívida – 6% mais o IGP-DI (índice geral de preços calculado pela inflação) são superiores a este percentual, a dívida do RS não para de crescer. Além disso, como o RS ainda deve para credores internacionais, no total, vem pagando, em média, 16% ao ano só de juros e amortização de sua dívida. Para efeito de comparação, o Estado é obrigado a destinar 12% do Orçamento para a Saúde.

O primeiro-ministro grego, Alexis Tsipras, pressiona o Parlamento na aprovação do segundo pacote de reformas Agência Lusa/EPA/Orestis Panagiotou

Em 1998, quando a dívida foi refinanciada em acordo firmado pelo governo de Antônio Brito e a União, o Estado devia cerca de R$ 10,3 bilhões, o que, em valores corrigidos, representaria atualmente cerca de R$ 50 bilhões. De lá para cá, foram pagos R$ 45 bilhões (também em valores corrigidos), mas o RS ainda deve R$ 54 bilhões – dos quais cerca de R$ 47 bilhões são para a União. Isto significa que o RS ainda deve mais do que o valor devido originalmente.

Em uma projeção recente feita pela Auditoria Cidadã, a expectativa era de que, mantida a estrutura atual da dívida, o Estado conseguisse pagar a dívida apenas em 2075, isso mantidos patamares de inflação e crescimento do PIB, o que já não seria o caso em 2015.

Em realidade, porém, a dívida da maneira que está estruturada seria impagável. “E por que nunca vai ser pago? Porque criamos esse sistema da dívida. A dívida deveria ser um complemento, um financiamento, como ocorre na iniciativa privada. Você quer uma casa para sair do aluguel, você contrata um financiamento, paga o que pagaria de aluguel, aperta um pouco, e no final tem uma casa. Aquele endividamento tem uma justificativa real, que é se ter uma moradia. Quando você espreme a dívida pública, qual é a contrapartida?”, afirma.

A auditora aposentada diz que o que há de comum nesses três casos é o chamado sistema da dívida. “O sistema da dívida transforma o ente federado em um ente dominado pelo setor financeiro. Você está dominado, você tem que se submeter a uma série de políticas. É um instrumento de dominação que te obriga, por exemplo, a privatizar”, diz. “A jogada desse sistema é que você cria uma dívida, aí você coloca condições abusivas de juros, atualização automática e encargos. A coisa vai crescendo, vai ficando uma bola de neve, aí você não tem como pagar e entrega sua casa. No caso dos Estados, privatiza”.

Orçamento Geral da União (Executado em 2014), segundo apuração do Movimento Auditoria Cidadã da Dívida

Para Fatorelli, a única possibilidade de o Estado solucionar a questão da dívida passa pela realização de uma auditoria para se verificar irregularidades e a cobrança de juros abusivos. Segundo o Ceape, calculando o valor da dívida que se refere apenas ao juros sobre juros, chegaríamos a R$ 7,1 bilhões. Contudo, Fatorelli lembra que essa cobrança foi considerada ilegal por uma súmula do Supremo Tribunal Federal, portanto esse valor deveria ser deduzido da dívida total do Estado.

Investigar a origem da dívida

Além disso, Fatorelli explica que a auditoria da dívida seria importante para investigar a origem da dívida. Ela cita que, por exemplo, no momento de refinanciamento da dívida do Estado com a União, o RS assumiu passivo de R$ 2,3 bilhão (em valores da época) do Banrisul. Segundo Fatorelli, este valor deveria ser um crédito para o governo do Estado, mas tornou-se irregularmente uma parte da dívida.

“Quando a gente investiga a divida pública, nós encontramos uma série de mecanismos que transformam outras coisas em dívida pública. Por exemplo, no RS, o Proes (Programa de Incentivo à Redução do Setor Público Estadual na Atividade Bancária) foi um processo de incentivo aos bancos estaduais que seriam privatizados. Foi um processo em que o ente público assumiu passivos dos bancos. Isso é dívida pública? Não é”, afirma. “Da mesma forma, na década de 1980, existem transformações de dívidas privadas de multinacionais, de instituições financeiras, em dívida pública do governo federal”.

Segundo ela, também é preciso investigar o que está na origem do restante da dívida. Em Alagoas, por exemplo, a Auditoria Cidadã verificou que parte do era a dívida original desse Estado dizia respeito a passivos de usineiros de cana de açúcar que foram assumidos pelo governo estadual.