Como as aves de rapina estão expondo uma bomba-relógio tóxica

Composição: Jonathan Knowles/Getty, Alamy

https://www.theguardian.com/environment/2022/sep/25/how-birds-of-prey-are-exposing-a-toxic-time-bomb

Ida Emilie Steinmark

25 de setembro de 2022

Pesquisadores estão encontrando produtos químicos que não foram totalmente testados quanto ao seu impacto ambiental em águias, corujas e falcões – um sinal de poluição generalizada e persistente.

Rui Lourenço começou a colecionar penas de bufo porque eram lindas. Por baixo dos ninhos das aves à beira da falésia no interior de Portugal, ele encontrava as penas caídas e as trazia de volta ao seu laboratório de ecologia na Universidade de Évora. “Era apenas a curiosidade típica de um naturalista”, diz ele. “Especialmente as penas de voo, são grandes, macias, têm padrões muito interessantes.”

Um dia, um colega perguntou se ela poderia se analisada para verificação de produtos químicos tóxicos. Como predadores de topo, a concentração de produtos químicos das aves de rapina é particularmente alta devido a um fenômeno chamado biomagnificação, no qual as concentrações aumentam à medida que você sobe na cadeia alimentar. Isso significa que monitorá-los pode ajudar a revelar quais substâncias estão poluindo o mundo natural. Lourenço agora envia regularmente penas para análise. “Eles funcionam como um sistema de alerta não só para predadores, mas para o meio ambiente e para os humanos”, diz.

E precisamos ser alertados. Este ano, uma equipe de cientistas alertou que provavelmente rompemos o limite planetário de quanta poluição química a Terra pode suportar e se ainda continua sendo um lar adequado para os seres humanos. Como a liberação de novos produtos químicos agora supera em muito nossa capacidade de testá-los e regulá-los, argumentam eles, a situação está fora de controle.

Então, no mês passado, um artigo mostrou que apenas uma classe de produtos químicos – substâncias per e polifluoroalquil (PFASs), também conhecidas como “produtos químicos para sempre/forever chemicals” porque não se decompõem no meio ambiente – é agora onipresente na água da chuva da Terra em concentrações acima da limite de consumo seguro. “No programa ambiental da ONU, eles falam agora consistentemente sobre a tripla crise: clima, biodiversidade e poluição”, diz Linn Persson, da Sociedade Sueca para a Conservação da Natureza, coautora do alerta de limite planetário.

A poluição química é um grande problema, cuja profundidade ainda não é clara porque muitos produtos químicos não são extensivamente testados quanto ao seu impacto ambiental e não são monitorados rotineiramente. Isso significa que analisar aves de rapina e outros predadores de topo é uma das únicas maneiras de dizer quão ruim a situação realmente é – e como mudá-la.


A maioria dos produtos químicos pouco estudados não é regulamentada e não é monitorada rotineiramente

“Existem cerca de 350.000 substâncias comercializadas em todo o mundo e cerca de 100.000 delas são comercializadas na UE”, diz a ecotoxicologista Paola Movalli. “Destes, apenas cerca de 500 são bem caracterizados por seus [perigos e] exposição.” Isso deixa uma enorme lacuna de conhecimento para cientistas e reguladores que decidem onde intervir.

Desde 2007, a UE tem o REACH/Registration, Evalution, Authorisation and Restriction of Chemicals, uma estrutura regulatória para produtos químicos industriais não cobertos por alimentos, medicamentos ou legislação agrícola, e após o Brexit, o Reino Unido tem o UK Reach. Embora semelhante, o UK Reach está começando a divergir sobre quais substâncias devem ser regulamentadas e como. “[Estamos] tentando criar uma versão do Reino Unido em vez de apenas o que adquirimos no dia em que deixamos a UE”, diz Andrew Smith, cientista regulatório do Executivo de Saúde e Segurança do Reino Unido. Em ambos os sistemas, no entanto, as empresas devem fornecer dossiês de substâncias com informações sobre os perigos para a saúde humana e os potenciais efeitos ambientais.

Mas quanto menor a quantidade produzida ou importada, menos testes são necessários. A Agência Europeia do Meio Ambiente estima que mais de 70.000 produtos químicos, principalmente de baixo volume, têm pouca ou nenhuma informação de toxicidade disponível. Além disso, relatórios da Agência Ambiental Alemã mostram que pelo menos um quarto dos conjuntos de dados de dossiês para produtos químicos de médio e alto volume não atendem aos requisitos da Reach. “Estamos produzindo dezenas de milhares de compostos diferentes”, diz Lapworth, “mas para muitos deles não temos os dados de toxicidade”.

