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29/07/2022
Pensador indígena alertou sobre a perda de contato dos homens com a Terra.
Belém (PA) – Quando Ailton Krenak começa a falar, as pessoas param para prestar atenção. Desta vez, em Belém, ele não trouxe ideias para “adiar o fim do mundo”, mas um alerta urgente: “Os humanos serão despachados da terra por mau comportamento. Porque não sabem sequer assistir aos astros, aos movimentos das estrelas, às chuvas. Os humanos estão perdendo de tal maneira o contato com a Mãe Terra, que daqui a pouco a Terra vai perder o contato com eles”.
A manifestação do pensador indígena Ailton Krenak ocorreu durante a entrega do relatório parcial do “Tribunal Internacional de Direitos da Natureza”, principal atividade do segundo dia da 10ª edição do Fórum Social Panamazônico (Fospa). Ele é um dos juízes desse tribunal, composto por outros representantes de movimentos sociais, indígenas, ambientalistas e pesquisadores do Brasil, Peru, da Colômbia, África do Sul e dos Estados Unidos. O relatório, em fase de finalização, traz informações emergenciais sobre violências e outras formas de violações de direitos humanos e à natureza na Volta Grande do Xingu e no chamado Corredor Carajás – rota de escoamento de minérios e do agronegócio no Pará.
Peixes e quelônios desaparecem em trecho do rio, comprometendo a segurança alimentar das populações tradicionais. A fotografia acima é de autoria de Cristiane Costa Carneiro.
Carajás, Pará.
Ailton destacou o papel dos povos indígenas e tradicionais na formulação de leis que tragam resoluções específicas com relação à natureza e sejam incorporadas às Constituições dos países latinoamericanos. Ele lembrou que Equador e Colômbia possuem em seus sistemas legais leis que resguardem a natureza e seus bens como sujeitos, baseando-se em conhecimentos indígenas dos povos andinos traduzidos como “bem viver” (“sumak kawsay”, na língua quéchua).
Em entrevista à Amazônia Real, refletindo sobre os direitos da natureza, Krenak também afirmou que “algumas nações dizem ter o privilégio de dominar a vida da Terra e nós estamos dizendo que não, que a natureza tem os seus direitos e eles são anteriores a qualquer pretensão dos humanos. Porque nós, humanos, somos partes do corpo vivo da terra”.
Para Krenak, o Fospa permite não só discutir ideias, mas propagá-las para que mais pessoas se mobilizem em torno delas. “Precisamos fazer correr as palavras. Somos nós que temos que ter poder, a gente não tem que esperar o governo decidir nada. É a voz da Terra. Não somos administradores da Terra. No dia que ela se enjoar da gente, acabou! A terra seguirá sem a gente.”
Ailton Krenak defende a importância da promoção de ideias que orientem a Humanidade sobre seus compromissos com “Gaia” ou “Mãe Terra”, como ele costuma denominar o planeta Terra – algo que ele já descreveu na recente obra, Ideias Para Adiar O Fim Do Mundo, publicada em 2019, pela editora Companhia das Letras. “Anunciar esse compromisso com o direito da natureza amplamente difundi uma uma nova epistemologia sobre a cultura do homem, do humano e da natureza pra gente ‘desmisturar’ ou misturar essa coisa numa perspectiva diferente da mentalidade ocidental”, resume o pensador indígena, referindo-se ao trabalho realizado pelo tribunal.
Os resultados preliminares do relatório apontam para o cenário de crise enfrentado historicamente pelo bioma Amazônia nos nove países onde ele está presente. Ele ressalta de que maneira as diferentes formas de destruição da natureza e da biodiversidade estão conectadas com a destruição dos povos originários e seus modos de vida tradicionais, que não só habitam ancestralmente os territórios amazônicos, mas são os responsáveis por manejá-lo de forma não-predatória.
Ana Carolina Alfinito, advogada, pesquisadora da Rede Justiça Climática, destacou que o trabalho realizado pelo “Tribunal Internacional de Direitos da Natureza” é reunir informações e reflexões que indiquem a urgência de se pensar em uma “agenda transnacional de defesa dos direitos da natureza”.
Ela, que também é uma das juízas que estiveram na comitiva que percorreu as cidades de Altamira, Anapu, Marabá, Parauapebas e Canaã dos Carajás, entre os dias 18 e 27 de julho, frisou que a base das indicações propostas pelo relatório é fruto das próprias vivências dos povos originários e tradicionais, que preconizam o respeito aos rios, às matas e aos seres humanos e não-humanos que constituem os ecossistemas. As cidades visitadas pela comitiva sofrem há décadas os efeitos de hidrelétricas, da mineração e do agronegócio.
