MARCEL HARTMANN
21/07/2022
Alguns clubes são para poucos. É o caso da prestigiosa Royal Society, sediada em Londres, no Reino Unido: trata-se da mais antiga sociedade científica ainda em atividade no mundo, criada em 1660. Mas o climatologista Carlos Nobre entrou para o grupo seleto formado por seus membros. Por suas contribuições à ciência, esse paulista de 71 anos é o segundo brasileiro nato a entrar para a instituição – quem o antecedeu na honraria foi D. Pedro II. Engenheiro, doutor em Meteorologia pelo Instituto de Tecnologia de Massachussetts (MIT) e pesquisador do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (IEA-USP), ele estuda há quatro décadas a relação entre clima e a região amazônica. Nesta conversa com GZH, alerta: a Amazônia está chegando a um ponto de degradação do qual não será possível.
Carlos Nobre, nobre e honrado cientista brasileiro (afirmativa de nosso website).
O senhor é o segundo brasileiro nato da história a ser eleito para a Royal Society, ao lado do imperador D. Pedro II. Por que acha que foi escolhido agora e o que representa esse reconhecimento para o senhor?
Me parece que tem muito a ver com a preocupação do mundo científico com o risco de a Amazônia, a maior floresta tropical do mundo e que contribui muito para a estabilidade climática do planeta, desaparecer. Me dedico à Amazônia há 40 anos. Em 1990, publicamos os primeiros artigos científicos mostrando o risco da floresta com desmatamentos, em uma época na qual não se falava muito sobre mudanças climáticas. Comecei com as atividades de campo em 1999, e o experimento continua até hoje: mais de 25 sítios de pesquisa em áreas de coleta em floresta, pastagem e até mesmo no cerrado, que permitem um entendimento aprofundado do que ocorre na região amazônica. Desde 2008, tenho proposto o que seriam soluções para um futuro sustentável para a Amazônia. Depois que me aposentei do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), onde passei 37 anos, criei o projeto Amazônia 4.0 para pensar em um desenvolvimento sustentável para a floresta, com melhoria socioeconômica de todas as populações, sem destruir a mata – ao contrário, restaurando-a. A Royal Society me elegeu pela minha carreira, pela importância da floresta, mas também porque agora, nos últimos anos, trabalho na busca de soluções.
Por favor, explique melhor essas suas pesquisas das últimas décadas e sobre o que o senhor chama de “ponto de não retorno”.
Em 1988 e 1989, fui pesquisador-visitante na Universidade de Maryland (EUA) e depois publiquei artigos buscando responder: se houver um grande desmatamento na Amazônia, como isso vai mudar o clima? O clima muda tanto que a floresta poderia não voltar? A resposta que encontrei é muito preocupante: em pesquisas com modelos matemáticos, substituímos a floresta por pastagem de pecuária. E a resposta é: sim, com o desmatamento, o clima em todo o sul da Amazônia – que inclui Amazônia boliviana, Acre, Rondônia, sul do Amazonas, norte de Mato Grosso, sul do Pará e até o oeste do Maranhão – muda. Fica mais seco. A estação seca, que dura no máximo quatro meses, passará a durar de cinco a seis meses. Isso não é mais clima de floresta, mas de savana, que nós chamamos de cerrado. Isso me fez criar a hipótese da “savanização” há 32 anos. A floresta se tornaria um bioma degradado, que não seria igual ao cerrado, mas que teria a aparência de um cerrado muito degradado, com poucas árvores e muito menos biodiversidade do que o cerrado. Isso chamou a atenção da comunidade científica mundial. Centenas de estudos foram feitos depois, chegando à conclusão de que, mesmo com desmatamento zero, se a mudança climática elevar a temperatura em 4ºC, a Amazônia virará uma savana degradada.
O quão próximos estamos desse ponto de não retorno?