A maioria dos produtos químicos pouco estudados não são regulamentados e não são monitorados rotineiramente. Os cientistas, no entanto, começaram a encontrar alguns deles no meio ambiente: em fontes de água, no Ártico e agora em predadores de topo, como aves de rapina. Apelidados de “contaminantes emergentes” (ECs), sua presença é preocupante porque sugere que eles se acumulam em organismos vivos e não se decompõem facilmente. Essa poluição é muito difícil de reverter e pode causar problemas por décadas: por exemplo, os bifenilos policlorados/PCBs foram proibidos na década de 1980, mas ainda parecem causar infertilidade nas últimas orcas da Grã-Bretanha.

Ponto sem retorno? As orcas ao redor das Ilhas Britânicas produzem bezerros raramente, com a fertilidade sendo afetada por altos níveis de PCBs. Fotografia: SeaTops/Alamy

Os ECs não são necessariamente novos no meio ambiente, mas técnicas avançadas de espectrometria de massa significam que os cientistas agora podem detectar cada vez mais deles. Eles dão uma visão quase completa do “universo” de produtos químicos no meio ambiente”, diz Movalli, que trabalha no Centro de Biodiversidade Naturalis, na Holanda. Isso é crítico porque a vida selvagem é exposta a produtos químicos em combinação, não um por um.

Por exemplo, um estudo deste ano encontrou 85 contaminantes em 30 águias de cauda branca do norte da Alemanha, incluindo produtos farmacêuticos, fragrâncias de almíscar, agrotóxicos e PFASs. Enquanto alguns eram produtos químicos há muito proibidos, como o DDT, ainda frequentemente encontrados em animais selvagens após mais de 40 anos de restrições, muitos eram ECs. Outros estudos recentes de aves de rapina também relatam a detecção de novos tipos de retardadores de chamafiltros UV de protetores solares e aditivos plásticos, como bisfenóis.

Os PFASs são uma preocupação particular, diz o ecotoxicologista Veerle Jaspers, da Universidade Norueguesa de Ciência e Tecnologia. Eles são usados ​​para todos os tipos de coisas, como forrar sacolas de viagem e impermeabilizar capas de chuva, e alguns têm sido associados a distúrbios hormonais e imunológicos, bem como câncer em humanos. Jaspers encontrou PFASs em corujas na Noruega e viu “efeitos muito claros” deles no laboratório.

Em um estudo, ela e sua equipe testaram o efeito de um PFAS agora restrito contra uma alternativa não regulamentada em ovos de galinha, em concentrações comparáveis ​​às observadas para PFASs em ovos selvagens. Eles descobriram que ambos os produtos químicos alteraram a frequência cardíaca dos filhotes, potencialmente colocando em risco a eclosão. Em uma dose mais alta, que ainda era significativamente menor do que a exposição relatada ao PFAS em ovos próximos a fábricas químicas europeias, a alternativa irrestrita também resultou em fígados anormalmente grandes.

E porque são tantos, eles também fazem um coquetel complexo por conta própria. Movalli e seus colegas detectaram recentemente 56 compostos PFAS diferentes em nove espécies, incluindo urubus. Atualmente, apenas dois são proibidos pela Reach e pela Convenção de Estocolmo, um tratado internacional que aborda os poluentes persistentes em todo o mundo.


Pesquisas como as de Jaspers e Movalli sugerem que a exposição é significativa e generalizada no meio ambiente, portanto não é surpresa que as pessoas também estejam expostas a muitos ECs. Afinal, estamos cercados por eles: os colocamos direto na pele e cozinhamos nossos alimentos com utensílios cobertos com eles. De acordo com estimativas, quase todos os habitantes da Terra têm PFASs no sangue.

Essa exposição está cheia de incógnitas, mesmo para produtos químicos que estamos começando a entender melhor. Pegue o aditivo plástico e disruptor endócrino Bisfenol A (BPA). Em 2015, a Autoridade Europeia para a Segurança dos Alimentos (EFSA/European Food Safety Authorityconcluiu que a exposição normal estava muito abaixo do limite de segurança e não representava risco para a saúde do público. Mas no final de 2021, sugeriu reduzir esse limite em muitas ordens de magnitude devido a novas evidências. Isso significaria que agora considera que a maioria das pessoas está ingerindo demais (nt.: IMPORTANTÍSSIMO PERCEBER QUE A TOXICOLOGIA TRADICIONAL DOSE=RESPOSTA, ESTÁ SUPERADA PARA AS MOLÉCULAS ARTIFICIAIS. HOJE NÃO É MAIS A ‘DOSE TOXICOLÓGICA’ E SIM ‘DOSE FISIOLÓGICA’ JÁ QUE ATUAM EM DOSES INFINITESIMAIS COMO OS HORMÔNIOS!).

Tal como acontece com as aves de rapina, o biomonitoramento pode trazer clareza aqui. O epidemiologista ambiental Carl-Gustaf Bornehag, da Universidade de Karlstad, administra um grande projeto de biomonitoramento humano chamado Selma sobre disruptores endócrinos. Em um artigo publicado na Science no início deste ano, ele e seus colegas mostraram como considerar a mistura mais ampla de disruptores endócrinos a que estamos expostos pode nos ajudar a avaliar melhor nosso risco.

