Ilustração de Benedetto Cristofani
Publicado 23/01/2020
São 0,1%. Alguns mostram-se gentis, ternos. Mas, em conjunto, são predadores. Têm ideologia — mas não ideias, nem imaginação. Nós, os 99,9%, somos mais criativos e melhor formados. Mas eles estão coesos e organizados. Nós, nunca?
Por Susan George | Tradução de Simone Paz
“Tudo para nós e nada para os outros parece ter sido, em toda a nossa história, a máxima vil dos senhores da humanidade”, escreveu Adam Smith em 1776, em A Riqueza das Nações — obra que é considerada, universalmente, a primeira pesquisa abrangente sobre a natureza e a prática do capitalismo.
O senhores da humanidade ainda estão entre nós: eu os chamo de a “Classe Davos” porque, do mesmo jeito que as pessoas se encontram todo ano nos resorts de esqui na Suíça, eles são nômades, poderosos e permutáveis. Alguns têm poder econômico e uma fortuna pessoal considerável. Outros possuem poder político e de administração, principalmente exercido em nome daqueles com poder econômico, que os recompensam à sua maneira. Podem até existir contradições entre seus membros — o CEO de uma empresa industrial nem sempre tem os mesmos interesses que seus banqueiros — mas, de um modo geral, quando se trata de escolhas sociais, eles terão a mesma opinião.
Não estou questionando a moralidade individual de ninguém aqui. Com certeza, existem muitos banqueiros de bom coração, traders generosos e CEOs responsáveis socialmente. Só estou dizendo que, como classe, podemos esperar que eles se comportem de maneiras específicas, porque eles servem a um sistema em particular. A Classe Davos, apesar das boas maneiras e das roupas perfeitas de seus membros, é predatória. Não se pode esperar que essas pessoas ajam logicamente, porque eles não estão pensando em interesses de longo prazo, mas em comer agora.
Você pode encontrar a Classe Davos em qualquer país — seus membros não fazem parte de nenhuma conspiração e seu modus operandi pode ser facilmente observado e identificado. Então, por que se preocupar com teorias da conspiração quando só estudar o poder e os interesses já resolve o problema? A Classe Davos é sempre extremamente pequena em relação à sociedade; e seus membros, naturalmente, têm dinheiro — às vezes herdado, às vezes conquistado por si sós. Mais importante ainda: eles possuem suas próprias instituições sociais — clubes, as melhores escolas para seus filhos, bairros, conselhos corporativos e de caridade, destinos de férias, organizações societárias, eventos exclusivos, e por aí vai — tudo isso ajuda a reforçar a coesão social e o poder coletivo. Eles mandam nas nossas maiores instituições, que incluem as mídias, sabem exatamente o que querem e são muito mais unidos e melhor organizados do que nós.
Mas esta classe dominante também tem suas fraquezas: uma delas é que eles têm uma ideologia, mas não possuem ideias, nem imaginação. O programa deles, desde os anos 70, comumente chamado de “neoliberalismo”, baseia-se na liberdade da inovação financeira nas privatizações, na desregulamentação e no crescimento ilimitado, sem importar aonde ela possa levar; num mercado supostamente livre e auto-regulável e no livre comércio que deu origem à “economia de cassino”. Esta economia fracassou gravemente e perdeu sua credibilidade, pelo menos no imaginário coletivo.
A maior parte das pessoas sequer pede mais provas; eles podem ver que o sistema não funciona nem para eles, nem para suas famílias e amigos, nem para seu país. Muitos também reconhecem que ele é ruim para a grande maioria e para o planeta. A única resposta da Classe Davos é manter a antiga ordem mundial mais um pouco, com um “passe livre” para todas as instituições que criaram a crise. Não vai funcionar, nem mesmo dentro de seus próprios termos.
Eu acredito que “nós” — as pessoas decentes, honestas e comuns que eu constantemente conheço ou encontro — têm os números e votos do nosso lado. Nós temos a imaginação, as ideias e as propostas racionais, bem como as habilidades e o conhecimento; ou seja, sabemos o que precisa ser feito e como fazê-lo. Pertencemos a uma grande variedade de organizações formais e informais, na luta pelas mudanças em certas instituições ou territórios. Coletivamente, temos até o dinheiro. O que não temos é a união ou a organização de nosso adversário e, muitas vezes, nos falta a consciência de nosso próprio poder potencial.
O movimento Occupy Wall Street nos Estados Unidos, junto com o Indignados e outros na Europa, identificaram as enormes desigualdades que prevalecem em nossas sociedades com o “1%” e o “99%” — números que coincidem, respectivamente, com a Classe Davos e o resto de nós, embora a Classe Davos esteja mais próxima de um 0,1%.
Em outras palavras, eles identificaram o adversário: a classe que mantém esse status quo podre. Nossa missão agora é construir uma ampla coalizão entre todos aqueles que concordam com esse diagnóstico, todos aqueles que querem lutar por seu futuro e também por uma sociedade mais justa, por um mundo melhor e um planeta mais saudável. Tais alianças, que devem se tornar ao mesmo tempo locais, nacionais e mundiais, não vão surgir por um passe de mágica: são necessárias conversas, debates e o reconhecimento real de que, apesar de nossas pequenas diferenças de opinião e ênfase, estamos todos do mesmo lado.
Se não nós, quem? Se não agora, quando?