Muito próximos. Fizemos estudos com projeções, mas inúmeras pesquisas no dia a dia da Amazônia, muitas das quais participei, não deixam nenhuma dúvida de que a Amazônia está à beira do precipício. Os desmatamentos continuaram a aumentar, então a floresta, que era muito resiliente ao fogo, começa a se abrir, aí o sol entra e a vegetação do solo fica inflamável. Quando a floresta está fechada, só 4% da radiação solar chega ao solo, portanto nunca seca o solo. Mas, quando a floresta começa a ser degradada, o sol entra direto e seca, aí o fogo começa a se propagar pelo chão. O fogo queima até três metros de altura do tronco da árvore, e aí a árvore morre, caem todas as folhas no solo e entram em processo de degradação, jogando gás carbônico para a atmosfera. O dado que mais nos preocupa é que, de 1979 até agora, a estação seca no sul da Amazônia já ficou cinco semanas mais longa. São 2,3 milhões de quilômetros quadrados dos Andes até o Atlântico. O lugar mais próximo do ponto de não retorno é entre o sul de Rondônia e o norte do Mato Grosso, incluindo o sul do Amazonas e o sul do Pará. Estamos vendo a estação seca 2ºC a 3ºC mais quente e até 30% mais seca, com menos chuva. Entre o norte do Mato Grosso e o sul do Pará, vários estudos mostram que a floresta se tornou uma fonte de carbono. Na década de 1980, a floresta removia mais de 2 bilhões de toneladas de gás carbônico da atmosfera. Agora, nessa região, o processo é o contrário: já virou uma fonte de carbono. A floresta como um todo já está quase virando uma fonte de carbono. Não são só modelos matemáticos que fazem projeções, vemos isso no dia a dia da região.
O quanto é esse “muito próximo” do ponto de não retorno?
De 10 a 20 anos. Alguns cientistas acham que o sul e o sudeste da Amazônia já viraram. Eu acho que a gente ainda pode salvar a Amazônia, mas temos que fazer muito para isso. Temos no máximo 20 anos para salvar a Amazônia.
Que tipo de impacto podemos esperar se a Amazônia se tornar uma “savana degradada”?
O impacto para o clima global e especialmente para a América do Sul será enorme. Se a Amazônia de fato completar o processo de “savanização”, ganhamos no mínimo 300 bilhões de toneladas de gás carbônico. E isso exatamente no momento histórico em que o planeta tinha de lutar para nos salvar da emergência climática. Para atingir sucesso no Acordo de Paris e não deixarmos o clima do planeta passar de 1,5ºC de aquecimento global – lembrando que globalmente já aquecemos 1,1ºC –, o máximo que podemos emitir em gás carbônico são 400 bilhões de toneladas, contando combustível fóssil, agricultura e desmatamento. Mas só a perda de 70% da floresta amazônica jogaria na atmosfera 300 bilhões de toneladas.
Como o desmatamento na Amazônia pode afetar o clima regional?
A Amazônia recicla água. Ventos alísios trazem umidade do Oceano Atlântico, formam-se nuvens, cai a chuva, grande parte vai para as raízes, que transportam a água até as folhas. Quando as folhas transpiram, o vapor umidifica a atmosfera e ajuda a formar novas nuvens e chuva. Uma molécula de vapor d’água que entra no Oceano Atlântico recicla entre cinco e oito vezes antes de sair da Bacia Amazônica. Essa reciclagem é muito importante, pois estabiliza a temperatura. A reciclagem de vapor d’água ainda leva vapor ao sul da Bacia Amazônica, o que alimenta sistemas de chuva do Cerrado, do Sudeste, da Bacia do Rio Paraná, do Uruguai, da Argentina, do Paraguai e do sul do Brasil. Se desaparecer a floresta, as chuvas nessas regiões diminuirão, prejudicando, por exemplo, a agricultura. Outro impacto: sem a floresta, a temperatura sobe muito na região amazônica, de 4ºC a 5ºC, o que já acontece em regiões de pastagem na Amazônia. O ar que passa por lá e chega ao Cerrado fica de 4ºC a 5ºC mais quente, o que perturba a ecologia do Cerrado e, principalmente, a agricultura dessa região, que já está próxima de um limite, ou seja, de não haver mais potencial de agricultura.
O Rio Grande do Sul enfrentou um período de seca e de queimadas, com recorde de incêndios, o que prejudicou a agricultura local. O senhor está dizendo que um cenário desses se tornaria ainda mais favorável com a degradação da Amazônia?
Sim. Esses acontecimentos, no Rio Grande do Sul, têm muito a ver com as mudanças climáticas, mas não só isso. Ao se diminuir a floresta, há menos vapor d’água chegando ao Estado, principalmente nos meses de julho, agosto e setembro. A estação chuvosa na região fica mais seca. Isso altera muito o clima.