Também estiveram presentes na cerimônia de lançamento do relatório Blanca Chancosa, liderança indígena do Equador; Cormac Cullinan, advogado ambiental e diretor da Wild Law Institute, da África do Sul; lideranças do Movimento Xingu Vivo Para Sempre, Comissão Pastoral da Terra e Justiça nos Trilhos.
Ana Carolina Alfinito, advogada, pesquisadora da Rede Justiça Climática, e uma das juízas do Tribunal Internacional dos Direitos da Natureza durante o Fórum Social Panamazônico (Fospa), em Bélem, Pará (Foto: Cícero Pedrosa Neto/Amazônia Real)
O documento apresentado pelo “Tribunal Internacional de Direitos da Natureza” resgata questões como o fato de que a Amazônia vive um ciclo de “ecogenocídio”. O termo foi usado no relatório para definir os crimes cometidos contra a natureza e os seres vivos que nela habitam, e estão “imersos em uma atmosfera constante de destruição”. As recomendações e o veredito, presentes no relatório, foram lidos pela advogada Ana Alfinito.
“São violações que atingem as paisagens, mundos, modos de vida. Roubos de terras públicas pelo capital em conluio com o Estado. Tudo é superlativo e delirante nesses territórios, inclusive as formas de violências e destruições”, pontuou Alfinito. Ela também elencou os danos ambientais e as violações de direitos praticados pela mineradora Vale na região de Carajás, aos povos indígenas, quilombolas e campesinos.
Felício Pontes, procurador da República e coordenador da delegação de juízes do Tribunal Internacional dos Direitos da Natureza, lembrou das discussões que cercam a mineradora canadense Belo Sun, no Rio Xingu. A mineradora, que promete ser a maior planta minerária a céu aberto do Brasil, com foco na exploração de ouro, briga na Justiça pelo direito de se instalar entre as Terras Indígenas dos povos Arara e Jurunas.
“Só a bacia de rejeitos que eles pretendem construir é várias vezes maior que aquela que vitimou Mariana”, lembrou Pontes, destacando os prováveis efeitos do empreendimento na região oeste do Pará.
O procurador fez questão de pontuar sobre as consequências da hidrelétrica de Belo Monte, que barrou o Rio Xingu, comprometendo sua vazão e a qualidade da água, além de interferir na reprodução de peixes. Esses recursos são fundamentais para a reprodução da vida das populações indígenas e ribeirinhas que deles dependem.
Segundo o documento, a Amazônia foi transformada em uma “zona de sacrifício global”, ou seja, um local onde a morte e a destruição é permitida, conforme explica a professora e pesquisadora Edna Castro, diretora do Núcleo de Altos Estudos da Amazônia da Universidade Federal do Pará (Naea/UFPA).
Professora e pesquisadora Edna Castro, diretora do Núcleo de Altos Estudos da Amazônia da Universidade Federal do Pará (Naea/UFPA)
(Foto: Cícero Pedrosa Neto/Amazônia Real)
Castro e outros pesquisadores latinoaamericanos têm formulado e discutido essa categoria sociológica chamada de “zona de sacríficio”, aplicada ao contexto dos grandes empreendimentos e do modelo econômico desenvolvimentista que desde a década de 1960 influencia as tomadas de decisões dos governos na América Latina.
“A exemplo da mineração, as empresas estabelecem formalmente, em seus estudos de risco, quantos quilometros e quantas comunidades poderão ser devastadas por suas operações. Eles sabem a quem e ao que eles podem matar. São crimes que se acumulam contra a humanidade e contra a natureza”, define a professora.
Segundo ela, este é um cenário que tem evoluído na Amazônia e nos países conectados ao bioma. “Essa também é uma decisão de Estado. É o Estado que permite e avaliza esse tipo de ação criminosa de mineradoras, do agronegócio e de tantos outros projetos de ‘desenvolvimento’”, conclui Edna Castro, fazendo questão de aspear a palavra “desenvolvimento”.
Cícero Pedrosa Neto é repórter multimídia e colaborador da agência Amazônia Real desde 2018, atuando em temas relacionados ao meio-ambiente, impactos sociambientais da mineração, populações quilombolas, populações indígenas e conflitos agrários. Em 2019 foi um dos jornalistas premiados com o 41º Prêmio Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humano na categoria multimídia com a série “Sem Direitos: o rosto da exclusão social no Brasil”, um trabalho colaborativo entre mídias digitais independentes: #Colabora, Ponte Jornalismo e Amazônia Real. Foi bolsista do Rainforest Journalism Fund | Pulitzer Center em 2020. É fotógrafo, documentarista, roteirista, podcaster e mestrando em sociologia e antropologia pela Universidade Federal do Pará. ([email protected])