Diz Raoni ao sobrevoar Terra Indígena Kayapó e ver devastação do garimpo. Foto (abertura): Christian Braga/Greenpeace
Carolina Pasquali, do Greenpeace*
02 de agosto de 2023
“Foi nessa área que eu nasci”, apontava o Cacique Raoni, a maior liderança indígena brasileira e uma das mais reconhecidas lideranças globais. Ao olhar para baixo, da janela do avião onde estávamos, vi fazendas, já do lado de fora do que hoje é a Terra Indígena Capoto/Jarina, onde Raoni vive em uma aldeia com cerca de 400 pessoas, às margens do Rio Xingu, no estado do Mato Grosso.
Raoni nasceu na década de 30 – a data exata é desconhecida. É impossível dimensionar o que ele já viu e viveu nos seus cerca de 90 anos de vida. Conheceu Marechal Rondon e o ex-presidente Juscelino Kubitschek. Dos irmãos Villas-Bôas ouviu que deveria lutar por todos os povos indígenas, e não apenas pelo seu. E assim o fez.
Símbolo da luta e da resistência indígena, Raoni é reconhecido entre seus pares, respeitado por todos os povos, reverenciado por não-indígenas do mundo todo – celebridades, governantes, acadêmicos etc.
Hoje, uma das preocupações de Raoni é o garimpo no território Kayapó. Por isso, o convidamos para sobrevoar a área e ver do ar o tamanho do estrago. Raoni aceitou nosso convite e decolamos na manhã do dia 25 de julho, junto com as lideranças Kayapó Doto Takak-Ire e Poy Kayapó.
Doto, Poy e Raoni durante o sobrevoo na Terra Indígena Kayapó / Foto: Christian Braga/Greenpeace
Os Kayapó (nome dado pelos brancos; eles se autodenominam Mebengokre), ao lado dos Yanomami (em Roraima) e dos Munduruku (no Pará) são os três povos mais afetados pelo garimpo: mais de 90% do problema se concentra nesses territórios.
E o garimpo, muitas vezes, é subdimensionado: apesar de não gerar grandes áreas desmatadas, mata rios, contamina tudo e todos à sua volta e condena a área afetada a uma morte difícil de reverter. Na terra Kayapó, por exemplo, mais de 750 quilômetros de rios estão contaminados ou foram assoreados pela atividade ilegal.
A Terra Indígena Kayapó sofre há anos com a devastação causada pelo garimpo / Foto: Christian Braga/Greenpeace
“Essa destruição é pra sempre”, diz Raoni, com semblante triste, enquanto voávamos por uma enorme área de garimpo, localizada no Sudeste da Terra Indígena Kayapó. “Não estou nada feliz”, completou, bravo. O cenário impressiona – depois de uma cadeia de montanhas, o horizonte revela uma enorme área marrom, recortada por pequenas piscinas com os rejeitos da atividade. Não há vida.
De cima, avistamos o maquinário. Eu contei três escavadeiras, e vi outras máquinas escondidas. A equipe do Greenpeace que havia sobrevoado essa mesma área em fevereiro deste ano disse que a atividade garimpeira parece ter sido reduzida. Apesar de soar uma boa notícia, ela esconde uma migração: o garimpo segue seu rumo para o norte do território, e lá a atividade está a todo vapor.
Raoni, Doto e Poy – liderança da aldeia Gorotire, bem ao lado do garimpo – estavam calados. De vez em quando, na língua Kayapó, apontavam para uma área recém-aberta, que não sabiam que existia. O rio que passa ao lado da aldeia está marrom. É essa água que os Kayapó, que vivem ali, usam para beber, cozinhar, se banhar.
Pergunto se existem estudos de contaminação por mercúrio no seu povo e Poy diz que ainda não.
Quando deixamos o garimpo, a caminho da aldeia de Raoni, perguntei a ele como podemos apoiá-lo. Com a ajuda de Doto, que traduziu as falas de Raoni durante todo o vôo, ouvi a resposta: “Precisamos da união de todos contra a destruição. Precisamos do compromisso do governo e de ações concretas para apoiar nosso povo”.
Antes de pousarmos, perguntei a Raoni se ele acredita que conseguiremos combater o garimpo e valorizar a economia da floresta em pé. Com muita firmeza, ele segurou meu braço e disse “sim, eu acredito e eu sei”.
Precisamos superar o atual modelo econômico e substituí-lo por uma alternativa que seja capaz de conviver com a floresta – mas, sobretudo, que seja capaz de desconcentrar a renda que ainda gera e perpetua a pobreza da qual se alimentam o garimpo e outras atividades destruidoras.
Ia terminar este texto dizendo o quão importante, pelo nosso futuro, pelo futuro do planeta, e pelo direito dos povos originários, que o Chamado do Cacique Raoni chegue ao coração de cada um de nós. Mas, ao me reconectar a internet e às notícias que se acumulam em velocidade que nem conseguimos dar conta de processar (temperaturas altíssimas em terra e mar, incêndios, derretimento de geleiras, secas duríssimas, chuvas e tempestades etc), fica claro que nosso desafio é no presente.
Ali, naquele avião com o Cacique Raoni ao meu lado, sobrevoando o mundo dos Kayapó, que também enfrentam as contradições apresentadas pela economia da destruição – de um lado, o dinheiro fácil e rápido, de outro a necessidade de um novo paradigma que supere a já combalida noção de “progresso” que insiste em pautar parte da elite do nosso país – entendi que não há outro destino possível, e que o que nos resta é seguir buscando caminhos (e atalhos!).
Aos mais de 90 anos, Raoni nos ensina que o tempo é o de agora, e que não há alternativa a não ser nos mantermos firmes, serenos e fortes. E a não desistir da luta jamais.
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* Este texto foi publicado originalmente no site do Greenpeace Brasil em 31/7/2023. Carolina Pasquali é diretora-executiva do Greenpeace Brasil desde maio de 2021
O Greenpeace Brasil faz parte da organização não-governamental internacional, sem fins lucrativos, com mais de 30 anos de luta pacífica em defesa do meio ambiente. Atua no Brasil desde 1992 (Eco92) e em 30 países por meio de ativismo e de protestos pelo meio ambiente