O Brasil foi protagonista durante muitos anos nas discussões sobre política climática, mas perdeu esse espaço. Como o senhor enxerga o atual momento da política ambiental brasileira?
É muito preocupante. O governo atual traz um modelo ultrapassado de desenvolvimentismo da época da ditadura militar, com superexpansão do agronegócio em cima da Amazônia e do Cerrado. A floresta era um inimigo do desenvolvimento. Hoje, só não tiraram o Brasil do Acordo de Paris porque a ministra de Agricultura Tereza Cristina comentou que o país fecharia as exportações para Europa e até para a China. Na campanha de 2018 não houve grande discussão sobre a questão ambiental. Creio que isso muda em 2022.
As mortes do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Philips chamaram a atenção do mundo. Parece uma repetição do caso Dorothy Stang ou Chico Mendes. Como o senhor enxerga e contextualiza esse novo crime?
A Amazônia é um dos lugares que, ao longo das últimas décadas, têm as maiores taxas de assassinato de líderes indígenas, ambientais, religiosos e de defensores de direitos humanos. Não só o Brasil: outros países amazônicos também. Mas houve uma explosão recente do crime organizado que tem muito a ver com esse discurso de que o modelo para a Amazônia deve ser o de 50 anos atrás. O ex-ministro Ricardo Salles chegou a dizer que que gostaria de tirar a floresta para melhorar a qualidade de vida das populações amazônicas. Só que inúmeros estudos mostram que a desigualdade é maior nas áreas desmatadas, onde há agricultura de baixa produtividade, que só beneficia grandes proprietários. As mortes de Bruno e Dom se inserem nesse contexto, mas constituem uma consequência do crescimento do crime organizado, incluindo o narcotráfico, que se interconectou entre os países amazônicos. O fluxo da cocaína que sai do Peru e da Colômbia e passa pelo Brasil, inclusive no Vale do Javari, para ser consumida no nosso país e exportada para a Europa, existe há décadas. Recentes investigações de jornalistas já mostraram a ligação do PCC e do Comando Vermelho com o garimpo ilegal e a grilagem. É um crescendo que se beneficia do enfraquecimento das políticas ambientais e da ação da Polícia Federal.
Governistas criticam países europeus por terem desmatado seu continente e opinarem sobre a preservação da Amazônia, escondendo interesses na exploração de minérios. O que o senhor acha da pressão internacional sobre o governo do Brasil?
Esse é um discurso falso que vem da época da ditadura militar. Os governos militares falavam em soberania territorial. Mas nunca houve ameaça de invasão. E foram os governos militares que abriram a porteira para empresas canadenses e americanas explorarem os recursos minerais. O manganês do Amapá era todo exportado para os EUA. O alumínio fica até hoje com uma grande empresa canadense. A única mudança do discurso governamental de hoje é que exclui os EUA, concentrando a suposta ameaça nos europeus. Só que, efetivamente, segue não havendo ameaça, até porque a exploração mineral na Amazônia ocorre em parceria com as empresas dos países desenvolvidos. Eles não precisam invadir porque já usufruem desse modelo extrativista na prática.
Como o senhor compara a forma como o Brasil preserva a Amazônia frente à preservação que é realizada nos outros nove países nos quais a floresta também está presente?
A maior taxa de desmatamento se dá na Amazônia brasileira. Mas Bolívia, Peru, Equador, Colômbia e Venezuela têm o mesmo mecanismo desenvolvimentista do Brasil. O problema é muito semelhante, porque diz respeito ao modelo adotado. Há hidrelétricas no declínio dos Andes, onde foram encontradas reservas de petróleo e gás natural. Na Amazônia colombiana, depois da pacificação com as Farc, há cerca de cinco anos, está havendo uma enorme expansão da pecuária destrutiva, a mesma que vemos no Brasil. Inúmeros grileiros brasileiros foram para lá, estão grilando terras na Colômbia e transformando-as em fazendas pecuárias, igualzinho ao que ocorre no Brasil. Treinam colombianos para isso. Suriname e Guiana Francesa preservam mais a floresta, mas é porque são países com populações muito pequenas, e não porque há diferença conceitual de quererem proteger a Amazônia.