Os cientistas analisaram recentemente os fígados de 30 águias de cauda branca no norte da Alemanha e encontraram mais de 85 contaminantes. Fotografia: Our Wild Life Photography/Alamy

“Temos um sistema de avaliação de risco [de produtos químicos hoje] no qual tomamos um composto por vez”, diz ele, “mas estamos sempre expostos a misturas muito complicadas”. No estudo, ele identificou uma mistura de produtos químicos do sangue e da urina de quase 2.000 suecas grávidas que estava associada a ter filhos com atraso na linguagem. Consistia em BPA, ftalatos e vários PFASs.

Seus colegas então testaram extensivamente a mistura em girinos, peixes-zebra e “minicérebros” humanos cultivados em laboratório. Eles encontraram uma interrupção hormonal significativa que aumentou com a dosagem. Com base nesses experimentos, a equipe definiu um nível de preocupação antes de verificar as suecas grávidas: 54% estavam acima do limite. Considerando o efeito das misturas reveladas pelo biomonitoramento, diz Bornehag, o limite de segurança de muitos produtos químicos diários pode precisar ser reduzido.

De acordo com Jaspers, no entanto, ações suficientes sobre produtos químicos problemáticos podem levar décadas, seja para proteger humanos ou animais selvagens. Movalli compartilha sua frustração: “Quando um produto químico é restrito ou proibido após anos de estudos, a indústria simplesmente o substitui por um similar”, diz ela. “Depois, são necessários mais anos de estudos para restringir a nova substância – repetindo-se tudo isso ad infinitum”.

Bornehag diz que viu a troca de um ftalato pelo próximo ao longo dos anos 2000. Em certos casos, o BPA também foi trocado por outros bisfenóis disruptores endócrinos em produtos onde o BPA foi restringido e alguns retardadores de chama de substituição mostram toxicidade semelhante aos seus antecessores proibidos. Mas para Smith, não é tão preto e branco assim. Apenas tome amianto, diz ele. A indústria “sempre será muito cautelosa com qualquer coisa que se pareça com amianto. A última coisa que eles querem é ser acusados ​​de criar o próximo grande problema.”

Uma maneira de contornar isso é agrupar e regular as substâncias. Isso parece se tornar mais comum: os estados membros estão preparando uma proposta para a UE proibir a maioria dos PFASs e a Comissão Europeia publicou recentemente sua visão para restringir um grande número de produtos químicos nocivos por grupo como parte de sua nova estratégia de produtos químicos. Ao mesmo tempo, a EFSA procura considerar as misturas químicas em suas avaliações de risco.

Rannoch Moor à beira das Terras Altas da Escócia. Um estudo recente mostrou que a água da chuva não é mais segura para beber devido aos níveis de “produtos químicos pra sempre/forever chemicals”. Fotografia: Adam Burton/Alamy

“[Agrupar produtos químicos] é cada vez mais o que queremos fazer porque é muito mais eficiente”, diz Smith, embora em relação aos PFASs, ele diga que eles são mais variados do que a maioria das pessoas imagina. A recomendação do Reino Unido sobre como lidar com PFASs, incluindo possíveis restrições, era esperada neste verão, mas ainda não foi publicada. Da mesma forma, a estratégia de produtos químicos atrasada do Reino Unido, que foi proposta em 2018 com o plano ambiental de 25 anos, é esperada ainda este ano.

Com a nova estratégia da UE sinalizando uma mudança radical, há temores de que o UK Reach fique para trás. “Qualquer divergência ou qualquer tipo de atraso na tomada de decisões sobre grupos específicos de contaminantes [pode causar] um problema”, diz Lapworth. “É potencialmente uma diluição do padrão-ouro com o qual estávamos trabalhando.”

Persson e seus coautores temem que tentar avaliar todos os produtos químicos existentes seja um trabalho muito grande, uma visão que compartilham com a Agência Europeia do Meio Ambiente. “O fluxo constante de novas substâncias que sintetizamos é muito mais rápido do que nossa capacidade de avaliar”, diz ela, especialmente em escala global. Em vez disso, ela e os coautores lançaram a ideia de um limite fixo na produção de produtos químicos, inspirados nos limites de emissões na luta contra o aquecimento global.

Essa ideia pode encontrar simpatia entre os ecotoxicologistas que estudam aves de rapina. Quando você pergunta a Movalli qual é o produto químico que mais a preocupa em relação aos falcões peregrinos que ela monitora, você recebe uma lista que continua por algum tempo. PFASs, antigos metais tóxicos, as dioxinas há muito banidas, disruptores endócrinos e até estimulantes como a nicotina. “Sinceramente, estou preocupada com tudo”, diz ela.

Tradução livre, parcial, de Luiz Jacques Saldanha, setembro de 2022.