Na Universidade de São Paulo (USP), o senhor conduz o projeto Amazônia 4.0, focado em melhorar as cadeias produtivas de forma sustentável. Como a ciência pode impulsionar um modelo de economia e de desenvolvimento sustentáveis?
Trata-se de uma iniciativa de mostrar viabilidade em trazer inovações tecnológicas para capacitação de populações rurais e urbanas e para desenvolver uma bioeconomia com agregação de valor aos produtos da floresta. A ideia é voltar para trás e ver que os indígenas que chegaram à América do Sul 12 mil anos atrás criaram um modelo que sempre mantinha a floresta em pé. Eles desenvolveram a ciência indígena, e podemos mesclar a ciência ocidental com a ciência dos povos originários para desenvolver o que chamamos de uma nova bioeconomia de floresta em pé. Temos exemplos de sistemas agroflorestais, com cooperativas que produzem produtos da floresta e comercializam esses produtos, com muitos benefícios para populações amazônicas.
O senhor poderia dar um exemplo dessa nova bioeconomia?
O açaí, que traz mais de US$ 1 bilhão para a economia do Brasil e melhorou a condição de mais de 400 mil famílias, principalmente no Pará. Queremos transformar o Brasil em um país de classe média? Como fazer isso? A ideia é industrialização. Várias cooperativas da Amazônia que produzem produtos da floresta levaram profissionais a atingir a classe C e alguns até a classe B. Na Holanda, todos os agricultores familiares, que são 75% das fazendas do país, são de classe média. Aqui no Brasil, 95% da agricultura familiar é da classe baixa. Como inverter esse modelo? A Amazônia 4.0 é para demonstrar que a agregação de valor aos produtos da floresta é muito importante para criar uma economia mais vigorosa. Há ainda outros componentes do Amazônia 4.0, como a criação de uma escola de negócios sustentáveis para a Amazônia, em parceria com a Universidade do Estado do Amazonas (UEA). Também queremos instituir o Instituto de Tecnologia da Amazônia (ITA). Fiz meu doutorado no MIT (Massachusetts Institute of Technology, nos EUA) e vi o quão importante é ter um instituto de tecnologia avançada. Vamos construir um Instituto de Tecnologia da Amazônia panamazônico para alimentar essa nova bioeconomia, com graduação, pós-graduação e laboratórios avançados, com abertura para comunidades indígenas. Seria em parceria público-privada. Queremos trazer empresas para contribuir.
Ao mesmo tempo, ativistas e intelectuais como o indígena Ailton Krenak criticam a própria ideia de desenvolvimento sustentável, por ser baseada na exploração capitalista do meio ambiente. Como o senhor enxerga essa crítica e esse debate?
Não discordo do Krenak. O açaí, que virou produto mundial, começou a ter risco de monocultura, o que pode levar ao desmatamento. Mas esse novo modelo de bioeconomia leva em consideração que a escala do desenvolvimento não é de expansão de monoculturas. A enorme diversidade da Amazônia indicaria o modelo da nova bioeconomia. É muito diferente de tirar toda a floresta e substituí-la por pastagem e agricultura da soja ou de milho. Trata-se de um modelo que mantém a diversidade na economia. A escala é pequena, mas precisa ser em grande número para beneficiar as populações amazônicas.
O senhor já mencionou em entrevista que acredita que a virada para uma nova forma de lidar com o meio ambiente ocorrerá graças à nova geração. Mas há pressa para haver mudança. Os jovens vão nos salvar? Vai dar tempo? Há o que fazer?
Há o que fazer. Um pouco do meu otimismo se dá porque essas gerações mais jovens de 15 a 24 anos, a geração da Greta Thunberg, têm uma visão diferente. E isso não é só na Europa. Eles têm uma visão menos materialista, de que salvar o planeta da emergência climática é essencial para o futuro deles. Vejo com otimismo a hora em que essa geração entrar no mercado de trabalho e na política. Eles terão muito mais poder daqui a 10 ou 20 anos e começarão a transformar o cenário rapidamente. Assim, poderemos atingir o Acordo de Paris e zerar as emissões até 2050, zerar o desmatamento. Se eu fosse pensar apenas pela minha geração, estaria pessimista. Sou otimista graças à geração mais jovem.